sexta-feira, 9 de março de 2012

ESTUDO DO LIVRO "SEXO E DESTINO" - EXPOSITORA JULIANA SOLARE


Capítulo 6

De volta ao aposento da enferma, certificamo-nos de que Nemésio e Marina haviam saido. A camareira da casa velava.
Neves, desenxabido, absteve-se de qualquer comentário. Retraíra-se no claro propósito de sopitar impulsos menos construtivos.
Recompondo-se, momentos antes, rogara do irmão Félix lhe desculpasse o ataque de cólera em que extravasara rebeldia e desespero.
Descera à inconveniência, acusava-se, humilde. Fora descaridoso, insensato, penitenciava-se com tristeza. O irmão Félix, com bastante autoridade, se quisesse,
poderia demiti-lo do piedoso mister que invocara, com o objetivo de proteger a filha; entretanto, pedia tolerância. O coração paternal, no instante crítico, não se vira preparado, de modo a escalar o nível do desprendimento preciso, declarava com amargura e desapontamento.
Félix, porém, abraçara-o com intimidade e, sorridente, ponderou que a
edificação espiritual, em muitas circunstâncias, inclui explosões do sentimento, com trovões de revolta e aguaceiros de pranto, que acabam descongestionando as vias da emoção.
Que Neves esquecesse e recomeçasse. Para isso, contava com os talentos da
oportunidade, do tempo. Obviamente por isso, o sogro de Nemésio ali se achava agora, diante de nós, transformado e Solícito.
Por indicação do paciente amigo que nos orientava, formulou uma prece,
enquanto ministrávamos socorro magnético à doente.
Beatriz gemia; no entanto, Félix esmerou-se para que se aliviasse e dormisse, providenciando, ainda, para que não se retirasse do corpo, sob a hipnose habitual do sono. Não lhe convinha, por enquanto, esclareceu ele, afastar-se do veículo fatigado. Em virtude dos órgãos profundamente enfraquecidos, desfrutaria penetrante lucidez espiritual e não seria prudente arremessá-la, de chofre, a impressões demasiado ativas da esfera diferente para a qual se transferiria, muito em breve.
Aconselhável seria a mudança progressiva. Graduação de luz, intensificando-se, a pouco e pouco.
Largamos a filha de Neves em repouso nutriente e restaurador, e demandamos a rua.
Acompanhando Félix, cujo semblante passou a denotar funda preocupação, alcançamos espaçoso apartamento do Flamengo, onde conheceríamos, de perto, os familiares de Marina.
A noite avançava.
Transpassando estreito corredor, pisamos o recinto doméstico, surpreendendo, no limiar, dois homens desencarnados, a debaterem, com descuidada chocarrice,
escabrosos temas de vampirismo.
Vale assinalar que, não obstante pudéssemos fiscalizar-lhes os movimentos e ouvir-lhes a loquacidade fescenina, nenhum dos dois lograva registrar-nos a presença. Prometiam arruaças. Argumentavam, desabridos.
Malandros acalentados, mas perigosos, conquanto invisíveis para aqueles junto dos quais se erguiam por ameaça insuspeitada.
Por semelhantes companhias, fácil apreciar os riscos a que se expunham os moradores daquele ninho de cimento armado, a embutir-se na construção enorme,
sem qualquer defesa de espírito.
Entramos. Na sala principal, um cavalheiro de traços finos, em cuja maneira de
escarrapachar-se se adivinhava, para logo, o dono da casa, lia um jornal
vespertino com atenção.
Os atavios do ambiente, apesar de modestos, denunciavam apurado gosto
feminino. O mobiliário antigo de linhas quase rudes suavizava-se ao efeito de ligeiros adornos.
Tufos de cravos vermelhos, a se derramarem de vasos cristalinos,
harmonizavam-se com as rosas da mesma cor, habilmente desenhadas nas duas telas que pendiam das paredes, revestidas de amarelo dourado. Mas, destoante e agressiva, uma esguia garrafa, contendo uísque, empinava o gargalo sobre o crivo lirial que completava a elegância da mesa nobre, deitando emanações alcoólicas que se casavam ao hálito do amigo derramado no divã.
Félix encarou-o, manifestando a expressão de quem se atormentava, piedosamente, ao vê-lo, e no-lo indicou:
— Temos aqui o irmão Cláudio Nogueira, pai de Marina e tronco do lar.
Fisguei-o, de relance. Figurou-se-me o hospedeiro involuntário um desses homens maduros que se demoram na quadra dos quarenta e cinco janeiros, esgrimindo bravura contra os desbarates do tempo. Rosto primorosamente tratado, em que as linhas firmes repeliam a notícia vaga das rugas, cabelos penteados com distinção, unhas polidas, pijama impecável. Os grandes olhos escuros e móveis pareciam imanizados às letras, pesquisando motivos para trazer um sorriso irônico aos lábios finos. Entre os dedos da mão que descansava à beira do sofá, o cigarro fumegante, quase rente ao tripé anão, sobre o qual um cinzeiro repleto era silenciosa advertência contra o abuso da nicotina.
