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Encantamento Pernicioso
Finda a reunião, reparei que a médium Dona Isaura Silva apresentava
sensível transfiguração.
Enquanto perduravam os trabalhos, mostrava radiações brilhantes, em
derredor do cérebro, oferecendo simpático ambiente pessoal; entretanto,
encerrada que foi a sessão, cercou-se de emissões de substância fluídica
cinzento-escura, qual se houvesse repentinamente apagado, em torno dela, alguma lâmpada invisível.
Impressionado, dirigi-me a Sidônio, com natural indagação, ao que ele me
respondeu, atencioso:
— A pobrezinha encontra-se debaixo de verdadeira tempestade de fluidos
malignos que lhe vão sendo desfechados por entidades menos esclarecidas,
com as quais se sintonizou, inadvertidamente, pelos fios negros do ciúme. Enquanto se acha sob nossa influência direta, mormente nos trabalhos espirituais de ordem coletiva, em que age como válvula captadora das forças gerais dos assistentes, desfruta bom ânimo e alegria, porque o médium é sempre uma fonte que dá e recebe, quando em função entre os dois planos; terminada, contudo, a tarefa, Isaura volta às tristes condições a que se relegou.
— Não há, porém, algum recurso para socorrê-la? — indaguei, curioso.
— Sem dúvida — elucidou o orientador da pequena e simpática instituição e, porque não a abandonamos, ainda não sucumbiu. É imprescindível, todavia, num processo de semelhante natureza, agir com cautela, sem humilhá-la e sem feri-la. Quando defendemos um broto tenro, do qual é justo aguardar preciosa colheita no porvir, é necessário combater os vermes invasores, sem atingi-lo. Crestar o grelo de hoje é perder a colheita de amanhã.
Nossa irmã é valorosa cooperadora, revela qualidades apreciáveis e dignas,
porém, não perdeu ainda a noção de exclusivismo sobre a vida do companheiro e, através dessa brecha que a induz a violentas vibrações de cólera, perde excelentes oportunidades de servir e elevar-se. Hoje, viveu um dos seus dias mais infelizes, entregando-se totalmente a esse gênero de flagelação interior. Reclama-nos concurso ativo, nesta noite, pois cada servo acordado para o bem, quando se projeta em determinada faixa de vibrações inferiores durante o dia, marca quase sempre uma entrevista pessoal, para a noite, com os seres e as forças que a povoam.
Estampou na fisionomia significativa expressão e acrescentou:
— Enquanto a criatura é vulgar e não se destaca por aspirações de ordem superior, as inteligências pervertidas não se preocupam com ela; no entanto, logo que demonstre propósitos de sublimação, apura-se-lhe o tom vibratório, passa a ser notada pelos característicos de elevação e é naturalmente perseguida por quem se refugia na inveja ou na rebelião silenciosa, visto não conformar-se com o progresso alheio.
Convenci-me de que o caso assumiria grande importância para os meus
estudos particulares e, compreendendo que Margarida já recebera grandes
vantagens, pedi permissão ao nosso Instrutor, após o consentimento de
Sidônio, para observar naquela noite o conflito inquietante entre a missionária e
os que se lhe prendiam às teias escuras do sentimento.
Gúbio concordou, sorridente.
Aguardar-me-ia o regresso no dia seguinte.
Nosso grupo retirou-se conduzindo a doente e o esposo infinitamente
satisfeitos e coloquei-me, ao lado de Sidônio, em interessante conversação.
— Por enquanto — explicou-me a certa altura da útil palestra —, este
domicílio está sob a guarda dos nossos processos de vigilância. Entidades perturbadoras ou criminosas não dispõem de acesso até aqui, mas nossa amiga,
transtornada pelo ciúme, vai, ela mesma, ao encalço de maus conselheiros.
Esperemos que abandone o veículo de carne, sob a ação do sono, e verás, de perto.
Decorridas apenas duas horas, vimos o senhor Silva que nos acenava de
porta próxima, já desligado do corpo físico. Sidônio levantou-se e, convocando um de seus auxiliares, recomendou-lhe acompanhasse o dono da casa em
proveitosa excursão de estudos.
O irmão Silva, junto de nós, alegou, pesaroso:
— Tanto desejava que Isaura viesse, mas não me atendeu aos apelos!
— Deixa-a! — observou Sidônio, com inflexão de energia na voz —
naturalmente ainda hoje não se acha preparada para atender às lições.
O interlocutor mostrou profunda tristeza no semblante calmo, porém não
vacilou. Seguiu, sem delongas, o cooperador que lhe era apresentado.
Mais alguns minutos e D. Isaura, fora do corpo de carne, surgiu-nos à vista,
revelando o perispírito intensamente obscuro. Passou rente a nós sem prestar-nos a mínima atenção, mostrando-se encarcerada em absorvente idéia fixa.
Sidônio endereçou-lhe algumas palavras amigas, que não foram
absolutamente ouvidas. Tentou o amigo tocá-la com a destra luminosa, mas a
médium precipitou-se em desabalada carreira, deixando-nos perceber que a
nossa aproximação lhe constituía, naqueles instantes, aflitiva tortura.
Encontrava-se incapaz de assinalar-nos a presença; entretanto, percebia-nos,
instintivamente, as vibrações mentais e demonstrava temer o contato
espiritual conosco.
