quinta-feira, 15 de abril de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 6 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



6 - NUM LAR CRISTÃO


Propúnhamo-nos seguir o caso de Zulmira, não só para cooperar, a favor de suas melhoras, mas também para registrar os ensinamentos possíveis, e, solicitando o concurso de Clarêncio, dele ouvimos judiciosas ponderações.
– Sim – disse –, para auxiliar em processos dessa natureza, é preciso marchar para a frente, mas, para compreender o serviço que nos compete e avançar com segurança, é necessário voltar à retaguarda, armando-nos de lições que nos esclareçam.
Não sabíamos como interpretar-lhe a palavra, entretanto, ele mesmo nos socorreu, explicando, depois de ligeira pausa:
– Para realizarmos um estudo geral da situação, convém o contacto com outras personagens do drama que se desenrola. Sernos-á interessante, para isso, uma visita ao pequeno Júlio, no domicílio espiritual em que estagia.
– Oh! será um prazer! – clamei, contente.
– Poderíamos seguir agora? – perguntou Hilário, encantado.
O Ministro refletiu por segundos e observou:
– Nas responsabilidades que esposamos, não é aconselhável indagar por indagar. Procuremos o objetivo, a utilidade e a colaboração no bem. Não nos achamos em férias e sim em trabalho ativo.
Pensou, pensou... e aduziu:
– Sei que amanhã, à noite, Eulália deve acompanhar duas de nossas irmãs encarnadas à visitação dos filhinhos que as precederam na grande viagem da morte e que se encontram no mesmo sítio em que Júlio se demora asilado. Poderemos substituir nossa
cooperadora no serviço a fazer. Seguiremos em lugar dela. Prestaremos assistência às nossas amigas e examinaremos a situação da criança.
Anotando a preciosa lição de trabalho que aquelas expressões encerravam, aguardamos a nite próxima, com ansiedade real.
Na hora aprazada, descemos à matéria densa,em busca das irmãs que seguiriam conosco.
Deixou-nos o Ministro numa casinha singela de remota região suburbana, depois de informar-nos:
– Aqui reside nossa irmã Antonina, com três dos quatro filhos que o Senhor lhe confiou. Incapaz de vencer as tentações da própria natureza, o marido abandonou-a, há quatro anos, para comprometer-se em delituosas aventuras. A dona da casa, porém, não desanimou. Trabalha com diligência numa fábrica de tecidos e educa os rebentos do lar com acendrado amor ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus. Tem sabido resgatar com valor as dívidas que trouxe do pretérito próximo. Perdeu, há meses, o pequeno
Marcos, de oito anos, atacado de fulminante pneumonia, e com ele se encontrará, depois da prece que proferirá com os pequeninos.
Trarei comigo a outra companheira de nossa viagem. Quanto a vocês, auxiliem nas orações e nos estudos de Antonina, até que eu volte, de modo a seguirmos todos juntos.
Hilário e eu penetramos a sala desataviada e estreita.
Uma senhora ainda jovem, mas extremamente abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crianças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma loura pequerrucha, certamente a caçula da família, que pousava na mãezinha os belos olhos azuis.
Num recanto do compartimento humilde, triste velhinho desencarnado como que se colocava à escuta.
Dona Antonina colocou sobre a toalha muito alva dois copos com água pura, tomou um exemplar do Novo Testamento e sentou-se.
Logo após, falou carinhosamente:
– Se não me falha a memória, creio que a prece de hoje deve ser feita por Lisbela.
A pequenita levou as minúsculas mãos ao rosto, apoiou graciosamente os cotovelos sobre a mesa e, cerrando os olhos, recitou:
– Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como nos Céus; o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores; não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo mal, porque vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja.
Lisbela abriu os olhos, de novo, e procurou silenciosamente a aprovação maternal.
Dona Antonina sorriu, satisfeita, e exclamou:
– Você orou muito bem, minha filha.
E dividindo agora a atenção com os dois meninos, entregou o Evangelho a um deles, convidando:
– Abra, Henrique. Vejamos a mensagem cristã para os nossos estudos da noite.
O rapazinho escolheu o texto, ao acaso, restituindo o livro às mãos maternais.
A genitora, emocionada, leu os versículos 21 e 22 do capítulo 18 das anotações do apóstolo Mateus:
– “Então Pedro, aproximando-se dele, disse: – Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei?
Até sete? Jesus lhe disse: – Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete.”
Calou-se dona Antonina, como quem aguardava a manifestação de curiosidade dos jovens aprendizes.
O pequeno Henrique, iniciando a conversação, perguntou, com simplicidade:
– Mãezinha, porque Jesus recomendava um perdão, assim tão grande?
