Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
CAPÍTULO 2
Confrangido, mas sereno, Félix
acercou-se de Nogueira, administrou-lhe energias de refazimento e, após
levantá-lo, despediu-se, asseverando que voltaria.
Que não me inquietasse, falou,
bondoso. Estaríamos juntos, enviaria cooperadores, tomaria
providências.
Respondi, sossegando-o.
Afeiçoara-me àquela menina que, afinal,
era nossa filha em espírito.
Não, não a deixaria na dura fase
da desencarnação.
Entrementes, Cláudio afastou-se,
buscando o especialista.
Moreira, que me observava desde a
chegada, fitava-me agora com simpatia, que me empenhava em conservar.
Em dado momento, interpelou-me.
Amaciou o tom de voz e disse reconhecer-me. Queixou-se.
Vira diversos irmãos
desencarnados, avizinhando-se da porta e acenando com asco.
Apontavam Marita com desprezo,
referiam-se a figurações despudoradas, traçavam gestos no ar, sugerindo
quadros obscenos, e um deles chegara ao desplante de abordá-lo, indagando
quem era aquela mulher que transpirava carniça.
Tratei de consolá-lo. Aquilo
passaria. Esperávamos companheiros, abastecidos com os recursos necessários, a
fim de que isolássemos o recinto.
Satisfazendo-lhe as perguntas,
esclareci que, sem querer, assistira ao desastre e condoera-me daquela moça
sozinha, jogada no asfalto.
Quis saber minudências; contudo,
temendo embaraços, prometi-lhe que, logo aparecesse oportunidade, colheria
informes seguros para nós ambos.
Tentando harmonizá-lo com as
exigências do serviço que nos defrontava, roguei-lhe permissão para
cooperar. Ficaria contente se ele me aceitasse o concurso, ali, ao pé daquela
jovem que a provação humilhava. Colhera alguma experiência em hospitais e
poderia ser útil.
Moreira comoveu-se e aprovou a ideia.
Sim, aclarou, devotava-se a ela, com ardente afeição, e me reconhecia
o desinteresse em servi-la. Contaria comigo, reportou-se a compensações.
Conhecia meios de auxiliar-me,
defender-me-ia, ser-me-ia companheiro fiel.
Em seguida, examinou curiosamente
o processo pelo qual a respiração de Marita era auxiliada e pediu-me
instruções. Queria substituir-me. E com tanta diligência e humildade se colocou
no meu posto que, em minutos breves, atendia à manutenção da jovem, com
segurança superior àquela que me esforçava em cultivar.
Procurei adestrá-lo. Obedeceu
docilmente e guardou nos braços aquele corpo amarrotado, que se transfigurara
num fardo de dor, salpicado de fezes. O perseguidor da véspera, tocado no
âmago, enlaçou-a com a dignidade de um homem piedoso que socorre uma
irmã, empregando-se no trabalho de instilar-lhe energias e reaquecer-lhe os
pulmões com o próprio hálito.
Sensibilizado, ao identificar-lhe
a transformação, concluí que nem sempre é o salva-vidas, tecnicamente
construído, a peça que assegura a sobrevivência do náufrago, e sim o lenho agressivo
que teimamos em desdenhar.
Retirei-me, por instantes, à
busca de Cláudio e encontrei-o em compartimento próximo. Valia-se do intervalo,
em que era constrangido a esperar pelo médico, para telefonar.
A voz inconfundível de Dona
Márcia vinha do outro lado. O esposo falava, sob traumatismo evidente; ela, no
entanto, não respondia fora da destreza mental que lhe conhecíamos. Folgava em
saber que a filha estava ainda viva. Melhor encerrassem o assunto. Se a
Medicina já estava em cena, desistia de aumentar as aflições que lhe inçavam a casa.
Nogueira passou do noticiário às
súplicas. Seria conveniente que ela viesse amenizar a situação.
A senhora, porém, mencionou
compromissos inadiáveis. Estava de saída para a aquisição de linhas, destinadas à
confecção de vários enfeites encomendados por Marina. Compreendia que a moça
talvez não se recuperasse; entretanto, inclinava-se a crer que tudo não passava
de episódio sem importância. Marita sempre fora exagerada em questões de sensibilidade,
gostava da ostentação de ridículo. Além disso, se estivesse tão mal
quanto o marido supunha, ele, na condição de pai, se achava lealmente junto da filha,
eximindo a ela, Dona Márcia, de sacrifícios maiores do que aqueles que já lhe
sobrecarregavam os ombros. Fez chiste, mascarando de sarcasmo o desapontamento com que
recolhia a informação de que a filha adotiva não estava morta, impelindo todos
os constrangimentos da família à estaca zero.
Recordou ao esposo que o Rio não
era interior e que doente algum se podia dar ao luxo de contar com mais de uma
pessoa, acalentando o leito, numa capital que excedia o tamanho de Babilônia.
Declarou-se cansada de bobagens e arrufos entre jovens namorados e afirmou preferir
tricotar a fazer adulação para uma filha que não era dela e que sempre timbrara em
loucura e faniquito. Rematava, aconselhando para que não se complicassem com
despesas. Que ele ouvisse os médicos e removesse a menina, quanto antes, para
casa.
Nogueira, desolado, insistiu,
pintando o quadro em que se contristava; entretanto, a senhora encerrou a
conversação, atirando-lhe uma frase que lhe despedaçou as últimas esperanças:
— Bem, Cláudio, tudo isso é
problema seu.
Nogueira discou para a residência
dos Torres.
Marina ainda não voltara.
Desacoroçoado, chamou para a casa
do chefe. Atendido, prestou sucinto relatório da apertura, indagando
sobre a concessão de férias no banco. O diretor sossegou-o. Compreendia a
emergência, também era pai. Não apenas despacharia favoravelmente a petição, mas se
colocava igualmente ao dispor dele para qualquer eventualidade.
Tornando ao aposento onde Moreira
velava, entrou em conversação com a facultativo de serviço.
O médico registrou-lhe a
inquietude e compadeceu-se. Asseverou que era cedo para um pronunciamento mais
claro. Empreenderia exames, prescrevera transfusões de sangue e
antibióticos, estudaria as reações. Mesmo assim, não dispensaria a consideração de um
neurologista, na hipótese de surgirem complicações, em vista da pancada
forte, havida no crânio.
Nogueira concordou e, humilde,
solicitou permissão para instalar-se junto da filha. Não se queixaria de
preços, advogava para ela o melhor tratamento.
O clínico prometeu cooperar,
favorecer.
Daí a instantes, Marita foi
novamente transferida de quarto, onde Cláudio, Moreira e eu passamos a
intimidade mais ampla. Aqueles dois Espíritos, que se avalentoavam por bagatela,
manifestavam -se agora diferentes, submissos.
O esposo de Dona Márcia trazia os
olhos marejados de pranto. Partira-se-lhe a alma. A convicção de que a filha
tentara o suicídio, por culpa dele,
requeimava-lhe o coração, qual lâmina esfogueada que se lhe enterrasse no
peito. De tantos escândalos escapara, de tantas
proezas se ocultara, impassível; entretanto, aquele corpo abatido que a morte
espreitava parecia encerrar-lhe o destino. Sentia-se arrasado, a ponto de não lhe
importar nem mesmo a confissão de todos os delitos da existência, em praça
pública... Delitos que supunha para sempre esquecidos, nos escaninhos do tempo,
assomavam-lhe agora à lembrança exigindo reparação...
Sobretudo, Aracélia!... A
genitora de Marita que ele próprio aniquilara, a peso de sarcasmo e ingratidão, parecia
alcançá-lo pelo túnel da consciência... A imagem daquela moça inexperiente da roça
crescia-lhe por dentro. Lastimava-se, acusava, perguntava pela filha,
pedindo-lhe contas!...
Conjeturava-se Nogueira às portas
da loucura. Não fosse a resolução de recuperar a filha prostrada, usaria o revólver
contra si mesmo. Afigurava-se-lhe o suicídio como sendo a válvula de livramento.
Adotá-lo-ia, raciocinava, taciturno. Se Marita morresse, não desejava
sobreviver.
Cerrar-lhe-ia os olhos e
destruir-se-ia sem compaixão. Ao passo que as reflexões amargas lhe obscureciam
a mente, colava-se Moreira aos pulmões da triste menina, num espetáculo
comovedor de paciência e dedicação. De minha parte, assinalava-lhe o
devotamento sincero, os propósitos puros. O corpo injuriado
não lhe inspirava repugnância.
Enlaçava Marita com a veneração de quem se consagra a uma filha padecente para
quem todos os cuidados e todos os carinhos são sempre escassos... De quando em
quando, passava uma das mãos no rosto para enxugar as lágrimas...
Aquele Espírito que eu conhecera
áspero e agreste amava profundamente, porque é preciso amar a alguém,
com extremada ternura,para sorver-lhe com alegria o hálito fétido e
acariciar-lhe a pele manchada de excrementos, com o enlevo de quem preserva um tesouro
imensamente querido ao coração...
O silêncio era apenas cortado, de
vez em vez, pelos movimentos da enfermeira que vinha fiscalizar o soro a
descer no braço, gota a gota,ou aplicar injeções, segundo os avisos médicos.
O dia avançava. Três da tarde.
Calor. Para Cláudio, as horas assemelhavam-se a correntes que arrastava no
cárcere do remorso. A noção de isolamento agigantou-se-lhe no espírito. Voltou
ao telefone e procurou por Marina.
A filha atendeu. Palestraram.
Cientificara-se do acidente por
Dona Márcia; no entanto, esperava que a ocorrência desagradável não
passasse de susto. Não, não lhe era possível comparecer no hospital. Dona
Beatriz, que passara a considerar igualmente por mãe, piorara muitíssimo.
Aguardava-se-lhe o fim, a qualquer hora. Que o pai a desculpasse; entretanto, admitia
que a irmã devia estar satisfeita ao saber-se assistida por ele. Impossível
pedir mais.
Nogueira regressou ao quarto,
esmagado pelo desânimo.
Ninguém para migalha de apoio,
ninguém a entender-lhe o suplício moral.
Às cinco, no entanto, alguém
apareceu, um velho que solicitara a recomendação de clínico prestimoso.