O benfeitor explicou-me que poderia constrangê-la a ouvir-nos, obrigando-a a submeter-se, sem reservas, à nossa influência; no entanto, semelhante
atitude de nosso lado implicaria a supressão indébita das possibilidades
educativas. Isaura, no fundo, era senhora do próprio destino e, na experiência
íntima, dispunha do direito de errar para melhor aprender o mais acertado caminho de defesa da própria felicidade.
Ali estava, a fim de ajudá-la, quanto possível, na preservação das forças físicas, mas não para algemá-la a atitudes com que ainda não pudesse concordar espontâneamente, nem mesmo em nome do bem que não reclama escravos em sua ação e, sim, servidores livres, contentes e otimistas.
Com grande surpresa para mim, o prestimoso guardião continuou explicando que aquela senhora, efetivamente, detinha extensas possibilidades no serviço aos semelhantes. Caso quisesse perdê-las temporàriamente, outro recurso não nos cabia senão o de entregá-la à corrente da própria vontade, até que um dia conseguisse ela própria despertar em plano de compreensão mais alta. Sabia, à saciedade, que o marido não lhe era propriedade exclusiva, que o ciúme tresloucado só poderia conduzi-la a perigosa situação espiritual, não ignorava que a palavra do Mestre exortava os aprendizes ao perdão e ao amor
para que os companheiros mais infelizes não se projetassem nos
despenhadeiros fundos da estrada. Entretanto, se os seus desígnios se demorassem na linha contrária ao roteiro que o plano superior lhe havia traçado,
só nos restaria deixá-la circunscrita aos círculos da mente em desânimo ou em
desespero, a fim de que o tempo lhe ensinasse o reajustamento próprio.
Depois de pacientes elucidações, Sidônio concluiu num sorriso melancólico:
— Educação não vem por imposição. Cada Espírito deverá a si mesmo a
ascensão sublime ou a queda deplorável.
A esse tempo, acompanhávamos a senhora Silva, fora do corpo de carne, a fugir de seu domicílio para a via pública. Estugou o passo até encontrar velha casa desabitada, a cuja sombra se lhe depararam dois malfeitores desencarnados, inimigos sagazes do serviço de libertação espiritual de que se convertera em devotada servidora. É evidente que a esperavam com o propósito deliberado de intoxicar-lhe o pensamento.
Abeiraram-se dela, amistosos e macios, sem se aperceberem da nossa
presença.
— Com que então, Dona Isaura — disse um dos embusteiros, apresentando na voz mentiroso acento de compaixão —, a senhora tem sofrido bastante em seus respeitáveis sentimentos de mulher...
— Ah! meu amigo — clamou a interpelada visivelmente satisfeita por
encontrar alguém que se lhe associasse às dores imaginárias e infantis —
‘então, o senhor também sabe?
— Como não? — comentou o interlocutor, enfático — sou um dos Espíritos que a “protegem” e sei que seu esposo lhe tem sido desalmado verdugo. A fim de “ajudá-la”, tenho seguido o infeliz, por toda parte, surpreendendo-lhe as traições aos compromissos domésticos.
D. Isaura, em lágrimas, confiou-se ao fingido amigo.
— Sim — gritou, molestada —, esta é que é a verdade! Sofro infinitamente... Não existe neste mundo criatura mais desventurada que eu...
— Reconheço — acentuou o loquaz perseguidor —, reconheço a extensão
de seus padecimentoS morais, vejo-lhe o esforço e o sacrifício e não ignoro que seu marido eleva a voz nas preces, através das sessões habituais, para simplesmente acobertar as próprias culpas. Por vezes, em plena oração, entrega-se a pensamentos de lascivia, fixando senhoras que lhe frequentam o lar.
Envolvendo a médium imprevidente na melifluidade das frases, aduzia:
— É um absurdo! Dói-me vê-la algemada a um patife mascarado de apóstolo.
— É isto mesmo... — confirmava a pobre senhora, qual se fora andorinha
delicada, portadora de importante mensagem, repentinamente presa num
tabuleiro de mel —, estou rodeada de gente desonesta. Nunca sofri tanto!
Indicando o quadro triste, Sidônio informou-me:
— Antes de tudo, os agentes da desarmonia perturbam-lhe os sentimentos
de mulher, para, em seguida, lhe aniquilarem as possibilidades de missionária.
O ciúme e o egoísmo constituem portas fáceis de acesso à obsessão
arrasadora do bem. Pelo exclusivismo afetivo, a médium, nesta conversação, já
se ligou mentalmente aos ardilosos adversários de seus compromissos
sublimes.
Deixando transparecer imensa tristeza, acrescentou:
— Repara.
O inteligente obsessor abraçou a senhora, parcialmente desligada do
corpo físico, e prosseguiu:
— Dona Isaura, acredite que somos seus leais amigos. E os protetores
verdadeiros são aqueles que, como nós, lhe conhecem os padecimentos ocultos. Não é justo que se submeta às arbitrariedades do marido infiel. Abstenha-se de receber-lhe o séquito de companheiros hipócritas, interessados em
orações coletivas, que mais se assemelham a palhaçadas inúteis. É um perigo
entregar-se a práticas mediúnicas, qual vem fazendo em companhia de gente
dessa espécie... Tome cuidado!...
A médium invigilante arregalou os olhos, impressionada com a estranha
inflexão impressa nas palavras ouvidas, e gritou:
— Aconselhe-me, Espírito generoso e amigo, que tão bem me conhece o
martírio silencioso!