Detínhamo-nos, curiosos, na inspeção, quando sobreveio o inopinado.
Diante de nós, ambos os desencarnados infelizes, que surpreendêramos à entrada, surgiram de repente, abordaram Cláudio e agiram sem cerimônia.
Um deles tateou-lhe um dos ombros e gritou, insolente:
— Beber, meu caro, quero beber!
A voz escarnecedora agredia-nos a sensibilidade auditiva. Cláudio, porém, não lhe pescava o mínimo som. Mantinha-se atento à leitura. Inalterável. Contudo, se não possuía tímpanos físicos para qualificar a petição, trazia na cabeça a caixa acústica da mente sintonizada com o apelante.
O assessor inconveniente repetiu a solicitação, algumas vezes, na atitude do hipnotizador que insufla o próprio desejo, reasseverando uma ordem.
O resultado não se fez demorar. Vimos o paciente desviar-se do artigo político em que se entranhava. Ele próprio não explicaria o súbito desinteresse de que se notava acometido pelo editorial que lhe apresara a atenção.
Beber! Beber!...
Cláudio abrigou a sugestão, convicto de que se inclinava para um trago de uísque exclusivamente por si.
O pensamento se lhe transmudou, rápido, como a usina cuja corrente se desloca de uma direção para outra, por efeito da nova tomada de força.
Beber, beber!... e a sede de aguardente se lhe articulou na idéia, ganhando forma. A mucosa pituitária se lhe aguçou, como que mais fortemente impregnada do cheiro acre que vagueava no ar.
O assistente malicioso coçou-lhe brandamente os gorgomilos. O pai de Marina sentiu-se apoquentado. Indefinível secura constringia-lhe o laringe. Ansiava tranqüilizar-se.
O amigo sagaz percebeu-lhe a adesão tácita e colou-se a ele. De começo, a carícia leve; depois da carícia agasalhada, o abraço envolvente; e depois do abraço de profundidade, a associação recíproca.
Integraram-se ambos em exótico sucesso de enxertia fluídica.
Em várias ocasiões, estudara a passagem do Espírito exonerado do envoltório carnal pela matéria espessa. Eu mesmo, quando me afazia, de novo, ao clima da Espiritualidade, após a desencarnação última, analisava impressões ao transpor, maquinalmente, obstáculos e barreiras terrestres, recolhendo, nos exercícios feitos, a sensação de quem rompe nuvens de gases condensados.
Ali, no entanto, produzia-se algo semelhante ao encaixe perfeito.
Cláudio-homem absorvia o desencarnado, a gulsa de sapato que se ajusta ao pé. Fundiram-se os dois, como se morassem eventualmente num só corpo. Altura idêntica. Volume igual.
Movimentos emcrônicos. Identificação positiva.
Levantaram-se a um tempo e giraram integralmente incorporados um ao outro, na área estreita, arrebatando o delgado frasco.
Não conseguiria especificar, de minha parte, a quem atribuir o impulso inicial de semelhante gesto, se a Cláudio que admitia a instigação ou se ao obsessor que a propunha.
A talagada rolou através da garganta, que se exprimia por dualidade singular.
Ambos os dipsômanos estalaram a língua de prazer, em ação simultânea.
Desmanchou-se a parelha e Cláudio, desembaraçado, se dispunha a sentar, quando o outro colega, que se mantinha a distância, investiu sobre ele e protestou:
«eu também, eu também quero!
Reavivou-se-lhe no ânimo a sugestão que esmorecia.
Absolutamente passivo diante da incitação que o assaltava, reconstituiu, mecanicamente, a impressão de insaciedade.
Bastou isso e o vampiro, sorridente, apossou-se dele, repetindo-se o fenômeno da conjugação completa.
Encarnado e desencarnado a se justaporem. Duas peças conscientes, reunidas em sistema irrepreensível de compensação mútua.
Abeirei-me de Cláudio para avaliar, com imparcialidade, até onde sofreria ele, mentalmente, aquele processo de fusão.
Para logo convenci-me de que continuava livre, no íntimo. Não experimentava qualquer espécie de tortura, a fim de render-se. Hospedava o outro, simplesmente, aceitava-lhe a direção, entregava-se por deliberação própria. Nenhuma simbiose em que se destacasse por vítima.
Associação implícita, mistura natural.
Efetuava-se a ocorrência na base da percussão.
Apelo e resposta. Cordas afinadas no mesmo tom.
O desencarnado alvitrava, o encarnado aplaudia.
Num deles, o pedido; no outro, a concessão.
Condescendendo em ilaquear os próprios sentidos, Cláudio acreditou-se insatisfeito e retrocedeu, sorvendo mais um gole.
Não me furtei à conta curiosa. Dois goles para três.
Novamente desimpedido, o dono da casa estirou-se no divã e retomou o jornal.
Os amigos desencarnados tornaram ao corredor de acesso, chasqueando,  sarcásticos, e Neves, respeitoso, consultou sobre responsabilidade.

