quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 33 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



33 – Aprendizado

Amaro e a família, coadjuvados por alguns vizinhos, amortalhavam a forma hirta do menino, quando rumamos de volta ao Lar da Bênção.
Notei que Júlio, asilado nos braços de Odila, se mostrava aliviado e tranqüilo, como nunca o vira até então.
Enquanto as nossas irmãs permutavam idéias, com respeito ao futuro, indaguei do orientador, acerca da serenidade que felicitava agora o pequenino.
Clarêncio informou, prestimoso:
– Júlio reajustou-se para a continuação regular da luta evolutiva que lhe compete. O renascimento malogrado não teve para ele tão somente a significação expiatória, necessária ao Espírito que deserta do aprendizado, mas também o efeito de um remédio curativo. A permanência no campo físico funcionou como recurso de eliminação da ferida que trazia nos delicados tecidos da alma.
A carne, em muitos casos, é assim como um filtro que retém as impurezas do corpo perispiritual, liberando-o de certos males nela adquiridos.
– Isso quer dizer...
O Ministro, porém, cortou-me a palavra, acentuando:
– Isso quer dizer que Júlio doravante poderá exteriorizar-se num corpo sadio, conquistando merecimento para obter uma reencarnação devidamente planejada, com elevados objetivos de serviço.
Terá, por alguns meses conosco, desenvolvimento natural, regressando à Terra, em elogiáveis condições de harmonia consigo mesmo.
– Mas voltará, assim, em tão pouco tempo? – perguntei, admirado.
– Esperamos que assim seja. Deve atender ao crescimento de qualidades nobres para a vida eterna que somente o retorno à escola da carne poderá facilitar. Além disso, precisa conviver com Amaro, Zulmira e Silva, de maneira a confraternizar-se realmente com eles, segundo o amor puro que o Cristo nos ensinou.
– Essas anotações – ponderei – lançam nova claridade em nosso estudo da vida.
Compreendemos, assim, que as moléstias complicadas e longas guardam função específica.
Os aleijões de nascença, o mongolismo, a paralisia...
– Sim – confirmou o orientador –, por vezes é tão grande a incursão da alma nas regiões de desequilíbrio, que mais extensa se faz para ela a viagem de volta à normalidade.
Sorrindo, acrescentou:
– O tempo de inferno restaurador corresponde ao tempo de culpa deliberada. Em muitas fases de nossa evolução somos imantados às teias da carne, que sempre nos reflete a individualidade intrínseca, assim como a argila é conduzida ao calor da cerâmica ou como o metal impuro é arrojado ao cadinho fervente. A depuração exige esforço, sacrifício, paciência.
Ante nosso olhar deslumbrado, tingira-se o horizonte de cores variegadas, anunciando o Sol que parecia nascer num mar de luz e ouro.
Muito longe, esmaeciam as estrelas e, perto de nós, nuvens leves caminhavam apressadas, tangidas pelo vento.
Contemplando a imensidão, Clarêncio considerou:
– Quando nosso espírito apreende alguma nesga da glória universal, desperta para as mais sublimes esperanças. Sonha com o acesso às esferas divinas, suspira pelo reencontro com amores santificados que o esperam em vanguardas distantes, aceitando, então, duros trabalhos de reajuste. Que representam, em verdade, para nós, alguns decênios de renunciação na Terra, em confronto com a excelsitude dos séculos de felicidade em mundos de sabedoria e trabalho enaltecedor!...
– Ah! se os homens percebessem !... – obtemperei, lembrando a rebelião que tantas vezes nos prejudica no mundo.
– Entenderão algum dia – objetou Clarêncio, otimista –; todos os seres progridem e avançam para Deus. O homem terrestre crescerá para o grande entendimento e louvará, feliz, o concurso da dor. O embrião do jequitibá, com os anos, se converte em tronco vetusto, rico de beleza e utilidade, e o espírito, com os milênios, transforma-se em gênio soberano, coroado de amor e sabedoria.
Depois de um minuto de silenciosa adoração à Natureza, o instrutor continuou:
– Volvendo ao caso de Júlio, não podemos olvidar que milhares de Inteligências, entre o berço e o túmulo, estão procurando a própria recuperação. À medida que se nos aclara a consciência e se nos engrandece a noção de responsabilidade, reconhecemos que a nossa dignificação espiritual é serviço intransferível. Devemos
a nós mesmos quanto nos sucede em matéria de bem ou de mal.
– Importante observar – disse Hilário, pensativo – como a vida reclama, no refazimento da paz, a conjugação daqueles que entraram em guerra uns com os outros... No passado, Júlio arrojou-se ao despenhadeiro do suicídio sob a influência de Amaro, e Zulmira, após indispor-se com Silva...
– E, agora – completou Clarêncio –, reabilita-se com o auxílio de Zulmira e Amaro, de modo a rearmonizar-se com o enfermeiro.
É natural seja assim.
– Mas Júlio, antes de tornar ao mundo, através do nosso amigo ferroviário – indaguei, onde estaria?
– Depois de haver eliminado o próprio corpo, satisfazendo a simples capricho pessoal, sofreu por muitos anos as tristes conseqüências do ato deliberado, amargando nos círculos vizinhos da Terra as torturas do envenenamento a se lhe repetirem no campo mental. A morte prematura, quando traduz indisciplina diante das
leis infinitamente compassivas que nos governam, constrange o Espírito que a provoca a dilatada purgação na paisagem espiritual.