O interlocutor, na intenção de destruir a célula iluminativa que funcionava com imenso proveito no santuário doméstico da jovem senhora, assediada agora por seus argumentos adocicados e venenosos, observou com malicia:
— A senhora não nasceu com a vocação do picadeiro. Não permita a
transformação de sua casa em sala de espetáculo. Seu marido e suas relações
sociais exageram-lhe as faculdades. Precisa ainda de longo tempo para
desenvolver-se suficientemente.
E envolvendo-a nos pesados véus da dúvida que anulam tantos
trabalhadores bem intencionados, aduziu:
— Já meditou bastante na mistificação inconsciente? Está convencida de
que não engana os outros? É indispensável acautelar-se. Se estudar a grave questão do Espiritismo, com inteligência e acerto, reconhecerá que as mensagens escritas por seu intermédio e as incorporações de entidades
supostamente benfeitoras não passam de pálidas influências de Espíritos
perturbados e de alta percentagem dos produtos de seu próprio cérebro e de sua sensibilidade agitada pelas exigências descabidas das pessoas que lhe frequentam a casa. Não vê a plena consciência com que se entrega ao
imaginado intercâmbio? Não creia em possibilidades que não possui. Trate de
preservar a dignidade de sua casa, mesmo porque seu esposo não tem outro objetivo senão o de utilizar-lhe a credulidade excessiva, lançando-a a triste aventura do ridículo.
A pobre criatura, tão ingênua e prestimosa, registrava com visível terror
aquela conceituação do assunto.
Espantado com a passividade de Sidônio, ante aquele assalto, enderecei-lhe a palavra, respeitoso, porém menos tranqüilo:
— Não será razoável defendê-la?
Ele sorriu compreensivamente e elucidou:
— Todavia, que fizemos, há poucas horas, no culto da prece e do socorro fraternal, senão prepará-la à própria defensiva?
Trabalhou mediúnicamente conosco; ouviu formosa e comovedora preleção evangélica contra os perigos do egoísmo enfermiço; colaborou, decidida, para que o bem se concretizasse e ela própria emprestou-nos os lábios a fim de ensinarmos princípios de salvação em nome do Cristo, a quem deveria confiar-se. Entretanto, apenas porque o esposo se dispôs a justa gentileza com as damas que lhe buscaram a companhia esclarecedora e fraterna, obscureceu o pensamento no ciúme destruidor e perdeu o equilíbrio íntimo, entregando-se, inerme, a entidades que lhe exploram o sentimentalismo.
Fêz significativo gesto, apontando os malfeitores desencarnados, e explicou:
— Estes companheiros retardados procedem com os médiuns à maneira de ladrões que, depois de saquearem uma casa, acordam o dono, hipnotizam-no e obrigam-no a tomar-lhes o lugar, compelindo-o a sentir-se na condição de
mentiroso e mistificador. Aproximam-se da mente invigilante, dilaceram-lhe a harmonia, furtam-lhe a tranquilidade e, depois, com sarcasmo imperceptível e sutil, obrigam-na a acreditar-se fantasiosa e desprezível. Muitos missionários se deixam atropelar pela falsa argumentação que acabamos de ouvir e menosprezam as sublimes oportunidades de estender o bem, através de preciosa sementeira que lhes enriqueça o futuro.
— Mas não há recurso — inquiri, sensibilizado — de afastar semelhantes
malfeitores?
— Sem dúvida — elucidou Sidônio, bem humorado —, em toda parte existe contenção e panacéia, remediando situações pela violência ou pelo engodo prejudiciais, mas, na intimidade de nossa tarefa, que será mais aconselhável?
Espantar moscas ou curar a ferida?
Sorriu, enigmático, e prosseguiu:
— Tais dificuldades são lições valiosas que o Espírito do medianeiro, entre
encarnados e desencarnados, deve aproveitar em benditas experiências e não nos compete subtrair o ensinamento ao aprendiz. Enquanto um trabalhador da mediunidade empresta ouvido a histórias que lhe lisonjeiem a esfera pessoal, disso fazendo condição para cooperar na obra do bem, quer dizer que ainda estima o personalismo inferior e o fenômeno, acima do serviço que lhe cabe no plano divino. Nessa posição, demorar-se-á longo tempo entre desencarnados ociosos que disputam a mesma presa, anulando valiosa ocasião de elevar-se, porque, depois de certo tempo de auxílio desaproveitado, perde provisoriamente a companhia edificante de irmãos mais evolvidos que tudo fazem inútilmente pelo reerguer no caminho. Então cai vibratóriamente no nível moral a que se ajusta, convive com as entidades cujo contacto prefere, e acorda, mais tarde, verificando as horas preciosas que desprezou.
A esse tempo, o obsidente de Dona Isaura afirmava-lhe, palrador.
— Estude a senhora o próprio caso. Consulte cientistas competentes. Leia as Últimas novidades em psicanálise e não perca sua oportunidade de restauração, sob pena de enlouquecer.
E comentava, sacrílego:
— Falo-lhe em nome das Esferas Superiores na qualidade de amigo fiel.
— Sim... compreendo... — concordava a interlocutora, tímida e desapontada.
Nesse momento, Sidônio abeirou-se do grupo e fêz-se visível para Dona
Isaura, hipnotizada pelos perseguidores, e a médium registrou-lhe a presença com alguma dificuldade, exclamando:
— Vejo Sidônio, nosso devotado amigo espiritual!