Como situar o problema? Se víramos Cláudio aparentemente reduzido à condição de um fantoche, como proceder na aplicação da justiça? Se ao invés de bebedice, estivéssemos diante de um caso criminal? Se a garrafa de uísque fosse arma determinada, para insultar a vida de alguém, como decidir? A culpa seria de Cláudio que se submetia ou dos obsessores que o comandavam?
O irmão Félix aclarou, tranqüilo:
— Ora, Neves, você precisa compreender que nos achamos à frente de pessoas bastante livres para decidir e suficientemente lúcidas para raciocinar. No corpo físico ou agindo fora do corpo físico, o Espírito é senhor da constituição de seus atributos. Responsabilidade não é título variável. Tanto vale numa esfera, quanto em outras. Cláudio e os companheiros, na cena que acompanhamos, são três consciências na mesma faixa de escolha e manifestações conseqüentes.
Todos somos livres para sugerir ou assimilar isso ou aquilo. Se você fosse instado a compartilhar um roubo, decerto recusaria. E, na hipótese de abraçar a calamidade, em são juízo, não conseguiria desculpar-se.
Interrompeu-se o mentor, volvendo a refletir após momento rápido:
— Hipnose é tema complexo, reclamando exames e reexames de todos os ingredientes morais que lhe digam respeito. Alienação da vontade tem limites.
Chamamentos campeiam em todos os caminhos. Experiências são lições e todos somos aprendizes. Aproveitar a convivência de um mestre ou seguir um malfeitor é deliberação nossa, cujos resultados colheremos.
Verificando que o orientador se dava pressa em ultimar os esclarecimentos sem
mostrar o mínimo propósito de afastar as entidades vadias que pesavam no
ambiente, Neves voltou à carga, no intuito louvável do aluno que aspira a complementar a lição.
Pediu vênia para repisar o assunto na hora.
Recordou que, sob o teto do genro, o irmão Félix se esmerava na defesa contra aquela casta de gente. Amaro, o enfermeiro prestimoso, fora situado junto de Beatriz principalmente para correr com intrometidos desencarnados. O aposento da filha tornara-se, por isso, um refúgio. Ali, no entanto...
E perguntava pelo motivo da direção diversa. Félix expressou no olhar a surpresa do professor que não espera apontamento assim argucioso por parte do discípulo e explicou que a situação era diferente.
A esposa de Nemésio mantinha o hábito da oração. Imunizava-se espiritualmente por si.
Repelia, sem esforço, quaisquer formas-pensamentos de sentido aviltante que lhe fossem arremessadas. Além disso, estava enferma, em vésperas da desen-carnação. Deixá-la à mercê de criaturas insanas seria crueldade. Garantias concedidas a ela erguiam-se justas.
— Mas... e Cláudio? — insistiu Neves.
— Não merecerá, porventura, fraterna demonstração de caridade, a fim de livrar-se de tão temíveis obsessores?
Félix sorriu francamente bem-humorado e explicou:
— «Temíveis obsessores» é a definição que você dá. — E avançou: — Cláudio desfruta excelente saúde física. Cérebro claro, raciocínio seguro. É inteligente, maduro, experimentado.
Não carrega inibições corpóreas que o recomendem a cuidados especiais.
Sabe o que quer.
Possui materialmente o que deseja. Permanece no tipo de vida que procura. É natural que esteja respirando a influência das companhias que julgue aceitáveis.
Retém liberdade ampla e valiosos recursos de instrução e discernimento para juntar-se aos missionários do bem que operam entre os homens, assegurando edificação e felicidade a si mesmo. Se elege para comensais da própria casa os companheiros que acabamos de ver, é assunto dele. Enquanto nos arrastávamos, tolhidos pela carne, não nos ocorreria a idéia de expulsar da residência alheia as pessoas que não se harmonizassem conosco. Agora, vendo o mundo e as coisas do mundo, de mais alto, não será cabível modificar semelhante modo de proceder.
O tema desdobrava-se, assumindo aspectos novos.
Curioso, interferi:
— Mas, irmão Félix, é importante convir que Cláudio, liberto, poderia ser mais digno...
— Isso é perfeitamente lógico — confirmou. Ninguém nega.
— E por que não dissipar de vez os laços que o prendem aos malandros que o exploram?
O alto raciocínio da Espiritualidade superior jorrou, pronto:
— Cláudio certamente não lhes empresta o conceito de vagabundos. Para ele, são sócios estimáveis, amigos caros. Por outro lado, ainda não investigamos a causa da ligação entre eles para cunhar opiniões extremadas. As circunstâncias podem ser saudáveis ou enfermiças como as pessoas, e, para tratarmos um doente com segurança, há que analisar as raízes do mal e confirmar os sintomas, aplicar medicação e estudar efeitos. Aqui, vemos um problema pela rama. Quando terá nascido a comunhão do trio? Os vínculos serão de agora ou de existências passadas? Nada legitimaria um ato de violência da nossa parte, com o intuito de separá-los, a titulo de socorro. Isso seria o mesmo que apartar os pais generosos dos filhos ingratos ou os cônjuges nobres dos esposos ou das esposas de condição inferior, sob o pretexto de assegurar limpeza e bondade nos processos da evolução.