Demonstrando vasto treinamento evangélico, a senhora replicou:
– Somos levados a crer, meus filhos, que o Divino Mestre, em nos ensinando a desculpar todas as faltas do próximo, inclinavanos ao melhor processo de viver em paz. Quem não sabe desvencilhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se do mal. Uma pessoa que esteja parada em lembranças desagradáveis caminha sempre com a irritação permanente. Imaginemos vocês na escola.
Se não conseguirem esquecer os pequeninos aborrecimentos nos estudos, não poderão aproveitar as lições. Hoje é um colega menos amigo a preparar lamentável brincadeira, amanhã é uma incorreção do guarda enfadado em razão de algum equívoco. Se vocês imobilizarem o pensamento na impaciência ou na revolta, poderão fazer coisa pior, afligindo a professora, desmoralizando a escola e prejudicando o próprio nome e a saúde. Uma pessoa que não sabe desculpar vive comumente isolada. Ninguém estima a
companhia daqueles que somente derramam de si mesmos o vinagre da queixa ou da censura.
Nessa altura do ensinamento, dona Antonina fitou o primogênito e perguntou:
– Você, Haroldo, quando tem sede preferiria beber a água escura de um cântaro recheado de lodo?
– Ah! isso não – replicou o mocinho muito sério, escolherei água pura, cristalina...
– Assim somos também, em se tratando de nossas necessidades espirituais. A alma que não perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso cheio de lama e fel. Não é coração que possa reconfortar o nosso. Não é alguém capaz de ajudar-nos a vencer nas dificuldades da vida. Se apresentamos nossa mágoa a um companheiro dessa espécie, quase sempre nossa mágoa fica maior. Por isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a perdoar infinitamente, para que o amor, em nosso espírito, seja como o Sol brilhando
em casa limpa.
Expressivo intervalo fez notar.
O jovem Haroldo, de semblante apoquentado, interferiu, indagando:
– Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos perdoar sempre?
– Como não, meu filho?
– Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior de todas?
– Ainda assim...
E, observando-o, inquieta, dona Antonina acentuou:
– Porque tratas deste assunto com tamanha preocupação?
– Refiro-me ao papai – disse o menino algo triste, papai abandonou-nos quando mais precisávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos fez?
– Oh! meu filho! – comentou a nobre mulher – não te detenhas nesse problema. Porque alimentar rancor contra o homem que te deu a vida? Como condená-lo se não sabemos tudo o que lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o nosso bem estar se ele estivesse conosco, mas, se devemos suportar a ausência dele, que os nossos melhores pensamentos o acompanhem. Teu pai, meu filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em que aprendes a servir a Deus. Por esse motivo, é credor de teu maior carinho.
Há serviços que não podemos pagar senão com amor. Nossa dívida para com os pais é dessa natureza...
Recordando talvez que a família se achava num curso de formação cristã, a dona da casa acrescentou:
– Um dia, quando Moisés, o grande profeta, foi ao monte receber a revelação divina, uma das mais importantes determinações por ele ouvidas do Céu foi aquela em que a Eterna Bondade nos recomenda: “Honrarás teu pai e tua mãe”. A Lei enviada ao
mundo não estabelece que devamos analisar a espécie de nossos pais, mas sim que nos cabe a obrigação de honrá-los com o nosso amoroso respeito, sejam eles quais forem.
A reduzida assembléia recolhia as explicações, de olhos felizes e iluminados.
Haroldo mostrou-se conformado, todavia, ainda ponderou:
– Compreendo, mãezinha, o que a senhora quer dizer. Entretanto, se papai estivesse junto de nós, talvez que Marcos não tivesse morrido. Teríamos o dinheiro suficiente para tratá-lo.
Dona Antonina enxugou, apressada, as lágrimas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação do filhinho, e continuou:
– Seria um erro permitir a queda de nossa confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao encontro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qualquer idéia triste, em torno da memória do anjo que nos precedeu.
Nossos pensamentos acompanham no Além aqueles que amamos.
Nesse ponto da conversação, Lisbela inquiriu, graciosa:
– Mãezinha, Marcos nos vê?
– Sim, minha filha – esclareceu dona Antonina, emocionada, ele nos ajuda em espírito, pedindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa vez, devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com as nossas melhores recordações.
Dona Antonina, porém, pareceu asfixiada por enormes saudades.
Enquanto os meninos comentavam com interesse os ensinamentos da noite, demorava-se absorta, mentalizando a imagem do pequenino...
Quando o relógio assinalou o fim do culto, solicitou a Henrique fizesse a oração de encerramento.
O petiz repetiu a prece dominical, rogando ao Senhor abençoasse a mãezinha, e o trabalho terminou.
A dona da casa repartiu com os pequenos alguns cálices da água cristalina que Hilário e eu magnetizáramos e, logo após, pensativa e saudosa, retirou-se com os filhinhos para a câmara em que se recolheriam todos juntos.