O verboso obsessor, que de maneira alguma percebia a nossa vizinhança, em virtude do baixo padrão emocional em que se mantinha, zombou, franco:
— Nada disso. A senhora nada vê. É pura ilusão. Abandone o vicio mental para furtar-se a maiores desequilíbrios.
Sidônio voltou algo triste e informou sem rebuços:
— Desde o instante em que Isaura se projetou na zona sombria do ciúme, tem a matéria mental em posição difícil e não se acha em condições de
compreender-me. Mas, poderemos socorrê-la de outro modo.
Em volitação rápida, no que foi seguido por mim, encontrou o marido da
medianeira numa reunião instrutiva, junto de vários amigos espirituais, e
recomendou-lhe tomar o corpo físico sem perda de tempo, a fim de auxiliar a esposa em dificuldade.
O irmão Silva não hesitou.
Em breve, regressava à câmara conjugal, reapossando-se do veículo denso.
O corpo da senhora, ao lado dele, arfava em reiteradas contorções,
acorrentado a indizível pesadelo.
Dócil à influenciação de Sidônio, procurou despertá-la, sacudindo-lhe o
busto, delicadamente.
Isaura, em copioso pranto, retornou ao campo carnal sem detença, abrindo os olhos assustadiços:
— Oh! como sou infeliz! — bradou, angustiada — estou sozinha!
Sidônio, quase incorporado ao marido complacente e bondoso, levava-o a falar, construtivamente:
— Lembra-te, querida, de nossa fé e de quanto temos recebido de nossos amados benfeitores espirituais!
— Nada disso! —retrucou, Irritada.
— Como assim? — tornou ele, paciente — não temos sido tão amparados, através de tua própria mediunidade?
— Nunca! nunca... — protestou a pobre senhora —, tudo é uma farsa. As mensagens que recebo são pura atividade de minha imaginação. Tudo é expressão de mim mesma.
— Mas ouve, Isaura! — aduziu o esposo, sorrindo — jamais foste
mentirosa. Já sei. Caíste nas malhas dos nossos infelizes irmãos que te
conduzem ao purgatório do ciúme terrível, mas Jesus nos auxiliará no oportuno
reajustamento.
Nesse momento, Sidônio voltou-se para mim e lembrou:
— Penso, André, que já assististe à fase culminante da lição. E esta
conversa agora seguirá até muito longe. Com o milagroso concurso das horas,
pacificaremos a mente da servidora respeitável, mas exclusivista e invigilante.
Volta ao teu círculo de trabalho e guarda o ensinamento desta noite.
Profundamente tocado pelo que vira, agradeci e afastei-me.

Capítulo 4
Acomodados, de novo, no aposento próximo, buscava soerguer o ânimo de Neves, positivamente desapontado.
Arrojara-se o companheiro ao clima da dignidade ofendida, dando a impressão de que a família encarnada ainda lhe pertencia. Exprobrava a conduta do genro.
Exalçava os merecimentos da filha. Aludia ao passado, quando ele próprio vencera lances difíceis na luta sentimental.
Desculpava-se.
Ouvia-lhe, condoído, os apontamentos, a refletir, de minha parte, quanto à dificuldade com que somos todos nós defrontados para dissipar a ilusão da posse sobre os outros. Não fosse a obrigação de respeitar-lhe os sentimentos e, certo, me exorbitaria, ali mesmo, em comprida tirada filosófica, recomendando o desprendimento: contudo, logrei apenas confortá-lo:
— Não se aflija. Desde muito aprendi que para as pessoas desencarnadas, quase sempre, as portas do lar se fecham no mundo, quando a morte lhes cerra os olhos.
Entretanto, não pude prosseguir.
À guisa de duas crianças enlevadas e jubilosas, Nemésio e Marina penetraram a câmara, fugindo claramente à presença da enferma.
Guardavam no semblante a expressão dos namorados felizes, quando alimentam o clássico «enfim sós», trancando-se contentes.
Dispus-me, instintivamente, a sair, mas Neves sustou-me o impulso de retirada, convidando-me, aturdido:
— Fique, fique... Não louvo a indiscrição; no entanto, estou, ao lado de minha filha, em sentido direto, simplesmente há alguns dias e devo saber o que ocorre, para ser útil...
A esse tempo, Nemésio enlaçara a enfermeira, qual se voltasse, de improviso, aos arrebatamentos da juventude. Amimava-lhe as mãos miúdas e os cabelos sedosos, reportando-se ao futuro. Justificava-se, copiando as preocupações de um adolescente, interessado em vacinar a escolhida contra o ciúme. Deveriam ser bons para Beatriz, às portas do fim, e agradecer ao Destino que os livrava dos aborrecimentos e percalços de um desquite, mesmo amigável...
Ouvira o médico, na véspera, informando-se de que a doente não conseguiria viver mais que algumas semanas. E sorria, qual menino travesso, explicando que não admitia a sobrevivência da alma; no entanto, a seu ver, se houvesse vida além da morte, não desejava que a esposa partisse, nutrindo por eles ressentimentos quaisquer. Apaixonado, procurava convencer-se de que se via correspondido, cravando a atenção nos olhos enigmáticos da companheira, a quem se reconhecia imanizado por intensa atração.