A responsabilidade tem o tamanho do conhecimento. Não dispomos de meios precisos para impedir que um amigo se onere em dívidas escabrosas ou se despenque em desatinos deploráveis, conquanto nos seja lícito dispensar-lhe o auxílio possível, a fim de que se acautele contra o perigo no tempo viável, sendo de notar-se que as autoridades superiores da Espiritualidade chegam a suscitar medidas especiais que impõem aflições e dores de importância aparente a determinadas pessoas, com o objetivo de livrá-las da queda em desastres morais iminentes, quando mereçam esse amparo de exceção.


Na Terra, a exata justiça apenas cerceia as manifestações de alguém, quando esse alguém compromete o equilíbrio e a segurança dos outros, na área de responsabilidade que a vida lhe demarca, deixando a cada um a regalia de agir como melhor lhe pareça. Adotaremosprincípios que valham menos, perante as normas que afiançam a harmonia entre os homens?
Rematando as elucidações lapidares que entre-tecia, o irmão Féllx revestira-se de um halo brilhante.
Enlevados, não encontrávamos em nós senão silêncio para significar-lhe admiração ante a sabedoria e a simplicidade.
O instrutor fitava Cláudio com simpatia, dando a entender que se dispunha a abraçá-lo paternalmente, e, receando talvez que a oportunidade escapasse, Neves, humilde e respeitoso, pediu se lhe relevasse a insistência; entretanto, solicitava fosse aclarado, ainda, um ponto dos esclarecimentos em vista.
Diante do mentor paciente, perguntou pelos promotores de guerra, entre os homens. Declarara Félix que a justiça tacitamente cerceia as ações dos que ameaçam a estabilidade coletiva. Como entender a existência de governantes transitórios, erigindo-se na Terra em verdugos de nações?
Félix sintetizou, reempregando algumas das palavras de que se utilizara:
— Dissemos «cercear» no sentido de «corrigir», «restringir». Assinalamos igualmente que toda criatura vive na área de responsabilidade que a lei lhe delimita.
Compreendendo-se que a responsabilidade de alguém se enquadra ao tamanho do conhecimento superior que esse alguém já adquiriu, é fácil admitir que os compromissos da consciência assumem as dimensões da autoridade que lhe foi atribuida. Uma pessoa com grandes cabedais de autoridade pode elevar extensas comunidades às culminâncias do progresso e do aprimoramento ou afundá-las em estagnação e decadência. Isso na medida exata das atitudes que tome para o bem ou para o mal. Naturalmente, governantes e administradores, em qualquer tempo, respondem pelo que fazem. Cada qual dá conta dos recursos que lhe foram confiados e da região de influência que recebeu, passando a colher, de modo automático, os bens ou os males que haja semeado.
Víamos, porém, que Félix não desejava estender-se em mais amplas considerações filosóficas.
Assentando no rosto a expressão de quem nos pedia transferir para depois qualquer nova interrogação, acercou-se de Cláudio, a envolvê-lo nas suaves irradiações do olhar brando e percuciente.
Estabeleceu-se ligeira e doce expectativa.
O benfeitor acusava-se emocionado. Parecia agora mentalmente distanciado no tempo.
Acariciou a cabeleira daquele homem, com quem Neves e eu, no fundo, não nos afínáramos assim tanto, semelhando-se médico piedoso, encorajando um doente menos simpático.
Aquele momento de comoção, entretanto, foi rápido, quase imperceptível, porque o irmão Félix retomou-nos a intimidade e comentou, despretensioso:
— Quem afirmará que Cláudio amanhã não será um homem renovado para o bem, passando a educar os companheiros que o deprimem? Por que atrair contra nós a repulsão dos três, simplesmente porque se mostrem ignorantes e infelizes? E admitir-se-á, porventura, que não venhamos a necessitar uns dos outros? Existem adubos que lançam emanações extremamente desagradáveis; no entanto, asseguram a fertilidade do solo, auxiliando a planta que, a seu turno, se dispõe a auxiliar-nos.
O benfeitor esboçou o gesto de quem encerrava a conversação e lembrou-nos, gentil, o trabalho em andamento.

quarta-feira, 7 de março de 2012

ESTUDO DO LIVRO LIBERTAÇÃO - CAPÍTULO 17 - JULIANA SOLARE



Assistência Fraternal

No segundo dia de serviço espiritual definitivo, na tarefa de socorro a Margarida, nossa movimentação aureolava-se de sublime entusiasmo no santuário doméstico, que novamente se revestia das doces claridades da paz.
A casa transformou-se.
Desde a véspera, Saldanha e Leôncio eram os primeiros a pedir instruções de trabalho.
Teimavam em dizer que os adversários do bem voltariam à carga.