A sós com Nogueira,
apresentou-se.
Era Salomão, o farmacêutico.
Declarou-se amigo da moça
acidentada. Estimava-lhe a lhaneza de trato, apreciava-lhe as gentilezas.
Vizinho da loja, partilhava com ela o café, quando obrigado ao lanche fora de casa.
Surpreendera-se com a notícia do
atropelamento e deliberara visitá-la, mesmo porque acreditava tivesse sido um
dos últimos amigos que Marita ouvira na véspera.
E, diante da curiosidade e do
reconhecimento do interlocutor, narrou quanto sabia, pormenor a pormenor.
Evidente, concluiu, que alguma
desilusão recôndita lhe ditara o gesto desesperado. Recordava-se,
perfeitamente, de lhe haver notado o pranto que ela, em vão, buscava disfarçar. Teria
ingerido os soporíficos que lhe dera, e, identificando-lhes o caráter
inofensivo, certamente que se projetara sob um automóvel em disparada...
Cláudio ouviu, chorando...
Intimamente, aceitou a hipótese. Sem dúvida, a filha não pudera sobreviver ao insulto
de que ele próprio se acusava. Aquele desconhecido confirmava-lhe as
impressões. Refletiu no suplício moral da jovem humilhada, antes de se lançar ao
gesto infeliz, sentiu-se o mais abjeto dos homens,
no arrependimento que lhe
azorragava todas as fibras da
consciência, e agradeceu ao interlocutor, sofreando os
soluços. Abraçou Salomão, num impulso de louvável sinceridade, e salientou que ele,
o visitante gentil, era o verdadeiro e talvez o único amigo daquela criança que
procurara a morte e que tudo fariam para reaver.
O farmacêutico apiedado arriscou
um alvitre. Confessou-se espírita e assinalou que os passes, sob a cobertura da
oração, beneficiariam a menina prostrada.
Ignorava quais os princípios
religiosos de sua família; entretanto, possuía um amigo, o senhor Agostinho, a quem
poderiam recorrer. Confiava na prece, no
amparo espiritual. Se Cláudio
permitisse, buscá-lo-ia. Nogueira aceitou com humildade.
Afirmou-se sozinho. Não lhe seria
lícito recusar um auxílio que lhe era oferecido com tanta espontaneidade. Apenas
admitiu que se via na obrigação de rogar o consentimento das autoridades.
O facultativo, que lhes atendeu
ao chamado, ouviu a petição. Homem experimentado em angústias
humanas, fitou Marita, não só com a
inteligência do técnico que observa um aparelho,
a caminho do desmonte para verificações finais, mas também com o sentimento de um
pai afetuoso, e asseverou que Cláudio dispunha do direito de prestar à
filha a assistência religiosa que desejasse, e que, em se abstendo de ferir o
regulamento da instituição, fora do quarto, ali estava como em sua própria casa.
Compadecido, ele mesmo
favoreceria a vinda de Salomão como espírita que indicasse. E, às oito da noite, o
boticário de Copacabana entrou com o amigo que carregava pequeno pacote, em que
se encontrava um livro.
Nogueira espantou-se. Aquele
homem, que o saudava fraternalmente, e que lhe era apresentado por senhor
Agostinho, frequentava o banco, onde se alinhava entre os clientes mais respeitados.
Conhecia-lhe a posição de comerciante distinto, conquanto não lhe desfrutasse a
intimidade. Entretanto, se o recém-chegado o reconhecia, não dava qualquer
mostra.
Interessou-se delicadamente pela
moça e inteirou-se de todas as minudências do desastre, com as atenções de
quem escuta a própria família.
Logo após, entre Cláudio e
Salomão, orou, emocionado. Suplicou a bênção do Cristo para a menina atropelada,
qual se expusesse, diante de Jesus invisível, uma filha profundamente cara, e, em
seguida, ministrou-lhe passes de longo curso com o devotamento de quem lhe
transferia as próprias forças.
Cooperamos com ele, sob o olhar
penetrante de Moreira,que tudo anotava como que sequioso de aprender.
A operação, saturada de agentes
reconstituintes do plano físico,
infundiu grande bem à moça, melhorando-lhe
a condição geral. Relaxou-se-lhe mais intensamente o esfíncter da
micção, a respiração desoprimiu-se e conseguiu entrar em sono calmo.
Cláudio solicitou a presença da
enfermeira e, enquanto a serviçal
modificava a rouparia, os três conversaram em
saleta próxima. Informado, então, de que Nogueira jamais tivera contacto
com princípios religiosos, Agostinho ofereceu-lhe o livro que trazia, um exemplar de
«O Evangelho segundo o Espiritismo», e prometeu voltar na manhã seguinte.
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
TENTATIVA E APRENDIZADO
Depois de variadas experiências, vim a Pedro Leopoldo pela primeira vez, após a libertação.
Como se me afigurou diferente o grupo que eu visitara, em agosto de
1937, em companhia do meu prezado Watson!
A casa humilde estava repleta de gente desencarnada. Os companheiros, ao redor da mesa, eram poucos. Não excedia de vinte o número de pessoas no recinto. As paredes como que se desmaterializavam, dando lugar a vasto ajuntamento de almas necessitadas, que o orientador da casa, com a colaboração de muitos trabalhadores, procurava socorrer coma palavra evangélica.
Entrei, ladeando três irmãos, recebendo abraços acolhedores.
Notando os cuidados do dirigente, prevendo as particularidades da reunião, recordei os Espíritos controladores a que se referem comumente nossos companheiros da Inglaterra.
Estávamos perante equilibrado diretor espiritual. Todas as experiências e
realizações da noite permaneciam programadas. Incontáveis fios de substância escura partiam, como riscos móveis, das entidades perturbadas e sofredoras, tentando atingir os componentes da pequena assembleia de encarnados, mas, sob a supervisão do mentor do grupo, fez-se belo traço de luz, em torno do quadrado a que vocês se acolhiam, traço esse que atraía as emanações de plúmbea cor, extinguindo-as.
Explicou-me um amigo que as pessoas angustiadas, sem o corpo físico. Em agosto de 1937, o Autor esteve pessoalmente em Pedro Leopoldo, acompanhado de um amigo.
projetam escuros apelos, filhos da tristeza e da revolta, nas casas de fraternidade cristã em que se improvisam tarefas de auxílio.
Enquanto vocês oravam e atendiam a solicitações entre os dois mundos, observei que trabalhadores espirituais extraíam de alguns elementos da reunião; grande cópia de energias fluídicas, aproveitando-as na materialização de benefícios para os desencarnados em condições dolorosas. Não pude analisar toda a extensão do serviço que aí se processava, mas esclareceu-me dedicado companheiro que em todas as sessões de fé religiosa, consagradas ao bem do próximo, os cooperadores dispostos a auxiliar com alegria são aproveitados pelos mensageiros dos planos superiores, que retiram deles os recursos magnéticos que Reichenbach batizou por “forças ódicas”, convertendo-os em utilidades preciosas para as entidades
dementes e suplicantes.
Minha mente, contudo, interessava-se na aproximação com o médium, fixa na ideia de valer-se dele para contato menos ligeiro com o mundo que eu havia deixado.
Rompi as conveniências e pedi a colaboração do supervisor da casa, embora o respeito que a presença dele me inspirava. Não me recebeu o pedido com desagrado. Tocou-me os ombros, paternalmente, e acentuou, esquivando-se:
— Meu bom amigo, é justo esperar um pouco mais. Não temos aqui um serviço de mero registro. Convém ambientar a organização mediúnica. A sintonia espiritual exige trato mais demorado.
Lembrei-me, então, imperfeito e egoísta que ainda sou, de André Luiz. Ele não fora espiritista; no entanto, começara, de pronto, o noticiário do “outro mundo”. O diretor, liberal e compreensivo, mergulhou em mim os olhos penetrantes, como se estivesse a ler as páginas mais íntimas de meu coração e, sem que eu enunciasse o que pensava, acrescentou, humilde:
— Não julgue que André Luiz haja alcançado a iniciação, de improviso.
Sofreu muito nas esferas purificadoras e frequentou-nos a tarefa durante setecentos dias consecutivos, afinando-se com a instrumentalidade. Além disto, o esforço dele é impessoal e reflete a cooperação indireta de muitos benfeitores nossos que respiram em esferas mais elevadas.
E passou a explicar-me as dificuldades, indicando os óbices que se antepunham à ligação e relacionando esclarecimento científicos que não pude guardar de memória.
Em seguida, prometeu que me auxiliaria no instante oportuno.
Realmente, estava desapontado, mas satisfeito.
Avizinhara-me dos amigos, incapaz de fazer-me percebido; entretanto, começava a entender, não somente os empecilhos naturais no intercâmbio do desprendimento e da renúncia, na obra cristã que o Espiritismo, com Jesus está realizando em favor do mundo.
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
PRIMEIRAS VISITAS
As primeiras visitas que efetuei, junto aos núcleos doutrinários,
verificaram-se justamente no Rio. Minha atual situação, contudo, era muitíssimo reduzida. Quando no corpo, identificava somente reduzida região de trabalho.
Acompanhado de amigos que me conduziam solícitos, reparava agora um mundo
novo, de aspecto intraduzível.
As casas espiritistas, em função de estudo e socorro, eram verdadeiras
colmeias de entidades desencarnadas. Algumas, em serviço de benemerência
evangélica; outras, e em número imenso, vinham à cata de alívio e esclarecimento,
a lembrar-nos multidões de acidentados às portas dos hospitais de emergência.
O volume das obrigações agigantou-se aos meus olhos. Compreendi, então, de quanta abnegação temos necessidade, a fim de perseverarmos no bem,
até ao fim da luta, segundo os ensinamentos de Jesus.
Minha primeira impressão foi negativa. No fundo, cheguei a admitir, por alguns instantes, a incapacidade da colaboração humana, ante a imensidão do serviço; todavia, a palavra de companheiros experientes reergueu -me o bom ânimo. Sementes minúsculas produzem toneladas de grãos que abastecem o mundo; assim também, os germes da boa-vontade improvisam atividades heroicas a edificação humana.