Marina retribuia, como quem se deixava querer bem; no entanto, apresentava o fenômeno singular da emoção jungida a ele e o pensamento voltado ao outro, empenhando-se, por todos os meios, a encontrar nesse outro o incentivo necessário a essa mesma emoção.
Nemésio comentava os próprios empeços, sensibilizado.
Confessava-lhe devoção inexcedível. Não a queria de ânimo inquieto. De futuro, abandonaria os negócios. Viveriam felizes, na casinha de São Conrado, que transformaria em bangalô confortável, entre o verde do mar e o verde da terra.
Mandaria aprestar a reconstrução em estilo novo, a fim de que a moradia os recebesse, no momento oportuno. Que ela confiasse. Aguardaria apenas a modificação do próprio estado social para conferir-lhe o título de esposa, esposa para sempre.
Isso tudo era dito num jogo de manifestações carinhosas em que a sinceridade prevalecia num lado e o cálculo no outro.
Assinalei, porém, estranha ocorrência.
Ele e ela comunicavam-se, entre si, as mais ternas expansões de encantamento recíproco, sem ser dissoluto, e pareciam aderir, automaticamente, às impressões que esboçávamos, de vez que acompanhávamos os mínimos gestos dos dois, com aguçada observação, prejulgando-lhes os desígnios com o fundo de nossas próprias experiências inferiores já superadas.
Semelhantes registros que formulamos, com absoluta imparcialidade, são dignos de nota, porqüanto, atento qual me achava ao estudo, vimo-nos obrigados a reconhecer que a nossa expectativa maliciosa, aliada ao espírito de censura, estabelecia correntes mentais estimulantes da turvação psíquica de que ambos se viam acometidos, correntes essas que, partindo de nós na direção deles, como que lhes agravava o apetite sensual.
O marido de Beatriz acentuava, em transportes de felicidade juvenil, embora a voz ciciante, o anseio com que lhe aguardava o carinho permanente no refúgio caseiro.
De inopinado, porém, a jovem prorrompeu em pranto copioso.
O companheiro beijou-lhe a face, aspirando a aliviar-lhe a tensão convulsiva.
De nosso lado, entretanto, reparávamos que Marina se fixava, cada vez mais, no moço cuja figura se lhe engastava à imaginação.
Escabroso, sem dúvida, o conflito de que se verificava possuída, à vista da sinceridade inequívoca de todas as promessas que lhe eram endereçadas.
Olvidando os compromissos abraçados, perante a esposa, que lhe requisitava, naquela hora, mais amplas evidências de fidelidade e ternura, bandeara-se o chefe da casa, apaixonadamente, para ela, entregando-se-lhe sem reservas. Inteligente bastante para entender quanto se lhe debilitara o raciocínio de homem circunspecto, a menina identificava a fase perigosa da partida infeliz a que se lançara e aturdia-se, ali, confundida entre aflições e remorsos a lhe arpoarem o coração.
Compelidos pelas circunstâncias à penetração dos assuntos em exame, assinalávamos as telas mentais da moça, a se lhe derramarem do Intimo, irradiando-lhe a história.
Fizera-se querida pelo maduro genro de Neves, sem dedicar-lhe outros sentimentos que não fossem reconhecimento e admiração... Todavia, agora que os acontecimentos lhe impeliam a alma na direção de laços mais profundos, tremia pelas indébitas concessões que lhe havia feito. Remoía-lhe no espírito as recônditas reminiscências de sua aventura afetiva, recapitulando todos os sucessos pelos quais havia atraído o protetor experiente aos seus métodos sutis de sedução, para concluir, assustada, que amava até à loucura aquele rapaz franzino, que se lhe destacava do pensamento, através de cativantes apelos da memória.
Dentro dela, embatia-se guerra terrível de emoções e sensações.
Nemésio consolava-a, formulando frases de paternal solicitude. E, ao responder-lhe às reiteradas perguntas, quanto ao choro intempestivo, a jovem adotou largo processo de perfeita dissimulação, invocando problemas domésticos para articular
evasivas com que encobria a realidade.
Tentando esquivar-se de si mesma, reportou-se a supostas agruras do lar.
Salientou exigências maternas, falou em dificuldades financeiras, alegou fantásticas humilhações que colhia no trato da irmã adotiva, mencionou incompreensões do genitor, em rixas constantes nos círculos da família...
O interlocutor reconfortou-a. Que não se amofinasse. Não estaria a sós.
Partilhar-lhe-ia todos os impedimentos e dissabores, fossem quais fossem. Tivesse paciência. O desenlace de Beatriz, indicado para breves dias, ser-lhes-ia o marco fundamental da ventura definitiva.
Exprimia-se Nemésio em tom de súplica. E talvez percebendo que apenas à força de palavras não conseguiria subtrai-la aos soluços, arrancou de pasta próxima um livro de cheques, colocando-lhe expressivo concurso amoedado nas mãos que o lenço molhado umedecera.
A moça pareceu mais comovida, exibindo no rosto a apreensão de quem se recriminava sem qualquer justificativa de consciência, ao passo que ele a enlaçava, afetuoso. No silêncio que sobreveio, voltei-me para Neves, mas não consegui pronunciar palavra.
Não obstante desencarnado, o amigo se me afigurava agora um homem positivamente vulgar da Terra, que a revolta azedava. Sobrecenho crispado alterava-lhe a feição no desequilíbrio vibratório que precede as grandes crises de violência.