Conheciam a crueldade dos ex-companheiros e, porque muitos apaniguados de Gregório viriam fiscalizar a normalidade do processo alienatório da esposa de Gabriel, Gúbio começou por traçar expressivas fronteiras, ao redor da casa, mantidas dali em diante sob a responsabilidade dos colaboradores que Sidônio nos cedera por gentileza.
Enquanto aprestávamos a defensiva, o jovem casal louvava a alegria que
lhes retornara aos corações.
Margarida sentia-se leve, bem disposta, e rendia graças ao Eterno pelo
“milagre” com que fora contemplada. O esposo formulava mil promessas de
trabalho espiritual, com o júbilo do neófito embriagado de sublime esperança.
De nosso lado, porém, as responsabilidades passaram a crescer.
Atendendo às determinações de Gúbio, Saldanha dirigiu-se ao interior da
casa e trouxe, por influência indireta, velha serva encarnada, que espanou móveis, bruniu adornos e abriu as janelas, dando passagem a vastas correntes de ar fresco.
O prédio como que se reconciliava com a harmonia.
As medidas referentes à limpeza prosseguiam adiantadas, quando vozes ásperas se fizeram ouvir, partidas da via pública.
Elementos da falange gregoriana gritavam por Saldanha, que compareceu, junto de nós, desapontado e algo aflito. Nosso Instrutor paternalmente lhe recomendou:
— Vai, meu amigo, e mostra-lhes o novo rumo. Tem coragem e resiste ao venenoso fluido da cólera. Usa a serenidade e a delicadeza.
Saldanha estampou na fisionomia perceptível gesto de reconhecimento e
avançou na direção dos recém-chegados.
Uma das entidades de horrível semblante, de mãos à cintura, gritou-lhe,
irreverente:
— Então? que houve aqui? Traindo o comando?
O interpelado, que os últimos sucessos haviam alterado profundamente,
respondeu humilde, mas firme:
— Meus compromissos foram assumidos com a própria consciência e acredito dispor do direito de escolher a minha rota.
— Ah! — disse o outro, sarcástico — tens agora o direito... Veremos...
E tentando insinuar-se de maneira direta, clamou:
— Deixa-me entrar!
— Não posso — esclareceu o ex-perseguidor —, a casa segue noutra direção.
O interlocutor lançou-lhe um olhar de revolta insofreável e indagou
estentórico:
— Onde tens a cabeça?
— No lugar próprio.
— Não temes, porventura, as consequências do gesto impensado?
— Nada tenho de que penitenciar-me.
O visitante fêz carantonha de irritação extrema e aduziu:
— Gregório saberá.
E retirou-se acompanhado pelos demais.
Transcorridos alguns instantes, outros elementos assomaram à entrada,
assustadiços e insolentes, com a repetição dos mesmos quadros.
Em breve, cenas diversas passaram a desdobrar-se.
Gúbio colocou sinais luminosos nas janelas, indicando a nova posição
daquele abrigo doméstico, opondo-se às manchas de sombra que provinham
dali; e, naturalmente atraidos por eles, Espiritos sofredores e perseguidos, mas
bem intencionados, apareceram em grande número.
A primeira entidade a aproximar-se foi uma senhora que se ajoelhou, à
entrada, suplicando:
— Benfeitores de Cima, que vos congregastes nesta casa, em serviço de
luz, livrei-me da aflição!... Piedade! piedade!...
O nosso Instrutor atendeu-a, imediatamente, permitindo-lhe a passagem.
E, no pátio ao lado, contou em pranto que se mantinha, há muito tempo, num edifício próximo, segregada por verdugos impassíveis que lhe exploravam
antigas disposições mórbidas para o vício. Achava-se, porém, cansada do erro e suspirava por mudança benéfica. Penitenciava-se. Pretendia outra vida, outro rumo. Implorava asilo e socorro.
O orientador consolou-a, bondoso, e prometeu-lhe amparo.
Logo após, surgiram dois velhos, rogando pousada. Ambos haviam desencarnado em extrema indigência num hospital. Revelavam-se possuídos de imenso terror. Não se conformavam com a morte. Temiam o desconhecido e mendigavam elucidações. Padeciam de verdadeira loucura.
Curiosa dama compareceu pedindo providências contra Espíritos pervertidos e perturbadores que, em grande bloco, lhe não permitiam aproximar-se do filho, instigando-o à embriaguez.
Outra veio solicitar recursos contra os maus pensamentos de um Espírito
vingativo que lhe não dava ensejo à oração.
A corrente dos pedintes, contudo, não ficou aí. Tive a idéia de que a
missão de Gúbio se convertera, de repente, numa avançada instituição de
pronto-socorro espiritual.
Dezenas de criaturas desencarnadas, sob regime de prisão aos círculos
inferiores, alinhavam-se, agora, ao lado da residência de Gabriel, sob a determinação de Gúbio que dizia aguardar a noite para os serviços da prece em
geral.
Antes, porém, que o dia expirasse, começaram a surgir vários elementos da falange de Gregório, afirmando-se dispostos à renovação de caminho.