Essa conclusão tranquilizou-me e tive a alegria de fazer-me notado em ários centros da doutrina, valendo-me da cooperação de alguns médiuns que me interpretaram a personalidade. As oportunidades, porém, não me ofereciam recursos ao noticiário mais completo.
Comecei a guerrear meu individualismo gritante e, examinando a respeitabilidade dos interesses alheios, não me senti suficientemente encorajado a interferências que redundassem ao prejuízo do bem geral.
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
CARTA A MEU FILHO
Cap. XIV – Item 9
Meu filho, dito esta carta para que você saiba que estou vivo.
Quando você me estendeu a taça envenenada que me liquidou a existência, não pensávamos nisso.
Nem você, nem eu.
A idéia da morte vagueava longe de mim, porque esperava de suas mãos apenas o remédio anestesiante para a minha enxaqueca.
Entendi tudo, porém, quando você, transtornado, cerrou subitamente a porta e exclamou com frieza:
– Morre, velho!
As convulsões que me tomavam de improviso, traumatizavam-me a cabeça...
Era como se afiada navalha me cortasse as vísceras num braseiro de dor.
Pude ainda, no entanto, reunir minhas forças em suprema ansiedade e contemplar você, diante de meus olhos.
Suas palavras ressoavam-me aos ouvidos: – “morre, velho!”
Era tudo o que você, alterado e irreconhecível, tinha agora a dizer.
Entretanto, o amor em minh’alma era o mesmo.
Tornei à noite recuada quando o afaguei pela primeira vez.
Sua mãezinha dormia, extenuada...
Pequenino e tenro de encontro ao meu peito, senti em você meu próprio coração a vagir nos braços...
E as recordações desfilaram, sucessivas.
Você, qual passarinho contente a abrigar-se em meu colo, o álbum de fotografias em que sua imagem apresentava desenvolvimento gradativo em todas as posições, as festas de aniversário e os bolos coloridos enfeitados de velas que seus lábios miúdos apagavam sempre numa explosão de alegria... Rememorei nossa velha casa, a princípio humilde e pobre,que o meu suor convertera em larga habitação, rica e farta... Agoniado, recordei incidentes, desde muito esquecidos, nos quais me observava expulsando crianças ternas e maltrapilhas do grande jardim de inverno para que nosso lar fosse apenas seu... Reencontrei-me, trabalhando, qual suarento animal, para que as facilidades do mundo nos atendessem as ilusões e os caprichos...
Em todos os quadros a se me reavivarem na lembrança, era você o grande soberano de nosso pequeno mundo...
O passado continuou a desdobrar-se dentro de mim. Revisei nossa luta para que os livros lhe modificassem a mente, o baldado esforço para que a mocidade se lhe erigisse em alicerce nobre ao futuro... De volta às antigas preocupações que me assaltavam, anotei-lhe, de novo, as extravagâncias contínuas, os aperitivos, os bailes, os prazeres, as companhias desaconselháveis, a rebeldia constante e o carro de luxo com que o presenteei num momento infeliz...
Filho do meu coração,tudo isso revi...
Dera-lhe todo o dinheiro que conseguira ajuntar, mas você desejava o resto.
Nas vascas da morte, vi-o, ainda, mãos ansiosas, arrebatando-me o chaveiro para surripiar as últimas jóias de sua mãe...Vi perfeitamente quando você empalmou o dinheiro, que se mantinha fora de nossa conta bancária, e, porque não podia odiá-lo, orei – talvez com fervor e sinceridade pela primeira vez – rogando a Deus nos abençoasse e compreendendo, tardiamente, que a verdadeira felicidade de nossos filhos reside, antes de tudo, no trabalho e na educação com que lhes venhamos a honrar a vida.
Não dito esta carta para acusá-lo.
Nem de leve me passou pelo pensamento o propósito de anunciar-lhe o nome.
Você continua sangue de meu sangue, coração de meu coração.
Muitas vezes, ouvi dizer que há filhos criminosos, mas entendo hoje que, na maioria das circunstâncias, há, junto deles, pais delinquentes por acreditarem muito mais na força do cofre que na riqueza do espírito, afogando-os, desde cedo, na sombra da preguiça e no vício da ingratidão.
Não venho falar, assim, unicamente a você, porque seu erro é o meu erro igualmente. Falo também a outros pais, companheiros meus de esperança, para que se precatem contra o demônio do ouro desnecessário, porque todo ouro desnecessário, quando não busca o conselho da caridade, é tentação à loucura.
Há quem diga que somente as mães sabem amar e, realmente, o regaço materno é uma bênção do paraíso. Entretanto, meu filho, os pais também amam e, por amar imensamente a você, dirijo-lhe a presente mensagem, afirmando-lhe estar em prece para que a nossa falta encontre socorro e tolerância nos tribunais da Divina Justiça, aos quais rogo me concedam, algum dia, a felicidade de tê-lo novamente ao meu lado, por retrato vivo de meu carinho... Então nós dois juntos, de passo acertado no trabalho e no bem, aprenderemos, enfim, como servir ao mundo, servindo a Deus.
J.
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
PONDERAÇÕES NECESSÁRIAS
Retomando a mim mesmo, após desvencilhar-me do corpo grosseiro, a preocupação de voltar ao reino dos amigos era o meu anseio de cada minuto.
Habituara-me, na existência última, fértil de trabalho intensamente vivido, a concretizar os menores desejos, em nos referindo à luta exterior. O homem prático que se mantém no corpo terrestre, por mais de cinquenta anos, acostuma-se a ser invariavelmente obedecido. Isso cria enormes prejuízos para ele, por enclausurar-se instintivamente em roda viciosa de preconceitos nocivos que se lhe cristalizam, vagarosamente, na organização mental. Os melindres passam a torturá-lo. A conveniência é interpretada por desrespeito, a prudência por ingratidão.
Quase me considerei ofendido, quando os benfeitores espirituais me cortaram a probabilidade do retorno apressado. Afinal, pensava de mim para comigo, o que pretendia não era, de maneira nenhuma, a admiração alheia, nem tencionava aproveitar o ensejo para a propaganda de meu nome. Interessava-me, sim, a prova da sobrevivência. Para tanto, se me fosse possível, tocaria um clarim mais alto que uma sirene festiva.
Amigos delicados, porém, fizeram-me saber que o ruído, no âmbito da espiritualidade, é tão prejudicial quanto o barulho intempestivo na via pública e, depois de ouvir longa série de ponderações, a me rearticularem os propósitos desordenados; entendi, graças a Deus, que minhas investidas se filiava a pura ingenuidade.
domingo, 18 de novembro de 2012
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
DIFICULDADE NO INTERCÂMBIO
Mas, o serviço não é tão fácil quanto parece à primeira vista. Podemos certamente visitar amigos e influenciá-los; todavia, para isso, copiamos o esforço dos profissionais da telepatia. Emitimos o pensamento, gastando a potência mental em dose alta e, se a pessoa visada se mostra sensível, então é possível transmitir -lhe ideias; com relativa facilidade. Por vezes, a deficiência do receptor, aliada às múltiplas ondas que o cercam, impede a consumação de nossos propósitos. Se o instrumento de intercâmbio permanece absorto nas preocupações da luta comum, é difícil estabelecer a preponderância de nossos desejos.
A mente humana; atraí ondas de força, que variam de acordo com as emissões que lhe caracterizam as atividades. No aparelho mediúnico, esse fenômeno é mais vivo. Pela sensibilidade que lhe marca as faculdades registradoras, o médium projeta energias em busca do nosso campo de ação e recebe-as de nossa esfera com intensidade indescritível.
Calculam, pois, os obstáculos naturais que nos cerceiam as intenções. Se não há combinação fluídico-magnética entre o Espírito comunicante e o recipiente humano, realizar-se-á nosso intento apenas em sentido parcial.
É quase impossível impormos nossa individualidade completa. Ainda mesmo em se tratando da materialização, o visitante do “outro mundo” depende das organizações que o acolhem.
Se o médium relaxa a obrigação de manter o equilíbrio fisiopsíquico e se os companheiros que lhe integram o grupo de trabalho vivem estonteados, sem o entendimento preciso dos deveres que lhes competem, torna-se impraticável o aproveitamento dos recursos que se nos oferecem para o bem.
Venho recebendo agora preciosas lições, quanto a isto, porque cheguei à leviandade de prometer a mim mesmo que prosseguiria, depois do sepulcro, a corresponder-me regularmente com os leitores de minhas páginas doutrinárias.
Considerava a escrita e a incorporação mediúnicas ocorrências triviais do nosso aprendizado; no entanto, vim de reconhecer, neste plano em que hoje me encontro, a desatenção com que assinalamos semelhantes dádivas. Esses fatos amplamente multiplicados, em nossos agrupamentos, traduzem imenso trabalho dos Espíritos protetores, com reduzida compreensão por parte dos que a eles assistem.
Passei a observar o porquê de muitas promessas de amigos, que se não realizaram. Companheiros diversos haviam partido, antes de mim; convencidos de que poderiam voltar, quando quisessem, trazendo informações da nova esfera e, embora lhes aguardassem a palavra esclarecedora, através de reuniões respeitáveis, a solução parecia adiada, indefinidamente.
O homem encarnado é tido em nossos círculos por arrendatário das possibilidades terrestres e, de modo algum, podemos absorve-lhe a autoridade e a direção da experiência física, tanto quanto não lhe será possível determinar na zona de trabalho que nos é própria. Em vista disso, por mais que desejemos, somos obrigados a depender de vocês em nossas comunicações e interferências.
Os amigos da vida superior necessitam da cooperação elevada, para se manifestarem nas obras de amor e fé, na mesma proporção em que as entidades votadas ao mal reclamam concurso de baixa espécie das criaturas perversas ou ignorantes, no cenário carnal. Verifica-se a mesma disposição em nossa zona de serviço. Vocês conseguirão isto ou aquilo, em nosso ambiente, dependendo, porém, das entidades que puderem mobilizar.
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
DE VOLTA
Há muitas semanas guardo a permissão de escrever-lhes, relacionando o noticiário do velho companheiro, já no “outro mundo”. Aliás, isto não é novidade para vocês, nem para mim. Quando se me esvaía a resistência orgânica, formei o projeto de endereçar-lhes um correio de amigo, logo que a morte me arrebatasse.