Receava se lhe transfigurasse a calamidade emotiva em agressão, mas sucedeu o imprevisto.
A súbitas, venerando amigo espiritual penetrou a câmara.
Arrebatadora expressão de simpatia marcava-lhe a presença. Radioso halo circundava-lhe a cabeça; no entanto, não era a luz suave a se lhe extravasar docemente da aura de sabedoria que me impressionava e sim a substância invisível de amor que lhe emanava da individualidade sublime.
Fitei-lhe os olhos, de relance, com a idéia enternecedora de quem revia um companheiro, longamente esperado por aflitivas saudades acumuladas no coração.
Fluidos calmantes banhavam-me todo, qual se fosse visitado no âmago do ser por inexplicáveis radiações de envolvente alegria.
Onde teria conhecido, nas trilhas do destino, aquele amigo que se me impôs ao sentimento qual irmão de velhos tempos? Debalde vascolejei a memória naqueles segundos inolvidáveis.
Num átimo, vi-me recambiado às sensações puras da infância. O emissário, que estacara à frente de nós, não me fazia retomar simplesmente a segurança a que me habituara, quando menino, ante os braços paternos, mas também ao carinho de minha mãe, que nunca se me apartara do pensamento.
Oh! Deus, em que forja da vida se constituem esses elos da alma? em que raízes de júbilo e sofrimento, através das reencarnações numerosas de trabalho e esperança, dívidas e resgates, se compõe a seiva divina do amor que aproxima os seres e lhes transfunde os sentimentos numa só vibração de confiança recíproca?
Levantei meus olhos de novo para o benfeitor que se avizinhava e fui compelido a sofrear a própria emotividade a fim de não retê-lo instintiva-mente em arremessos de regozijo.
Erguemo-nos de chofre.
Após cumprimentá-lo, disse Neves, então desanuviado, a apresentar-me quase sorrindo:
— André, abrace o Irmão Félix...
Adiantou-se, porém, o recém-chegado, ofertando-me um abraço e proferindo saudação calorosa, com o evidente propósito de frustrar quaisquer elogios no nascedouro.
— Grande contentamento o de vê-lo — disse, benevolente.
— Deus o abençoe, meu amigo...
A comoção, entretanto, imobilizava-me. Não logrei arrancar do coração à boca as expressões com que anelava pintar o meu enlevo, mas osculei-lhe a destra com a simplicidade de uma criança, rogando-lhe mentalmente receber as lágrimas que me caíam da alma, por mudo agradecimento.
Ocorreu, em seguida, algo de inusitado.
Nemésio e Marina transferiram-se, de repente, a novo campo de espírito.
Confirmei a impressão de que a nossa curiosidade enfermiça e a revolta que dominava Neves até então haviam funcionado ali por estímulos ao magnetismo animal a que se ajustavam os dois enamorados, que nem de leve desconfiavam da minuciosa observação a que se viam sujeitos, porquanto bastou que o irmão Félix lhes dirigisse compassivo olhar para que se modificassem, incontinenti.
A visão de Beatriz enferma cortou-lhes o espaço mental, à feição de um raio.
Esmoreceram-se-lhes os gestos de paixão. Assemelhavam-se ambos a um par de crianças, atraidas uma para a outra, cujo pensamento se transfigura, de improviso, ante a presença materna.
E não era só isso. Não podia auscultar o mundo Intimo de Neves; contudo, de minha parte, súbita compreensão me inundou a alma.
E se eu estivesse no lugar de Nemésio? Estaria agindo melhor? — Silenciosas indagações se me incrustavam na consciência, impelindo-me o espírito a raciocinar em nível mais alto.
Fitei o atribulado chefe da casa, possuido de novos sentimentos, percebendo nele um verdadeiro irmão que me cabia entender e respeitar.
Embora confessando a mim mesmo, com indisfarçável remorso, a impropriedade da atitude que assumira, momentos antes, prossegui estudando a metamorfose espiritual que se processava.
Marina passou a revelar benéfica reação, como me estivesse admiravelmente conduzida em ocorrência mediúnica, de antemão preparada. Recompôs-se, do ponto de vista emotivo, patenteando integral desinteresse por qualquer forma de entretenimento físico, e falou, com delicadeza, da necessidade de voltar aos cuidados que a doente exigia. Nemésio, a refletir-lhe a renovada posição interior, não ofereceu qualquer embargo, acomodando-se em poltrona próxima, enquanto a jovem se retirava, tranqüila.
Reparei que Neves ansiava conversar, desabafar-se; no entanto, o benfeitor, que nos granjeara os corações, apontou o esposo de Dona Beatriz e convidou:
— Meus amigos, nosso Nemésio está seriamente enfermo, sem que ainda o saiba. Ignoro se já lhe notaram a deficiência orgânica... Procuremos socorrê-lo.

Capítulo 3
Na peça isolada, o amigo cravou os olhos lúcidos nos meus e obtemperou:
— Após a desencarnação, achamo-nos na segunda fase da própria existência e
ninguém, na Terra, imagina as novas condições que nos tomam de assalto. De começo, renovamos a vida...
Equipes salvadoras, apoio na prece, estudo das vibrações, escola da caridade.