Procediam da própria colônia que visitáramos, e um deles, com grande
assombro para mim, foi claro na enunciação dos propósitos de que se achava
inspirado.
— Salvem-me dos juizes cruéis! — suplicou, emocionando-nos pela inflexão de voz — não posso mais! não suporto, por mais tempo, as atrocidades que sou constrangido a praticar. Soube que o próprio Saldanha se transformou. Eu não posso persistir no erro! Temo a perseguição de Gregório, mas, se é necessário arrostar as maiores dores, enfrentá-las-ei de bom grado, preferindo-lhes o golpe fulminatório a regressar. Ajudem-me! Aspiro à nova estrada, com o bem.
Apelos como este foram repetidos muitas vezes.
Enfileirando os sofredores de intenções nobres e retas que nos alcançavam, no vasto recinto de que dispúnhamos, nosso Instrutor recomendou que eu e Elói nos colocássemos à disposição deles, ouvindo-os
com paciência e prestando-lhes a assistência possível, a fim de se prepararem
mentalmente para as orações da noite.
Confesso que me senti à vontade.
Dividimo-nos, então, em dois setores distintos.
Organizei os irmãos que me cabia atender em assembléia fraternal;
contudo, em vista de os necessitados continuarem chegando, de espaço a espaço, era imperioso abrir novos lugares no extenso grupo dos ouvintes.
Muitas entidades em desequilíbrio, lá fora, reclamavam acesso, pronunciando rogativas comovedoras; todavia, o nosso orientador aconselhara fôsse a entrada privativa dos Espíritos que se mostrassem conscientes das próprias necessidades.
De há muito aprendera que uma dor maior sempre consola uma dor menor e limitava-me a pronunciar frases curtas, para que os infelizes, ali congregados, encontrassem reconforto, uns com os outros, sem necessidade de doutrinação de minha parte.
Conduzindo-me desse modo, pedi a uma das irmãs presentes, em deploráveis condições perispiríticas, expor-nos, por gentileza, a experiência de que fora objeto.
A infortunada concentrou a atenção de todos, em virtude das feridas
extensas que mostrava no semblante agora erguido.
— Ai de mim! — começou, penosamente — ai de mim, a quem a paixão
cegou e venceu, transportando-me ao suicídio! Mãe de dois filhos, não suportei a solidão que o mundo me impusera com a morte de meu marido tuberculoso.
Cerrei os olhos ao campo de obrigações que me convidavam ao entendimento e sufoquei as reflexões ante o futuro que se avizinhava. Olvidei o lar, os filhos, os compromissos assumidos e precipitei-me no vale fundo de sofrimentos
inenarráveis.
Há quinze anos, precisamente, vagueio sem pouso, à feição da ave imprevidente que aniquilasse o ninho... Leviana que fui! quando me vi só e aparentemente desamparada, entreguei meus pobres filhos a parentes caridosos e sorvi, louca, o veneno que me desintegraria o corpo menosprezado.
Supunha reencontrar o esposo querido ou chafurdar-me no abismo da inexistência; todavia, nem uma realização nem outra me surpreenderam o coração. Despertei sob denso nevoeiro de lama e cinza e debalde clamei socorro, à face dos padecimentos que me asfixiavam. Coberta de chagas, qual se o tóxico letal me atingisse os mais finos tecidos da alma, gritei sem destino certo!
A essa altura, porque a emotividade lhe interceptasse a voz, interferi,
perguntando, de modo a fixar o ensinamento:
— E não conseguiu retornar ao santuário doméstico?
— Ah! sim! fui até lá — informou a interpelada tentando dominar-se —,
mas, para acentuar-me a angústia, o toque de meu carinho nos filhos amados, que confiara aos parentes próximos, provocava-lhes aflição e enfermidade. As
irradiações de minha dor lhes alcançavam os corpos tenros, envenenando-lhes a carne delicada, através da respiração. Quando compreendi que a minha presença lhes inoculava pavoroso “virus fluídico”, deles fugi aterrada. É preferível suportar o castigo de minha própria consciência isolada e sem rumo que infligir-lhes sofrimento sem causa!
Experimentei medo e horror de mim mesma. Desde então, perambulo sem consolo e sem norte. É por isto que venho até aqui implorando alívio e segurança. Estou cansada e vencida...
— Convença-se de que receberá os recursos que pleiteia, por intermédio
da prece — esclareci, prometendo-lhe a colaboração eficiente de Gúbio.
A pobrezinha sentou-se, mais calma; e reparando que um dos irmãos
presentes buscava salientar-se, no intuito de relatar-nos a experiência de que era vítima, roguei atenção, em torno das palavras que pronunciaria.
Fitei-o, vigilante, e notei-lhe o singular brilho dos olhos. Parecia alucinado,
abatido.
Com a expressão típica da loucura cronicificada, falou, aflito:
— Permite-me indagar?
— Perfeitamente — respondi surpreso.
— Que é o pensamento?