O Espiritismo fora para mim não só simples crença religiosa. Tornara-se o clima constante em que minha alma respirava, constituía elemento integrante de meu próprio ser. Daí o entusiasmo aos serviços da doutrinação e a certeza com que esperava o contentamento de fazer-me sentir aos irmãos de ideal, após a desencarnação.
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
NO RETOQUE DA PALAVRA
Cap. XI – Item 7
Seja onde for, não afirme: – “Detesto esse lugar!”
Cada criatura vive na terra dos seus credores.
Ouvindo a frase infeliz, não grite: – “É um desaforo!”
Invigilância alheia pede a nossa vigilância maior.
Atravessando a madureza, não selamente: – “Já estou cansa-do”.
Sintoma de exaustão, vontade enferma.
Sentindo a mocidade, não assevere: – ”Preciso gozar a vida!”
Romagem terrestre não é excursão turística.
À frente do amigo endividado, não ameace: – “Hoje ou nunca!”
Agora alguém se compromete, amanhã seremos nós.
Ao companheiro menos categorizado, não ordene: – ”Faça isso!”
Indelicadeza no trabalho, ditadura ridícula.
Perante o doente, não exclame: – ”Pobre coitado!”
Compaixão desatenta, crueldade indireta.
Ao vizinho faltoso, nunca diga: “Dispenso-lhe a amizade.”
Todos somos interdependentes.
Sob o clima da provação, não se queixe: – ”Não suporto mais!”
O fardo do espírito gravita na órbita das suas forças.
No cumprimento do dever, não clame: – ”Estou sozinho.”
Ninguém vive desamparado.
Colhido pelo desapontamento, não reclame: – ”Que azar!”
A Lei Divina não chancela imprevistos.
À face do ideal, não se lastime: – “Ninguém me ajuda.”
No Espiritismo temos responsabilidade pessoal com o Cristo.
André Luiz
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Capítulo 1
Quase cinco da manhã, quando nos
vimos na intimidade dos Nogueiras.
A casa jazia quieta. Peças mudas,
silêncio.
Agitava-se, porém, Dona Márcia,
sob a colcha leve, cansada de vigília. Varara a noite em aflição. Na penumbra do
quarto, apoiava o cotovelo no travesseiro e a cabeça na mão, de pensamento
longe. Tinha os olhos empapuçados de chorar. A filha adotiva não voltara.
Ansiosa, esperava que o dia se levantasse... Telefonaria para a residência dos Torres,
para saber do regresso de Marina. Se preciso, chamaria Teresópolis. Queria
comunicar-se com alguém, desentranhar-se. Sentia medo, o coração palpitava
catástrofe.
Consultei-a mentalmente,
procurando noticias de Cláudio.
Alcancei-lhe a resposta
inarticulada. Supondo reconsiderar os sucessos da noite, passou a lembrar-lhe o
retorno, horas antes, totalmente embriagado. Chegara tateando paredes, esbarrando com
os móveis. Inferira que ele tentara
afogar o remorso em copázios de uísque. Ouvira-lhe os vômitos, escutara-lhe as descomposturas à porta, mas
trancara-se, precavida. Carraspana e ressaca rematando a criminosa aventura...
Não desejava cenas.
Súbito, quebrou a linha de
reflexões em que penetrara. Repeliu-me a influência, convicta de estar reafirmando
para si mesma que atingira o ponto final da tolerância... Nada mais com
Cláudio.
Convertera a mágoa em nojo.
Aspirava a nova atitude, suspirava por desquitar-se, fugir...
Deixamo-la engolfada nas
alegações negativas, buscando o aposento dos fundos. Nogueira aí se despejara
em cama de solteiro, completamente equipado, sem alijar nem mesmo o paletó.
Estirava-se de lado, a expelir
saliva grossa pelo canto da boca,
ressonando, tranqüilo, e, com ele, o
vampirizador, relaxado sob os efeitos do álcool. Ambos largados, embrutecidos.
Demorava-me na inspeção, quando a
campainha do telefone retiniu.
Com certeza, irmão Félix obtivera
meios de abrir-me alguma porta, a fim de que me fosse possível atuar,
favoravelmente. Imprescindível atacar o problema, advogar a proteção de que fora incumbido.
Tornei à sala.
Dona Márcia, em baby-doll, punha
o fone ao ouvido, carregada de escuros pressentimentos.
A voz de um homem simples
repontou no auscultador:
— Estou falando com o “seu”
Cláudio Nogueira?
— Na casa dele.
— Ele está?
Dona Márcia reconhecia de todo
impraticável o ensaio de qualquer conversação com o esposo, escornado àquela
hora, e respondeu, positiva:
— Não, não está.
— Quero falar com ele ou com a
madama.
A interlocutora, experiente
demais em trotes e adestrada no jogo das conveniências sociais, pressupôs
estar em contacto com algum novo despropósito do marido, e indagou, prudente:
— Com quem estou falando?
— Com Zeca, lixeiro. Estou em
Copacabana, preciso dar notícia de um desastre.
— Que desastre?
— A senhora é a dona da casa?
— Não sou, mas trabalho aqui. Sou
empregada...
Dona Márcia receava cair em
complicações, na hipótese de transpor as raias do anonimato, e, a vista disso,
antes que o desconhecido revidasse, acrescentou:
— Os patrões estão ausentes, mas
posso dar o recado.
— Olhe — gaguejou o informante —,
o caso é com Dona Marita, a moça da loja.
- Que há? diga, por favor, que
há?
A senhora Nogueira sentiu-se
traspassada de angústia, enquanto, de minha parte, concluía que Félix
angariara o concurso de um lixeiro prestimoso para transmitir a notícia, preparando
o terreno que me cabia encaminhar ao plantio da compaixão.
— Diga aos patrões que ela foi
atropelada...
— Onde? como? quando?
— Bem, eu não sei como foi, mas
vi que era ela...
— Agora?
— Há uma boa meia hora, aqui
perto, na Avenida Atlântica...
— Está aí?
— Não está, a ambulância já
levou.
— Mas o senhor tem certeza?
— Tenho toda a certeza... Ela
estava sem bolsa, ninguém a reconheceu... Mas eu conheço Dona Marita, foi
sempre amiga de minha mulher desde que veio para cá. Minha mulher é empregada no
edifício da loja... Coitada de Dona Marita, moça tão boa! Ela é que conseguiu
lugar para minhas duas filhas na escola!...
— Mas, escute — Dona Márcia
cortou as referências, terrivelmente chocada —, como está ela?
— Dizem que morreu...
Embora calejada contra as
emoções, a esposa de Cláudio abandonou o fone e afastou-se, pálida.
Arremessou-se à cama e agarrou a
própria cabeça, entre as mãos, julgando enlouquecer...
— Morta! Marita morta! —
refletiu, atribulada.
Recordou o ultraje que a pobre
menina experimentara naquela noite que o
dia nascente esfumara, qual se
expulsasse um pesadelo, e a mente divagou... Aracélia, a servidora e amiga...
Vinte anos antes. O suicídio!...
E agora a filha, na mesma tragédia, com o mesmo homem...
Decerto, Marita, envergonhada,
procurara a morte. Inexperiente, sucumbira.
Ajustava argumentos por dedução.
Crescina falara-lhe de encontro com Gilberto, no entanto, apanhara Cláudio em
desconcerto flagrante. Tudo indicava a intromissão dele em algum arranjo dos jovens,
para infligir à filha o imperdoável insulto...
Indubitavelmente, a desventurada
menina preferira morrer...
Nesse entretempo, intervim.
Assimilei-lhe os pensamentos de simpatia e fi-la meditar nas tribulações de
Marita, dentro da noite, esforçando-me por incliná-la à compaixão... Largasse o marasmo,
sacudisse Cláudio, chamasse,
implorasse... Se o marido não estivesse em
condições de compreendê-la, que ela própria saísse à rua... Procurasse a moça...
Telefonasse à Polícia, refletisse nela, como sendo sua própria filha... Corresse ao
Pronto Socorro da Zona Sul, inquirisse funcionários, ouvisse médicos, visitasse a
morgue... Alguém auxiliaria, encontraria a criatura que a Providência Divina lhe
pusera nas mãos... Quem saberia? Talvez que ela ainda estivesse nas raias do fim
a esperar-lhe as mãos piedosas, como quem
aguarda uma bênção!...
Dona Márcia ouviu mentalmente. Ao
recolher-me as sugestões, imaginou a filha estendida no necrotério,
comoveu-se e chorou...
Entretanto, a senhora Nogueira
não era pessoa que renunciasse a peso e medida, em matéria de questões
sociais e domésticas. Reagiu para logo, crendo-se piegas. Não queria afundar-se em
sentimentalismo, confessou, na suposição de que falava consigo mesma. Era
necessário sopesar prós e contras.
Do pesar ao cálculo, mediaram
apenas alguns instantes.
Efetivamente, lastimava Marita e
enojava-se de Cláudio, monologou,
todavia, era mãe. Nada de alhear-se ao
destino da filha. Marina aprumava-se. Os Torres eram ricos, talvez riquíssimos.
Ambas as moças disputavam
Gilberto. Afinal, a morte de Marita surgia por solução. Assim que pudesse chamar
o esposo a brios, combinariam plano certo. Levantariam a hipótese de
acidente, inventariam versão plausível. Ela própria afirmaria que concedera à jovem
permissão para pernoitarem casa de parente enfermo, recomendando-lhe o
regresso tão cedo quanto fosse possível para a obtenção de notícia urgente.
Indispensável maquinar situações,
engenhar detalhes. Os chefes da loja, amigos de Marita, se
interessariam pelos fatos. A imprensa tomaria atenção. Cabia-lhe preparar-se a
fim de facear repórteres e fotógrafos. Pensou no modelo azul com que se apurava na representação a
funerais e vasculhou a memória para saber
onde colocara, distraída, os
óculos escuros.
Quando a manhã se adiantasse,
despertaria o esposo, com vista ao ajuste.