Ensaiamos, felizes, o culto dos grandes sentimentos humanos... Depois, quando trazidos, de retorno, ao trabalho mais íntimo, na arena doméstica, que supúnhamos varrida para sempre da memória, como na situação especial de meu caso, a didática é outra... É preciso espremer o sangue do coração para confirmar o que ensinamos com a cabeça... Avalie que me encontro nesta casa, em serviço, apenas há vinte dias e já recebi tantas punhaladas na alma, que, não fossem as necessidades de minha filha, teria fugido, incontinenti... Sem minhas observações pessoais, não teria admitido tanta leviandade em meu genro... Bilontra, fanfarrão despudorado.
Sim, sim... — tentei cortar as doloridas alegações.
Comentei, breve, a excelência do olvido de todo mal, argumentei quanto ao merecimento do auxílio silencioso, através da oração.
Neves sorriu, meio desconsolado, e ajuntou:
— Compreendo que você se reporta à vantagem do pensamento positivo na
fixação do bem e creia que, de minha parte, farei quanto puder para não esquecê-lo.
Agora, porém, tolere, por favor, as minhas considerações talvez descabidas. .. A Medicina é ciência luminosa, recheada de raciocínios puros; no entanto, muitas vezes é obrigada a descer da alta cultura para dissecar os cadáveres...
Endereçou-me o olhar de alguém que anseia derramar-se noutro alguém e
continuou:
— Saiba você que na quinta noite de minha permanência aqui, notando Beatriz
em aguda crise de sofrimento, diligenciei buscar meu genro para assisti-la em pessoa... E sabe onde o encontrei?
Nada de escritório, segundo a falsa informação que deixara em casa. Indignado,
fui surpreendê-lo numa furna penumbrosa, em plena madrugada, junto da menina que você acaba de conhecer. Os dois unidos, qual marido e mulher. Champanha correndo e música lasciva. Entidades perturbadoras e perturbadas, jungidas ao corpo dos bailarinos, enquanto outras iam e vinham, a se inclinarem sobre taças, cujo conteúdo lábios entediados não haviam conseguido sorver totalmente.
Em recanto multicolorido, onde algumas jovens exibiam formas semi-nuas em
coleios esquisitos, vampiros articulavam trejeitos, completando, em sentido menos digno, os quadros que o mau-gosto humano pretendia apresentar, em nome da arte.
Tudo rasteiro, impróprio, inconveniente... Fisguei meu genro e a colaboradora, nos braços um do outro, recordei minha filha doente e revoltei-me. Súbito desespero apossou-se de mim. Oscilou minha razão escurecida, pois cheguei a justificar, de relance, a deplorável atitude dos companheiros desencarnados que se transformam em vingadores intransigentes. O «homem velho que eu fora e o «homem renovado» que aspiro a ser digladiavam em minhas fibras recônditas...
Estacou numa pausa, rearticulando os pensamentos, e continuou:
— Tinha visto, apavorado, em outro tempo, aqueles que se animalizavam,
depois da morte, nos lares que lhes haviam sido reduto à felicidade, a se precipitarem, violentos, sobre os entes amados que lhes desertavam da afeição...
Funcionara, entusiasmado, em diversas comissões socorristas, procurando
esclarecê-los e modificá-los para o bem, a fazer-lhes sentir que as lutas morais, depois da desencarnação, se erigiriam igualmente em penosa herança para todos aqueles com os quais se desarmonizavam; advertia-os de que o túmulo esperava também quantos, na Terra, lhes sonegavam lealdade e ternura... E, bastas vezes, lograva acalmá-los para a retirada benéfica. Mas ali.. Imprudentemente agastado contra a insensibilidade do homem que me desposara a filha querida, vi-me chamado a praticar os bons conselhos que havia administrado...
O amigo fez ligeiro intervalo, enxugou as lágrimas que lhe corriam no rosto, ao
evocar a própria inconformação, e completou a frase, aditando:
— Mas não pude. Tomado de cólera incoercível, avancei, qual fera
desacorrentada, e, irrefletidamente, esmurrei-lhe a face. Ele deixou-se cair nos ombros da companheira, acusando agoniada indisposição, como se estivesse sob o impacto de súbita lipotimia... Dispunha-me, em seguida, a torcer-lhe o corpo, em meus braços rijos; entretanto, não consegui. Uma senhora desencarnada, de semblante nobre e calmo, aproximou, desarmando-me o íntimo. Não entremostrava sinais exteriores de elevação. Patenteava-se, aliás, tão profundamente humana, quanto nós mesmos. Diferenciava-se apenas através de minúsculo distintivo luminoso, que lhe brilhava palidamente no peito, qual jóia rara a emitir discreta radiação. Afagou-me, de leve, a cabeça e induziu-me à serenidade. Envergonhado, fitei-a, constrangido. A dama inesperada não me censurou, nem fez qualquer alusão ao meu gesto infeliz. Ao revés, falou-me com bondade, quanto à filha doente.
Demonstrava conhecer Beatriz, tanto quanto eu próprio. E acabou convidando-me a sair do recinto, para acompanhá-la até ao quarto da enferma.
Atendi sem relutância.
E porque a gentil interventora, no trajeto, somente se reportasse aos méritos da compreensão e da tolerância, sem qualquer referência aos desvarios da casa que vínhamos de deixar, procurei reprimir-me, para cogitar, exclusivamente, de socorro à filha em dificuldade. A mensageira anônima recolocou-me no lar, despedindo-se, delicada; e depois disso não mais a vi, pelo que, ainda agora, me lembro dela, positivamente intrigado...