Não aguardava a pergunta que me era desfechada, mas, centralizando minha capacidade receptiva, no propósito de responder com acerto, elucidei como pude:
— O pensamento é, sem dúvida, força criadora de nossa própria alma e,
por isto mesmo, e a continuação de nós mesmos. Através dele, atuamos no
meio em que vivemos e agimos, estabelecendo o padrão de nossa influência, no bem ou no mal.
— Ah! — fêz o estranho cavalheiro, um tanto atormentado — a explicação significa que as nossas idéias exteriorizadas criam imagens, tão vivas quanto
desejamos?
— Indiscutivelmente.
— Que fazer, então, para destruir nossas próprias obras, quando interferimos, erroneamente, na vida mental dos outros?
— Auxilie-nos a apreciar seu caso, contando-nos alguma coisa de sua
experiência — pedi com interesse fraternal.
O interlocutor, provàvelmente tocado pelo tom de minha solicitação afetuosa, expôs a perturbação que lhe vagava no íntimo, com frases incisivas,
quentes de sinceridade e dor:
— Fui homem de letras, mas nunca me interessei pelo lado sério da vida.
Cultivava o chiste malicioso e com ele o gosto da volúpia, estendendo minhas
criações à mocidade de meus dias. Não consegui posição de evidência, nos
galarins da fama; entretanto, mais que eu poderia imaginar, impressionei,
destrutivamente, muitas mentalidades juvenis, arrastando-as a perigosos
pensamentos.
Depois do meu decesso, sou incessantemente procurado pelas vítimas de minhas insinuações sutis, que me não deixam em paz, e, enquanto isto ocorre, outras entidades me buscam, formulando ordens e propostas referentes a ações indignas que não posso aceitar. Compreendi que me achava em ligação, desde a existência terrestre, com enorme quadrilha de Espíritos perversos e galhofeiros que me tomavam por aparelho invigilante de suas manifestações indesejáveis. No fundo, eu mantinha por mim mesmo, no próprio espírito, suficiente material de leviandade e malícia, que eles exploraram largamente, adicionando aos meus erros os erros maiores que intentariam debalde praticar, sem meu concurso ativo. Acontece, porém, que abrindo meus olhos à verdade, na esfera em que hoje respiramos, em vão busco adaptar-me a processos mais
nobres de vida. Quando não sou atribulado por mulheres e homens que se
afirmam prejudicados pelas ideias que lhes infundi, na romagem carnal, certas
formas estranhas me apoquentam o mundo interior, como se vivessem
incrustadas à minha própria imaginação. Assemelham-se a personalidades
autônomas, se bem que sejam visíveis tão somente aos meus olhos. Falam,
gesticulam, acusam-me e riem-se de mim.
Reconheço-as sem dificuldade. São imagens vivas de tudo o que meu
pensamento e minha mão de escritor criaram para anestesiar a dignidade de meus semelhantes. Investem contra mim, apupam-me e vergastam-me o brio, como se fôssem filhos rebelados contra um pai criminoso.
Tenho vivido ao léu, qual alienado mental que ninguém compreende! Como entender, porém, os pesadelos que me possuem? Somos o domicílio vivo dos pensamentos que geramos ou as nossas idéias são pontos de apoio e manifestação dos Espíritos bons ou maus que sintonizam conosco?
Havia nos ouvintes significativa expectação, não obstante a calma reinante. O infeliz deixou de falar, titubeante. Demonstrava-se atormentado por energias estranhas ao próprio campo íntimo, apalermado e trêmulo à nossa
vista. Fitou em mim os olhos esgazeados de esquisito terror e, correndo aos meus braços, bradou:
— Ei-lo! ei-lo que chega por dentro de mim... É uma das minhas
personagens na literatura fescenina! Ai de mim! acusa-me! Gargalha irônica e tem as mãos crispadas! Vai enforcar-me!...
Alçando a destra à garganta, denunciava, aflito:
— Serei assassinado! Socorro! socorro!...
Os demais companheiros perturbados e sofredores, ali presentes,
alarmaram-se, desditosos.
Houve quem tentasse fugir, mas, com uma frase apenas, sustei o tumulto que se iniciava.
O pobre beletrista desencarnado contorcia-se em meus braços, sem que eu pudesse socorrer-lhe a mente transviada e ferida.
Cautelosamente, enviei um emissário a Gúbio, que compareceu, em alguns segundos.
Examinou o caso e pediu a presença de Leôncio, o ex-hipnotizador de
Margarida. À frente do recém-chegado, indicou-lhe o doente em crise e falou peremptório, mas bondoso:
— Opera, aliviando.
— Eu? eu? — falou o convertido, semi-apalermado — merecerei a graça de transmitir alívio?.
Gúbio, no entanto, obtemperou, sem hesitar:
— Serviço construtivo e atividade destrutiva constituem problema de direção. A corrente líquida, devastadora, que derruba e mata, pode sustentar uma usina de força edificante. Em verdade, meu amigo, todos somos devedores, enquanto nos situamos nas linhas do mal. É imperioso reconhecer,
contudo, que o bem é a nossa porta redentora. O maior criminoso pode
abreviar longos anos de pena, entregando-se ao resgate próprio, através do serviço benéfico aos semelhantes.