Conversariam seriamente. Até lá,
fantasiaria a história convinhável ao
público, em função da felicidade e do futuro
de Marina. Se a outra estava morta, para que preocupar-se? Importava-lhe agora
a filha, somente a filha... E, depois que a filha se casasse.. nada de Cláudio. Não se
sentia inútil, mas andava cansada de dar no batente, suportando inibições e
contrariedades pôr um esposo que, desde muito, se lhe fizera detestável. Não se
escravizaria. Recebera um convite de Selma, companheira de infância, para
negócio que considerava lucrativo, na Lapa. Na frente um café, acompanhado de
aperitivos e guloseimas e, nos fundos, quartos de aluguel...
Reconhecendo que Dona Márcia se
imobilizava, mentalmente, em digressões esconsas, tornamos à presença de
Félix para a obtenção de roteiros precisos.
Acomodada num leito de
emergência, Marita figurava-se em coma.
Félix, assistido agora por dois
médicos desencarnados, em serviço na grande instituição socorrista, se
mantinha sereno, apesar da tristeza que lhe velava o semblante.
Acolheu-me, paciente. Ouviu-me.
De posse das informações de que
me fizera mensageiro, recomendou-me esperá-lo alguns minutos. Sairíamos,
à cata de reforço.
Enquanto isso, auscultei a jovem
acidentada, que jazia inconsciente, em terrível depressão.
Escassas reações dos centros
nervosos, anoxemia, sensíveis alterações
dos capilares, lesões no peritônio.
Os esfincteres descontrolados davam
passagem a líquidos e excrementos que
empastavam a veste.
Félix mobilizou as providências
cabíveis e rogou aos colegas desencarnados nos substituíssem por instantes.
Demandamos a residência de
Cláudio.
A caminho, notei que o benfeitor,
em silêncio, adensava a própria forma, transfigurando-se na
apresentação. A ocorrência, que eu conseguia apenas depois de paciente elaboração mental,
obtinha-a Félix com esforço ligeiro. Rápidos momentos e imprimiu ao corpo
espiritual novo ritmo vibratório.
O instrutor assumira as
características de um homem vulgar.
Por que a transformação?
— André — respondeu,
assimilando-me os pensamentos —, ninguém pode fazer tudo senão Deus. Você é
também médico e não ignora que, em certas ocasiões, é imperioso pedir
remédio ao pilriteiro. Na Terra, às vezes, para socorrer um santo é necessário dosar um
veneno. Marita, em súbita decadência física, precisa agora dos préstimos de
alguém que a ame infinitamente. Chegou a hora de esmolar para ela o socorro dos
que a feriram amando...
A voz do amigo carregava-se de
pesar; contudo, não nos era possível comentar a filosofia que enunciava, de vez
que atingíramos o prédio em que se dependurava o ninho dos Nogueiras, banhado
pelo sol recém-vindo.
Subimos.
Qual aconteceu comigo na véspera,
o instrutor bateu à porta semicerrada.
Após reiterados chamamentos,
Moreira veio atender, como qualquer ser humano estremunhado.
Não me via, porquanto de tempo
não dispusera eu para a metamorfose necessária, mas, renteando com
Félix, desenrolou comprida fieira de insultos, que o benfeitor recebeu com humildade.
Quando terminou, algo desenxabido
pela ausência de qualquer resposta que lhe alimentasse a ira gratuita, Félix
comunicou-lhe o acidente. Sabia-o interessado na proteção da moça, rogava-lhe
amparo. Diante da incredulidade com que era acolhido, solicitou-lhe fizesse a
gentileza de verificar se amenina amanhecera no lar.
Moreira correu ao interior e
voltou, coçando a cabeça. Sim, atenderia ao apelo, mas não despertaria o dono da
casa enquanto não averiguasse a realidade.
Carrancudo, ladeou o instrutor,
sem dizer palavra, do Flamengo ao estabelecimento de socorro
público, mas, topando a moça, entregue à miserabilidade orgânica, o peito
se lhe explodiu numa torrente de
lágrimas, semelhante a rocha que se
partisse de repente para revelar uma fonte.
Rodou sobre os calcanhares e
arrancou-se qual flecha.
Félix, confortado, explicou que,
pelo visto, Cláudio não tardaria, informando-me de que, segundo lhe era lícito
ajuizar, Marita conseguira pequena moratória. Mais alguns dias no corpo amarfanhado,
quinze a vinte no máximo... Tempo de meditação, preparo valioso ante a vida
espiritual... O cérebro seria protegido, mas não recuperado. Desorganizara-se.
Dentro de algumas horas, a moça poderia
pensar e ouvir com regularidade, reaver
alguns recursos da sensibilidade e enxergar imprecisamente; entretanto, não
mais contaria com o centro da fala.
Naquele estado, aditou ele, permaneceria
facilmente, na esfera física, por muito tempo ainda, mas o peritônio sofrera contusões de
efeitos irreversíveis. Não valeriam antibióticos, por maior fosse a carga. Ainda assim,
sentia-se reconhecido aos supervisores espirituais, que haviam advogado
a pequena dilação. As horas finais ser-lhe-iam preciosas. Desfrutaria o ensejo
de aprontar-se para a renovação, enquanto que Cláudio, Márcia e Marina talvez
reconsiderassem caminhos.
Arrecadava-lhe o otimismo,
comovidamente. Transcorridos pouco mais de cinquenta minutos, Cláudio,
seguido por médico que se lhe afeiçoara à família e que conhecia Marita, desde muito,
deu entrada no posto de assistência. Márcia, sob a pressão de Moreira e
interrogada pelo marido, liberara as informações de que
dispunha.
O facultativo recém-chegado
deixou o bancário no vestíbulo para efetuar a inspeção, identificando a menina
sem maiores dificuldades. Feito isso, tomou providências, junto aos colegas,
para que a Jovem fosse imediatamente transferida para o Hospital Central dos
Acidentados, com vistas ao tratamento urgente e minucioso. E depois de ligações
telefônicas, no preparo da instalação necessária, determinou as medidas inadiáveis.
Que limpassem Marita, que se lhe purificasse o ambiente, que mesmo acreditada em
coma fosse tratada com o máximo apreço.
Seja dito, no entanto, que não se
registrara, ali, qualquer desleixo. As condições precárias da moça exigiam
repouso, quietação. Justo observá-la, antes de qualquer alteração suscetível de
agravar-lhe os constrangimentos.
Com efeito, iniciada a laboriosa
remoção que Cláudio e Moreira seguiram, de longe, a cabeça, pendida para
trás, impeliu o sangue a movimento
retrógrado e surgiu a possibilidade de
asfixia.
Félix controlou, quanto pôde, as
mãos dos condutores, e, tão logo a vimos ajustada em novo leito, vali-me
do socorro magnético de profundidade que as circunstâncias exigiam.
Sentei-me, de maneira a guardar aquele
corpo abatido em meus braços, envolvendo-o no meu
próprio hálito, numa operação que nos permitiremos nomear aqui por
adição de força, cujos resultados se destacam surpreendentes, quando a criatura
retida no envoltório físico se mostra
nos últimos lances da resistência.
Nesse ínterim, Félix aconselhou
que eu me adensasse na apresentação, a fim de que Moreira me enxergasse os
exercícios. Conservava a esperança de vê-lo oferecer-se para manter a
respiração da moça em boa ordem.
Orei, empenhando-me na consecução
do objetivo, e quando. Nogueira e o acompanhante vararam a porta do
quarto em que a administração nos localizara, o vampirizador deitou-me olhar
espantadiço.
Cambalearam sensibilizados,
aflitos...
Incoercível emoção me tomou a
alma.
Cláudio abeirou-se, trêmulo, da
filha e rompeu em soluços.
Tanto quanto me era dado
perceber, aquela hora significava para ele doloroso balanço de consciência.
Instintivamente, tornou à
infância e à mocidade... Lembrou as leviandades primeiras.
Irreflexões do passado
corporificaram-se-lhe na memória. Enfileirou na imaginação os desvarios sexuais
das trilhas percorridas. Cada jovem que
iludira, cada mulher de cujas fraquezas
abusara repontavam-lhe na tela mental, como que a lhe perguntarem pela filha que
a vida lhe trouxera...
Aquele homem que me inspirava
sentimentos contraditórios e de quem
teria desejado distanciar-me, tocado de
aversão, me insuflava agora um enternecimento que somente as lágrimas
exprimiam!...
Perante a enfermeira
impressionada, Cláudio ajoelhou-se e, com ele, pôs-se Moreira genuflexo... Em choro
convulso, o pai alisou aqueles cabelos despenteados, contemplou a fisionomia de cera
que a morte parecia estar modelando, mirou a face e os lábios intumescidos por
equimoses, aspirou o ar deteriorado que se lhe
exalava dos pulmões e,
mergulhando a cabeça nos lençóis, gritou, vencido:
— Ah! minha filha!... minha
filha!...
Quase no mesmo instante, a fronte
de Moreira vergou, como se esmagada de sofrimento...
Ambos jaziam, ali, debruçados,
rente aos meus joelhos, com a mesma rendição dentro da qual Marita se me
conchegava ao regaço.
Reconheci que a Providência
Divina, em seus desígnios, não me aproximava unicamente da vitima. Os verdugos
também pediam amor. Segurando a moça inerme, à altura do peito,
afaguei-os com a destra, sustentando-me em prece... E a prece clareava-me o pensamento,
corrigindo-me a visão!... Sim, tentando
consolar aqueles dois homens que o remorso
dobrava em tormento indizível, refleti nos meus próprios erros e compreendi os
propósitos da vida!... Não!... Eles não eram os estupradores, os obsessores, os
inimigos, os carrascos que eu detestara na véspera!... Eles eram meus
amigos, meus irmãos!...
domingo, 11 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
FAZENDO SOL
Cap. V – Item 18
Amanheceste chorando pelos que te não compreendem.
Amigos diletos rixaram contigo.
Nos mais amados, viste o retrato da ingratidão.
Aspiravas a desentranhar o carinho nos corações queridos, com a pureza e a simplicidade da abelha que extrai o néctar das flores sem alterá-las, e, porque não conseguiste, queres morrer...
Não te encarceres, porém, nos laços do desespero.
Afirmas-te à procura do amor, mas não te recordas daqueles para quem o teu simples olhar seria assim como o sorriso da estre-la, descerrado nas trevas.