Ensaiava alguma observação reconfortante, rememorando minhas experiências,
quando Neves, interpretando-me os pensamentos, obtemperou depois de longa
pausa:
— Você, André, nunca se viu defrontado por acontecimentos assim desagradáveis?
Recordei, emocionadamente, as primeiras impressões que me haviam
transtornado a sensibilidade, após a desencarnação. Reconstituí na memória todas
as telas em que me surpreendera desanimado, excitado, dilacerado, vencido...
As transformações domésticas, os empeços familiares, os impositivos da luta humana e as sugestões da natureza física que me haviam alterado a esposa e os filhos, na Terra, quando se reconheceram sem a minha presença direta, retornaram-me ao coração. Senti-me mais estreitamente ligado ao meu interlocutor, assimilando-lhe o torturado influxo mental, e comentei:
— Sim, meu amigo, atravessada a grande barreira, os meus problemas, a
princípio, foram enormes...
Entretanto, não foi possível desabafar-me. Cavalheiro maduro e simpático
penetrou o recinto, compreensivelmente sem perceber-nos.
Neves, contrafeito, indicou-o, explicando-me:
— É Nemésio, meu genro...
O recém-chegado mirou-se, atenciosamente, em espelho próximo, repassou
lenço alvo sobre a testa suarenta e, quando reajustava a gravata bem-posta, escutou prolongado suspiro. Lançou-se, incontinenti, para a câmara contígua e seguimo-lo.
Marina veio recebê-lo com amável sorriso, conduzindo-o à cabeceira da
senhora, que passou a fitá-lo entre confortada e abatida.
Dona Beatriz estendeu a mão descarnada que o marido beijou. Trocando com
ela enternecido olhar, acomodou-se Nemésio rente aos travesseiros, a endereçar-lhe perguntas carinhosas, ao mesmo tempo que lhe alisava a descuidada cabeleira.
A doente pronunciou algumas palavras breves, diligenciando agradá-lo, e ajuntou:
— Nemésio, você me perdoará se volto ao caso de Olímpia... A pobre criatura perdeu a casa quase que totalmente... É necessário que você lhe garanta abrigo seguro... Penso nela com os filhos ao desamparo. Tire-me dessa aflição...
O interpelado mostrou profunda emotividade e respondeu, cortês:
- Beatriz, não há dúvida alguma. Já enviei um amigo, construtor experiente, ao
local. Não se preocupe, tudo faremos sem qualquer sacrifício. Questão de tempo...
— Receio partir de uma hora para outra...
— Partir para onde?
Nemésio acariciou-lhe a fronte descolorida, sacou um sorriso amargo e
prosseguiu:
— Enquanto você estiver em tratamento, nossas viagens estão sustadas. Não é
hora de São Lourenço...
— Minha estação curativa será outra.
— Não me fale em pessimismo... Ora, ora... Onde a primavera de nossa casa?
Você anda esquecida de que nos ensinou a colocar alegria em tudo? Largue os ares sombrios... Ainda ontem, ouvi nosso médico. Você entrará em convalescença, ja, ja... Amanhã, tomarei providências definitivas para que o barraco seja levantado.
Você estará restabelecida em breve e ambos iremos ao primeiro café em casa de nossa Olímpia...
Dona Beatriz, ante o carinho dele, pareceu reanimar-se. Entreabriu-se-lhe a boca num largo sorriso, que se me afigurou uma flor de esperança num cacto de sofrimento.
Aqueles olhos imensamente lúcidos derramaram duas lágrimas de felicidade
que o esposo enxugou com gracioso gesto. Na face amarei ada, lampejaram raios
de confiança.
Experimentando-se mentalmente renovada, a enferma acreditou no
reerguimento do corpo físico e ansiou viver, viver por muito tempo ainda no aconchego familiar. Manifestando o próprio reconforto, solicitou de Marina uma
chávena de leite.
A enfermeira atendeu, comovida. E, enquanto a doente sorvia o líqüido, gole a
gole, refleti na bondade daquele homem que a palavra do companheiro me
apresentara noutras cores.
O pensamento de Nemésio revelara-se-nos, até ali, claro e puro. Trazia Dona Beatriz no cérebro, nos olhos, nos ouvidos, no coração. Dispensava-lhe a compreensão de um amigo, a ternura de um pai.
Neves endereçava-me estranho olhar, qual se estivesse, tanto quanto eu,
defrontado por indizível assombro.
Alguns momentos escoaram-se, rápidos.
Quando a enferma devolveu a xícara, outro quadro se nos desdobrou à visão.
Nemésio levantara-se rente ao leito e, por trás da cabeceira alteada, estendeu à Marina, que se mantinha do lado oposto, a mão grossa e hirsuta a que ela entregou
a destra alva e leve.
O marido passou, então, a falar brandas palavras para a esposa satisfeita, afagando, simultaneamente, os róseos dedos da jovem que, pouco a pouco, se desinibia, através do olhar brejeiro.
Contemplei Nemésio, admirado. Alteravam-se-lhe agora os pensamentos, que
me pareceram, então, incompatíveis com a sensação de respeitabilidade que ele nos inspirava.
Voltei-me, instintivamente, para Neves, e ele, indicando-me as duas mãos que
se acariciavam, uma à outra, exclamou para mim:
— Este homem é um enigma.