Dissipando-lhe as dúvidas, acentuou com inflexão de ternura:
— Começa hoje, aqui e agora, com o Cristo. Em tua determinação de
ajudar, esconde-se a solução do segredo da felicidade própria.
Leôncio não mais vacilou.
Magnetizou o enfermo dementado que, poucos minutos depois, silenciou,
em profundo repouso.
Desde esse instante, o ex-perseguidor não mais me abandonou nas
experiências do dia, desempenhando as funções de excelente companheiro.
A assembléia, porém, crescia de hora a hora. Entidades de boa intenção
buscavam-nos sequiosas de paz e esclarecimento, mas, francamente, doía-me observar tanta ignorância, além da morte do corpo.
Na maior parte dos presentes não surgia o mais leve traço de compreensão da espiritualidade.
Raciocínios e sentimentos jaziam presos ao chão terrestre, vinculados a
interesses e paixões, angústias e desencantos.
E nosso orientador fora categórico, nas últimas informações que
transmitira. A noite próxima assinalar-nos-ia o término da permanência junto ao
lar de Margarida, e cabia-nos preparar quantos nos buscavam, famintos de
conhecimento santificante, para os serviços de oração que ele pretendia realizar. Não convinha comparecessem desprevenidos de avisos salutares e oportunos, acerca das obrigações e esperanças que lhes competiam desenvolver.
Em razão disso, interferi nas conversações, disseminando os esclarecimentos de que podia dispor.
Ao entardecer, a conformação e o contentamento reinavam em todos os rostos. Nosso Instrutor prometera conduzir os companheiros de boa vontade a esfera mais elevada, garantindo-lhes a passagem para a condição superior, e doce júbilo transparecia de todos os olhares.
Na exaltação da fé e confiança que nos dominavam, simpática senhora
pediu-me permissão para cantar um hino evangélico, ao que anuí, prazeroso, e era de ver a beleza da melodia desferida em notas de maravilhoso
encantamento.
Alegre e reconfortado pela expressão do serviço que nos fora conferido,
tinha meus olhos nublados de pranto, quando, aos últimos versos do cântico de
esperança, jovem dama, de triste fisionomia, avançou para mim e disse, em voz súplice:
— Meu amigo, de hoje em diante adotarei novo rumo. Sinto, neste cenáculo de fraternidade, que o mal nos afundará invariàvelmente nas trevas.
Fixou os olhos lacrimosos nos meus e rogou, depois de comovente intervalo:
— Promete-me, porém, a bênção do olvido na “esfera do recomeço”! (1) Fui mãe de dois filhinhos, tão belos e tão puros como duas estrelas, mas a morte me arrebatou muito cedo do lar.
Mas não foi a morte o único algoz que me feriu, desapiedado... Meu
marido, em seis meses, esqueceu as promessas de muitos anos e entregou-me os dois anjos à madrasta sem entranhas, que cruelmente os amesquinha...
Há vinte meses luto contra ela, tomada de incoercível revolta; todavia, estou entediada do ódio que me constringe o coração! Preciso renovar-me para o bem, a fim de ser mais útil. Entretanto, meu amigo, tenho sede de esquecimento. Ajuda-me por piedade! Prende-me em algum lugar, onde minhas
recordações amargas possam tranqüilamente morrer. Não me deixes, por mais tempo, entregue aos caprichos que me arrastam. Minha inclinação ao bem é
insignificante réstia de luz, no seio da noite do mal que me envolve. Compadece-te e ajuda-me!
Não sei amar, ainda, sem o ciúme violento e aviltante! Entretanto, não
ignoro que o Mestre Divino se entregou à cruz, em extrema renúncia! não permitas que as minhas elevadas aspirações desta hora venham a perecer!
As rogativas e lágrimas daquela mulher acordaram-me a lembrança viva do próprio passado.
Eu também sofrera intensivamente para desvencilhar-me dos laços
inferiores da carne. Sensibilizado, nela enxerguei uma irmã pelo coração e que
me cumpria esclarecer e amparar.
Abracei-a, comovido, como se o fizesse a uma filha, chorando por minha
vez. E refletindo nas dificuldades de quantos empreendem a reveladora viagem da morte, sem bases de verdadeiro amor e de legítimo entendimento nos
corações que permanecem à retaguarda, exclamei:
— Sim, farei tudo quanto estiver em minhas forças para auxiliar-te. Fixa-te em Jesus e doce esquecimento do perturbado campo terrestre te balsamizará o espírito, preparando-te para o vôo às torres celestes. Serei teu amigo e desvelado irmão.
Ela abraçou-me, confiante, como a criancinha quando se sente segura e
feliz.

(1) Nos círculos mais próximos da experiência humana, “esfera do recomeço” significa reencarnação. — Nota do autor espiritual.