Mostram a cabeça encanecida, à feição de nossos pais, são irmãos semelhantes a nós ou são jovens e crianças que poderiam ser nossos filhos... Contudo, estiram-se em leitos de pedra ou refugiam-se em antros, fincados no solo, quais se fossem proscritos
atormentados.
Não te pedem mais que um pão, a fim de que lhes restaurem as energias do corpo enfermo, ou uma palavra de esperança que lhes console a alma dorida.
Não percas o tesouro das horas, na aflição sem proveito.
Podes ser, ainda hoje, o apoio dos que esmorecem, desalentados, ou a luz dos que jazem nas sombras; podes estender o cobertor
agasalhante sobre aqueles a quem a noite pede perdão por ser longa e fria, aliviar o suplício dos companheiros que a moléstia carcome ou dizer a frase calmante para os que enlouqueceram de sofrimento...
Sai, pois, de ti mesmo para conhecer a glória de amar!...
Perceberás, então, que a existência na Terra é apenas um dia na eternidade, aprendendo a iluminá-la de amor, como quem anda fazendo sol, nos caminhos da vida, e encontrarás, mais tarde, em cânticos de alegria, todos aqueles que te não amam agora, amando-te muito mais, por te buscarem a luz no instante do entardecer.
Meimei
domingo, 4 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
CAMINHA ALEGREMENTE
Cap. VIII – Item 1
“Tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe e, por ela, muitos se contaminem.” – Paulo. (Hebreus, 12: 15)
Raízes de amargura existirão sempre, nos corações humanos, aqui e ali, como sementes de plantas inúteis ou venenosas estarão no seio de qualquer campo.
Contudo, tanto quanto é preciso expulsar a erva daninha para que haja colheita nobre e farta, é indispensável relegar ao esquecimento os problemas superados e as provações vencidas, para que reminiscências destruidoras não brotem no solo da alma, produzindo os frutos azedos das palavras e das ações infelizes.
Mãos prestimosas arrancarão o escalracho, em torno da lavoura nascente, e atitudes valorosas devem extirpar do espírito as recordações amargas, suscetíveis de perturbar o caminho.
Se alguém te trouxe dano ou se alguém te feriu, pensa nos danos e nas feridas que terás causado a outrem, muitas vezes sem perceber. E tanto quanto estimas ser desculpado, perdoa também, sem quaisquer restrições.
Observa a sabedoria de Deus na esfera da Natureza.
A fonte dissolve os detritos que lhe arrojam.
A luz não faz coleção de sombras.
Caminha alegremente e constrói para o bem, porque só o bem permanecerá.
Seja qual for a dor que hajas sofrido, lembra-te de que tudo amanhã será melhor se não engarrafares fel ou vinagre no coração.
Emmanuel
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 14
Adiantamo-nos, Félix e eu, ao encontro da jovem.
Marita estugava o passo, amarfanhada, aturdida.
Da Lapa, onde se localizava a habitação coletiva que
vínhamos de deixar, até à Cinelândia, correra quase.
Sentia-se tangida por todos os ventos da adversidade,
expulsa da Terra. Traída nos mais íntimos sentimentos de mulher, a injúria
experimentada transcendia para ela toda a noção de sofrimento. Teria agradecido ao homem
que conhecera por pai o punhal ou o veneno, mas não dispunha de forças para
perdoar-lhe aquela afronta. A revolta sacudia-lhe os membros. Tremia, desesperada. Na
cabeça, uma ideia só, ganhando extensão: o suicídio. Ansiava atirar-se sob os
carros que deslizavam à frente. Morrer... desaparecer... meditava, chorando.
Entretanto, era preciso viver um tanto mais. Restava um enigma: Gilberto. Por que se
esquivara, a substituir-se, cruel? Que trama teria havido entre eles? Lera-lhe a
missiva, conhecera-lhe a letra.
Escrevera, afirmando vir... Por que desistira? Como soubera
Cláudio do encontro? Através de Crescina?
As interrogações sem resposta convulsionavam-na toda.
Desvairava. Rangia os dentes, querendo gemer.
A morte, a morte!... — pedia, mentalmente, tentando apertar os lábios que se abriam sem voz.
Ainda assim iria consultar Gilberto, sugeriam as últimas
réstias do sonho desmantelado. Sim,
aprovava no turbilhão dos
pensamentos em descontrole, era necessário ouvir Gilberto... Uma vez só que fosse.
Imperioso conhecer a verdade, morrer com a verdade...
Quem saberia? Talvez que o rapaz lhe estendesse um fio
de luz, por onde se desvencilhasse da sombra... Se ele dissesse: «vive, vive
para mim», conseguiria esquecer o insulto daquela noite, continuando a viver... Ao
contrário, tudo extinto...
Caminhando apressada e indiferente à aragem que lhe
acarinhava os cabelos, repelia-nos, em espírito, as maiores demonstrações de
ternura e consolo.
Nenhuma ideia que se lhe não afinasse com a repulsão.
Decididamente, se Gilberto participara da armadilha a que se
arrojara, inocente, estava tudo acabado. Tão-somente lhe restaria o desprezo
final.
Alcançou o Largo do Passeio e parou um momento... Fitou,
angustiada, aquelas árvores frondejantes que tanto amava... Galharias balouçadas
ao vento pareciam chamá-la para abraços de adeus... Marita soluçou, teve medo,
mas seguiu adiante...
Varou a massa risonha que deixava os cinemas, recordou
Gilberto e a menina feliz que ela fora, vendo namorados saboreando pipocas; contudo,
seguiu, seguiu sempre, vencendo encontrões. Atingindo a Praça Marechal
Floriano, abancou-se, vasculhando o cérebro atormentado...
Sentia-se, enfim, absolutamente sozinha, completamente
desamparada.
Comprimindo a cabeça entre as mãos, queria idéias, alguma
ideia que lhe ofertasse saída do antro pungente da angústia.
Debalde, irmão Félix, ao enlaçá-la, lhe assoprava conceitos
de paciência e cordura, inutilmente se referia à bondade e ao perdão.
Aquele coração juvenil, conquanto bondoso, figurava-se, agora, um lago límpido que vulcão oculto, de inesperado, fazia referver. Todas as orlas abertas, em bocas
de incêndio, pelas quais as ondas do pensamento fugiam, precipitadas.
Nenhum lugar exposto à receptividade, nenhum ponto marcado ao equilíbrio e
ao silêncio.
No crânio tumultuado, uma ideia surdiu, ensejando-lhe tênue fio de esperança. Telefonar!...
Poderia telefonar para a residência dos Torres. Gilberto,
indubitavelmente, estaria ao pé da genitora enferma. Além disso, Marina viajara pela manhã. Uma razão a mais para que se não retirasse do carinho
necessário à doente. Ainda assim — refletiu —, seria muito provável que ele, a distância, lhe
embaísse a boa-fé.
Insopitável desconfiança amargava-lhe o coração qual raiz
espinhosa. Não descortinava, contudo, saída melhor. Conversar! Ouvi-lo!
Tinha sede da verdade, ansiava saber, saber!.
Raciocínios contundentes entrechocavam-se-lhe na cabeça
atribulada... Não, não retornaria ao lar do Flamengo... Entre voltar à casa dos Nogueiras e morrer, preferia morrer...
Perscrutou circunstâncias, analisou-se, meditou, meditou...
Pensamento estranho assomou-lhe, de súbito. Disfarçar-se,
fingir. Para alcançar a verdade, mentiria.
Entraria, sim, no jogo com aquilo que se lhe apresentou à
imaginação, como sendo a cartada final.
Marita concluía que ela e a irmã, pela intimidade e pela
convivência, tinham vozes semelhantes, maneiras afins. Chamaria o rapaz como
sendo Marina, imitar-lhe-ia, quanto possível, o tom de palestra, repetir-lhe-ia
as palavras de uso mais freqüente no trato doméstico. Simularia estar
voltando, inopinadamente, de Teresópolis. O moço, assim abordado, confessaria, de modo
inequívoco, tudo o que sentisse, com respeito a ela própria.
A sofredora criança consultou o relógio-pulseira. Dez
minutos para as nove.
Desejava ambiente familiar para a ligação. Lembrou-se de
Dona Cora, cliente da loja em Copacabana, que se lhe fizera amiga íntima e em cujo apartamento costumava telefonar, quando inevitável. Levantou-se, algo
reanimada, para a busca de condução; entretanto, somente aí deu pela falta da bolsa
que largara na fuga.
Faltava o dinheiro, mas não desistiu. Acenou da calçada
ao primeiro táxi disponível.
Consultou o motorista se lhe podia fazer o favor de atender,
com pagamento à porta de casa. Estava sozinha e esquecera-se do horário, O
profissional correto notou-lhe a tristeza e o acanhamento. Compadeceu-se. Alegou que
recusava, sistematicamente, conduzir pessoas que encomendavam serviço,
criando problemas; entretanto, no caso, faria exceção e aquiesceu.
A breve trecho, seguíamos, junto dela, para Copacabana.
No endereço indicado, saltou, fez-se acompanhar pelo
condutor ao apartamento da amiga, sendo recebida com a lhaneza que esperava.
Segredou, envergonhada, para Dona Cora que se achava em apuros, se ela não dispunha,
naquela hora, de algum dinheiro para emprestar. Pagaria no dia seguinte. A
dona da casa, espontânea e bondosa, não titubeou.. Abriu pequena gaveta e
falou sorrindo: «só quatrocentos cruzeiros», O marido não estava. Marita,
reconhecida, explicou que a importância bastava. Depois da corrida paga, disse para
a senhora que andara em serviço extra, fora em seguida ao Leblon visitar um doente,
afetando que somente naquele instante conseguiria tomar o ônibus para casa. Antes
disso, porém, tinha necessidade de um telefonema.
Conversação com pessoa muito íntima. Dona Cora cedeu-lhe
a peça inteira e acrescentou, gentil, que ia arranjar um cafezinho. Falasse à
vontade, ninguém a interromperia. As duas filhinhas dormiam, há muito, e o esposo que substituía um colega, no trabalho, não regressaria tão cedo. A dona da
casa afastou-se para a cozinha, isolando a sala.
E, ali, diante de nós, sem que nos percebesse, de leve, os
corações solidários, Marita discou, sofreando a emoção de modo a fantasiar a
alegria da outra.
Escutamos, transidos, o diálogo juvenil que nos ficaria,
então, na memória, gravado frase a frase:
— Da residência dos Torres?
— Sim.
— Quem no aparelho? Gilberto?
— Sim, sim.
— Oh! meu bem, pois você não está conhecendo?
— Conhecendo quem?
— Eu, eu... Marina. Acabo de chegar...
— Ah! ah! Marina!... que surpresa boa!... por que essa
demora? ....... Estamos
todos em casa, esperando... Telefonar por quê?
— Quis saber, meu amor, se você está bem, se passou bem o
dia...
— Saudades!
— Eu também... Muita saudade...
— Venha.
— E a mamãe? Melhor?
— Pouquinho.
— Escute...
— Para que conversar? Corra para cá, venha logo...
— Um momentinho só... Escute. Passei rapidamente em casa, no
Flamengo, para conversar com mãezinha certas coisas... Estive com duas
amigas em Teresópolis que me encheram a cabeça..
Estou perturbada, ciumenta...
— Que é que há?
— Marita...
— Ora... Marita! Tenho nada com ela.
— Mas eu soube...
— Soube o quê?
— Que vocês dois estão em compromisso. Sei que vocês andavam
juntos, mas tanto assim não sabia...
— Bobagem!
— É muita conversa que não pude desmentir...
— Perda de tempo. É muita gente biruta... Morou? (7)
— Estive com papai ainda agora...
Nesse ponto da conversação singular, a voz dela titubeou.
Ouvira o bastante para reconhecer-se desdenhada, batida. Entretanto, aspirava
à lia do cálice.
Necessário inteirar-se acerca de quanto Gilberto havia
descido. Receava descobrir-se. Indispensável toda precaução, a fim de
escalpelar o insulto de que fora vítima. A pausa, no entanto, foi curta. Gilberto, no outro lado,
pronunciou a deixa oportuna:
— Então...
— Explique-se.
— Bem, você naturalmente deve saber agora o que aconteceu.O
velho me procurou... Ele mesmo telefonou, sabe? Conversamos
pessoalmente, acertamos tudo.
— Quer dizer que Marita...
— Imagine! escreveu-me pedindo encontro. O velho soube de
tudo antes e me pediu dizer que iria, mas que eu não fosse. Entende?
— No fim de contas, como é que você se arranjou?
— Escrevi um bilhete, prometendo vê-la, mas combinei com
o velho para que ele mesmo fosse buscá-la. Ele mesmo é quem propôs a
solução.Você sabe, não podia deixar de atendê-lo... Primeira vez.
— Estou perplexa, nervosa... Não compreendo...
(7) Expressão de
gíria. “Morar” significando compreender.—
(Nota do Autor
espiritual.)
— Ele me pediu escrever aceitando, para que Marita não
ficasse chocada. Disse que ela tem estado borocoxo e prometeu que ele iria
procurá-la, de modo a dar conselhos e a reanimá-la com uma boa notícia, uma excursão à
Argentina...
— Como?
— Olhe lá, Argentina... Uma viagem para a Argentina...
Uma risada seguiu-se e, depois dela, a consideração
sarcástica:
— Sanatório, meu bem. Sanatório ou hospício. Para Marita, só
sanatório e, quanto mais longe, melhor!... Argentina para uma e
Petrópolis para dois...
Nesse ponto da entrevista, a jovem baqueou. Debruçou-se
na cantoneira, inabilitada a retomar o fone, à vista dos soluços que
lhe rebentavam do peito.
Escutávamos, nitidamente, a voz do rapaz, a distância,
gritando:
— Marina! Marina! diga o que há, diga, diga!...
A pequenina mão encharcada de lágrimas, no entanto, repôs o
fone no gancho, com a tristeza de quem cerrava, em definitivo, as portas
do coração.
A moça dedicou alguns minutos ao refazimento, reconstituiu,
quanto possível, a tranqüilidade fisionômica e tornou à sala.
Embaraçada, referiu-se ao dinheiro emprestado. Que Dona Cora
lhe perdoasse o incômodo.
Se não pudesse voltar em pessoa, no dia seguinte, a
companheira de seção na loja, Néli, que lhes era também íntima, faria o pagamento,
considerando-se a hipótese de ela, Marita, não se achar em serviço.
Bastaria procurar.
Dona Cora riu-se, cordial. Não pensasse naquilo.
Prestimosa, estendeu-lhe o café que ela aceitou,
constrangida. Conversa vai, conversa vem, a amiga estranhou-lhe o abatimento, a palidez,
os olhos que não cessavam de chorar. Marita explicou-se, ensaiando um
sorriso que não chegou a debuxar-se. Alegou-se gripada. Tinha coriza renitente, coriza brava. E, a propósito, indagou se ela julgava possível encontrar ainda o senhor
Salomão, naquele instante, depois das dez, na farmácia vizinha. Gostaria
de se aconselhar com ele sobre um antigripal. Trazia a cabeça pesada, os pulmões
doloridos.
A delicada anfitriã pediu um momento e correu ao telefone
para voltar, quase de imediato, dizendo que o farmacêutico a esperaria.
Estava a sair do plantão, que ela não se delongasse.
Marita agradeceu, despediu-se e seguímo-la, passo a passo.
O senhor Salomão, velhinho calmo e complacente, em cujo
olhar se adivinhava a brandura dos que se fazem servidores espontâneos da
Humanidade nos encargos que exercem, acolheu-a, solícito.
Ocultando os intentos recônditos, a recém-chegada falou-lhe
do resfriado.
Afirmou sentir dores, vertigens. O boticário, de modos
antigos, habituado ao ofício a representar-se de médico para os amigos, nos casos sem maior
importância, pediu-lhe mostrasse a língua. Examinou-a com a prática de muitos
anos, ao pé de enfermos, sem achar motivo de preocupação. Aplicou o
termômetro. Nenhuma febre.
Sorriu, paternal, e aconselhou-a a ir para a casa,
descansar. Não deveria aceitar serviço extra, até aquela hora da noite, comentou bonachão,
e acrescentou que ela facilmente encontraria remédios para comprar, mas não a saúde. Indicou-lhe aspirina para a nevralgia, que supunha em ação, e...
repouso.
A jovem recolheu os medicamentos, fez o gesto de quem se
inclinava a retirar-se, satisfeita, e voltou à carga, aparentando recordar uma
providência esquecida.
— Salomão — disse com decidida curiosidade a
transparecer-lhe da voz -, não sei se você está lembrado de “Jóia,” a minha velha
cadelinha, que os meninos algumas vezes abraçaram na praia...
— Como não? Aquela inteligência de animal, brincando de
esconder!... Até hoje, os netos imitam o andar de gatinhas que ela
inventou...
— Pois é — prosseguiu Marita, afetando pena -, nossa pequena
« Jóia » está no fim...
— Que foi?
— O veterinário explicou, mas não guardei o nome da
moléstia, doença incurável. Grita sem pausa, um martírio.
Continuando, falou para Salomão que o bichinho se tornara
problema no apartamento. O síndico reclamara várias vezes. Vizinhos
andavam contrafeitos. Os pais aguardavam que o veterinário amigo voltasse de São
Paulo, a fim de que se aplicasse a eutanásia; entretanto, haviam autorizado tanto a
ela, quanto à irmã, o
emprego de algum remédio que pudesse trazer o descanso
final. “Jóia” estava abatida, gasta. Lamentava perdê-la, fora-lhe companheira, no
Flamengo, desde quando se ausentara da escola, simples menina. Ainda
assim,aditava, era preciso enfrentar os fatos e poupar ao animalzinho maiores
sofrimentos. Não teria o amigo algumas pílulas adequadas?
Ouvira referências a comprimidos que, administrados em
dose alta, propiciavam a morte, absolutamente sem dor; no entanto, não lhes
conhecia o nome.
O farmacêutico, sem qualquer prevenção, confirmou. Sim,
talvez tivesse no estoque alguns desses anestésicos de elevada potência e
salientou que se a cadelinha fora condenada pelo veterinário não deveria ser
conservada.
Convencido pelas informações reiteradas da moça, dirigiu-se a
pequeno depósito, procurando, procurando...
Nisso, Félix e eu abordamo-lo, mentalmente.
O paternal benfeitor rogou-lhe examinasse a situação.
Fitasse aquela menina, assim fatigada e só, além das dez horas da noite, longe de
casa. Despenteada, olheiras fundas, sem bolsa, sem agasalho. Ele também,
Salomão, era pai e avô sensível. Não desse orientação em torno de venenos. Tivesse
cuidado. Sossegasse
aquela criança abatida com algum soporífero, fazendo-a
admitir que levava o agente letal. Mentisse por piedade, mostrasse compaixão,
adiando entendimento mais claro para depois.
Aquele homem, com toda a certeza, se agrisalhara em rudes
experiências para adquirir a sensibilidade aguçada com que nos assimilou os
apelos, porque, de imediato, se enterneceu. Voltou-se, discretamente, para o balcão e mirou a freguesa, pela porta semicerrada, espantando-se ao vê-la, num
instante como aquele em que não se supunha observada.
Marita afigurou-se-lhe uma peça do museu de cera,
amarrotada, inerte.
Somente os olhos, embora parados, se evidenciavam ativos,
em razão das lágrimas copiosas.
«Oh! meu Deus — refletiu ele, desconsolado —, isso não é coriza, isso é dor moral, dor terrível!...)
Salomão renunciou à pesquisa iniciada e sacou de largo
recipiente de vidro alguns sedativos comuns e tornou-lhe à presença. Fingiu
despreocupação e apresentou-lhe os comprimidos, asseverando:
— São estes. Para a cachorrinha, no estado de que você fala,
basta um.
— Tão violento assim? — perguntou a jovem, diligenciando
reanimar-se.
— Isso é uma bomba de aplicação muito rara.
Aparentando-se embaído, para angariar-lhe a confiança,o
boticário paternal alegou, porém, que só forneceria ante a receita médica.A
responsabilidade pesava-lhe, muito grande.
Ela, contudo, insistiu. Que o farmacêutico não duvidasse.
O veterinário assinaria o papel.
Consultou se poderia adquirir dez unidades. Melhor agir na
certa. Não aguentava mais os gemidos ao pé do leito.
Salomão refletiu, refletiu... Voltou ao depósito e escolheu
dez comprimidos calmantes, de potencialidade suave. Se ingeridos por
ela, funcionariam beneficamente, prodigalizando-lhe sono reparador.
Marita agradeceu e despediu-se.
Salomão recomendou-lhe repouso, juízo.
Seguímo-la, de perto.
Vagarosa, atravessou dois quarteirões pela frente, ganhou a
Avenida Atlântica e acolheu-se num bar.
Solicitou um copo de água simples, sem gás, em
recipiente de plástico.
Delicadamente atendida, transpôs o asfalto, pulou do
calçamento de pedra no lençol argenteado de areia e acomodou-se no lugar que lhe pareceu
mais escuro...
Aspirava a morrer, ao pé do mar, daquele mar sereno e bom que nunca a enjeitara, refletia com lágrimas... Queria partir,
contemplando aquele mar que a beijava sem malícia...
Antes do gesto que considerava supremo, recordou a
mãezinha que não conhecera e supôs-se mais infeliz. A genitora, não
obstante desprezada pelo homem a quem se entregara, conseguira um teto para o momento
do grande adeus.
Ela não. Fora maltratada, espezinhada, escorraçada.
Devia partir do mundo com um nome emprestado que detestava, agora... Classificava-se
por lixo da terra, supunha desafogar a todos, renunciando à existência. Rememorou as
manhãs felizes em que desfrutara, ali mesmo, tantas vezes, o ar puro que vinha das
águas e o agasalho do Sol. Parecia rever a massa domingueira, fraternalmente confundida na carícia da espuma. Atenta, imaginava-se ouvindo, de novo, a algazarra
das crianças, lançando a bola ou manejando a peteca... Sim, não possuía um lar para
morrer, mas dispunha da praia, hospitaleira e amiga, que reunia desconhecidos, aos milhares, sem nunca fazer-lhes perguntas indiscretas, a todos abraçando por verdadeiros irmãos...
Lamentou-se e chorou, longo tempo, enquanto Félix e eu
esperávamos que dormisse para enfrentarmos os problemas eventuais.
Marita despejou os dez comprimidos na boca e engoliu-os de um
sorvo com água pura. Em seguida, arrimou-se no encosto do passeio de
pedra, qual se se dispusesse a meditar... Dos olhos, penderam as lágrimas
que ela acreditou fossem as últimas e deixou que a brisa lhe afagasse os cabelos.
Brando torpor anestesiou-a.
Consultamos o horário. Cinqüenta e cinco minutos depois da
meia-noite.
Félix orou por instantes.
Não pude compreender, de imediato, se por obrigações
de vigilância ou se correspondendo aos apelos do instrutor, dois rondantes
desencarnados apareceram, ofertando serviço. Félix aceitou, reconhecido,e,
enquanto os recém-chegados passaram a velar, ele e eu empreendemos a
tarefa restaurativa.
Providências para que a jovem não se afastasse, em
espírito,do corpo desgovernado, passes reconfortantes nos centros de força,
estímulos variados em diversas seções do campo cerebral, insuflações nos vasos
sanguíneos. Operações minuciosas e demoradas.
Acupuntura magnética do plano espiritual, em que o
orientador patenteava notável mestria.
Quase quatro horas foram despendidas, ao fim das quais,
Marita repousava tranquilamente.
Reconfortado, via nos olhos do benfeitor a esperança
luzindo... Nisso, porém, um “gari” asselvajado largou a rua e caminhou em nossa
direção, regando a areia...
Dando com os olhos na menina adormecida, sentiu-se
mordiscado de curiosidade.
Não valeram recursos manobrados pelos vigias. O
fanfarrão, relativamente moço, avançou para ela e sacudiu-a, rouquejando: «acorda,
vagabunda», «acorda, vagabunda».
Feriram-se-me as fibras do sentimento, não só pela
criança injustamente maltratada, mas também pela imensa dor que se estampou no semblante de Félix que, pela expressão agoniada, tudo daria para materializar
as mãos e impedir aquele assalto.
«Acorda, vagabunda», «acorda, vagabunda»... As palmadas
estalavam no rosto, cujas lágrimas o vento enxugara, piedosamente.
Frustrados, vimo-la abrir os olhos, estarrecida. Que
homenzarrão aquele que, ao vê-la estremecer, não se pejava de comprimir-lhe o busto
com as mãos libidinosas?
Não obstante atordoada, perguntava a si mesma se teria
morrido, se estaria no inferno renteando com um demônio...
Intentou gritar, mas a garganta esmorecera. Mesmo
assim, ergueu-se, aterrada, e aligeirou o passo, cambaleante. Superando embaraços, ganhou a calçada
em que um banco orvalhado convidava ao repouso, porém, não dispunha de
serenidade para assimilar-nos as sugestões. Pisou, atarantada, no asfalto,
indiferente aos princípios do trânsito... Oscilou, aqui e ali, estremunhada...
Automóveis deslizavam velozes, lambretas estrondeavam em
correria.
Pedestres iam e vinham, diligenciando alcançar o trabalho a
distância ou regressando ao aconchego doméstico, depois das atividades
noturnas. Agitavam-se funcionários da limpeza e veículos ocupados em serviços da
madrugada.
Preparava a cidade o dia novo.
Seguíamos a pobre menina, espíritos contundidos por amargos
presságios.
Parecia-me Félix um educador venerando,
repentinamente descido a saracoteios na via pública, no propósito de salvar uma
criança querida. Entre simpatia e respeito, eu acompanhava, penalizado, o grande
instrutor que se apequenava e se afligia por ajudar...
Rapazes semi-embriagados na esquina próxima, ao fitarem
Marita, vacilante, gargalharam, invectivando: «tipa de pileque! tipa de
pileque! Motoristas de passagem gritavam-lhe injúrias, e, sem que aparecesse
algum braço humano que a sustentasse no atordoamento que lhe impunha reiterados tropeções, foi colhida e projetada a pequena distância, por automóvel em velocidade
excessiva, qual trapo de carne que se arremessasse, violentamente, no chão.
O carro chispou, transeuntes acorreram.
Moças que regressavam de excursões alegres gritaram,
alarmadas. Uma delas prorrompeu em choro histérico, sendo contida à força.
No trânsito interrompido, em que debalde se buscava positivar responsabilidades, todos os
veículos despejavam curiosos que se reuniam em torno da jovem, inerme.
O corpo planara, a cabeça batera contra a pedra e, em
seguida a curta reviravolta, caíra de bruços.
Pessoalmente, achavámo-nos atônitos. Não contávamos com
experiência bastante para ocasiões qual aquela em que o desastre
consumado exigia improvisações. Todavia, entre os clamores de quantos
apelavam para o socorro policial, irmão Félix sentara-se no asfalto. Aplicando
vigorosos estímulos magnéticos sobre a cabeça da menina acidentada, fê-la cobrar energias
para ganhar, mecanicamente, o decúbito dorsal, a fim de que respirasse indene
de maiores dificuldades, através de movimentos que, para muitos dos
circunstantes, significavam esgares da morte.
Marita aquietara-se de todo.
Tive a nítida impressão de que a base do crânio se
fraturara, mas não me era lícita qualquer inquirição. A carga emocional pesava em
demasia, para que me fossem possíveis quaisquer considerações de ordem técnica.
O irmão Félix, na atitude dos pais, profundamente humanos e
sofredores, acomodava-se de tal modo que a cabeça da jovem se lhe
estendia no regaço.
Erguendo as mãos sobre as narinas em sangue, levantou os
olhos e orou em voz alta, que eu destacava da multidão em crescente vozerio:
— Deus de Infinito Amor, não permitas que tua filha seja
expulsa da casa dos homens, assim, sem nenhuma preparação!... Dá-nos, Pai, o
benefício do sofrimento que nos consinta meditar! O’ Deus de amor, mais uns dias
para ela, no corpo dolorido, algumas horas só que sejam!...
Calou-se o instrutor, como qualquer criatura terrestre,
machucada de angústia...
Logo após, acenou para mim e recomendou-me demandar o apartamento do Flamengo, para observar o que seria razoável obter, no
tocante a medidas de auxílio. Que eu procurasse Cláudio ou Márcia, que lhes
suplicasse apoio, compaixão. Ele, Félix, inspiraria alguém a telefonar. Os
Nogueiras estariam entre ele e mim, a fim de que se inteirassem do acidente e fossem
mentalmente movidos à piedade... Permaneceria ali, velando, fazendo
quanto pudesse para que a desencarnação imediata não se verificasse... Quando eu
voltasse do Flamengo, reunir-nos-íamos de novo...
Ao vê-lo assim humilhado na abnegação de que dava
testemunho, arranquei-me à pressa, não só para atender à incumbência, mas também para
desabafar-me. Às vezes, é preciso que as lágrimas nos sirvam de confidentes,
quando não haja alguém que nos ouça... Tanto trabalho daquele benfeitor
sublime para salvar uma criança gravada de duras provas!... Tanto sacrifício de um
orientador, cuja grandeza se quintessenciara nas Esferas Superiores, para
ofertar-lhe os braços; entretanto, o malogro de tudo se me afigurava inevitável...
Antes que me arremessasse, da Avenida Atlântica para o Túnel
Novo, ouvi muitas vozes que se elevavam, exclamando: «morta!... morta!...»
Incapaz de sopitar as lágrimas, voltei-me para contemplar no rosto do irmão Félix
o efeito de semelhante notícia, concluindo comigo mesmo: «tudo inútil,tudo
inútil!...». Mas, vigoroso impacto de esperança me banhou o coração!. .. Tive a
ideia de que fontes imponderáveis de energia jorravam do firmamento claro e estrelado
sobre aquele recanto de Copacabana, que o mar acariciava de perto, como a rogar-nos confiança em Deus, na linguagem ciciante das ondas!...
Não!... A batalha não arrefecera!...
Tínhamos conosco o suprimento do amor e a luz da oração!...
Nem tudo estava perdido...
O benfeitor, guardando paternalmente nos braços
aquela criança desfalecida, fixava os olhos nas alturas e, recolhido a profundo
silêncio, parecia agora falar com o Infinito.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
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