Não podemos trair o tempo e a existência planificada subordinase a determinada quota de tempo, que nos compete esgotar em trabalho justo. Quando esses recursos não são suficientemente aproveitados, arcamos com tremendos desequilíbrios na organização que nos é própria.
– Sofreria, porém, a sós?
– Nem sempre – informou o instrutor –; quando não se achava em martirizada solidão, via-se, como é lógico, onde se lhe mantinha preso o pensamento.
Ante a nossa curiosidade indagadora, acrescentou:
– Os pensamentos dele se alimentavam na atmosfera psíquica de Zulmira, Amaro e Silva, que lhe serviam de pontos básicos ao ódio. Ensinava Jesus que o homem terá o seu tesouro onde guarde o coração e, efetivamente, todos nos imantamos, em espírito, às pessoas, lugares e objetos, aos quais se liguem os nossos sentimentos.
– Mas Júlio estava em contacto com eles nas esferas espirituais ou nas experiências do mundo físico?
– Partilhava-lhes a vida simplesmente, e a vida, em qualquer setor de luta, é invariável. Entretanto, por detestar Amaro mais profundamente, pesava com mais intensidade sobre ele. O ferroviário, na existência do Espaço, conheceu-lhe a perseguição acérrima, ouvindo-lhe as acusações e as queixas, nas regiões purgatoriais
e, ao se reencarnar, na atual condição, foi seguido de perto por Júlio, que lhe afligia a mente, dele exigindo o necessário concurso à formação do novo corpo. Em razão da leviandade de Amaro, quando na personalidade de Armando, caminhara para o suicídio. Por isso mesmo, a Lei permitia-lhe a união com o amigo transformado em desafeto, companheiro esse do qual reclamava a renovação da oportunidade perdida.
Clarêncio fitou-nos, de modo especial, e aduziu:
– Entre o credor e o devedor há sempre o fio espiritual do compromisso.
– Amaro teria tido, dessa forma, uma juventude algo conturbada – ponderei com objetivo de estudo.
– Sim, como acontece à maioria dos moços de ambos os sexos, na luta vulgar, muito cedo acordou para o ideal da paternidade.
Em sonhos, fora do corpo denso, encontrava-se com o adversário que lhe pedia o retorno ao mundo e, ansioso de reconciliação, pensava no casamento com extremado desassossego, desejoso de saldar a conta que reconhecia dever. Muito jovem ainda, encontrou Odila que o aguardava, consoante o acordo por ambos levado a efeito, na vida espiritual; no entanto, as vibrações de Júlio eram efetivamente tão incômodas que a primeira esposa do nosso amigo não conseguiu acolhê-lo, de imediato, recebendo Evelina, em primeiro lugar, de vez que a ligação do casal com ela se baseia em doces afinidades. Somente depois da primogênita é que se ambientou para a incorporação do suicida em sofrimento...
– Este ponto de nossa conversação – lembrei, respeitoso – faz-me recordar os conflitos interiores de muitos rapazes e de muitas moças na Terra. Às vezes se arrojam ao casamento com absoluta inaptidão para as grandes responsabilidades, qual se estivessem impulsionadas por molas invisíveis, sem qualquer consideração para com os impositivos da prudência. Como se fossem atacados por subitânea loucura, desatendem a todos os conselhos do lar ou dos amigos, para despertarem, depois, com problemas de enorme gravidade, quando não acordam sob a neblina de imensas desilusões. Agora compreendo... Na base dos sonhos juvenis, quase sempre moram dívidas angustiosas a que não se pode fugir...
– Sim – confirmou o Ministro –, grande número de paixões afetivas no mundo correspondem a autênticas obsessões ou psicoses, que só a realidade consegue tratar com êxito. Em muitas ocasiões, por trás do anseio de união conjugal, vibra o passado, através de requisições dos amigos ou inimigos desencarnados, aos quais devemos colaboração efetiva para a reconquista do veículo carnal. A inquietação afetiva pode expressar escuros labirintos da retaguarda...
Refletindo nas lutas da alma, atirada às experiências da vida com tantos enigmas a solver, acudiu-me à lembrança antiga questão que habitualmente me vinha à cabeça.
– E os anjos de guarda? – inquiri.
Diante da surpresa que assomou ao semblante do nosso orientador, acentuei, reverente:
– Perdoe-me, mas ainda sou estudante incipiente da vida espiritual.
Os anjos de guarda estão em nossa esfera?
Clarêncio encarou-me, admirado, e sentenciou:
– Os Espíritos tutelares encontram-se em todas as esferas, contudo é indispensável tecer algumas considerações sobre o assunto. Os anjos da sublime vigilância, analisados em sua excelsitude divina, seguem-nos a longa estrada evolutiva. Desvelam-se por nós, dentro das Leis que nos regem, todavia não podemos esquecer que nos movimentamos todos em círculos multidimensionais.
A cadeia de ascensão do espírito vai da intimidade do abismo à suprema glória celeste.
Ligeira pausa trouxe paternal sorriso aos lábios do instrutor, que prosseguiu:
– Será justo lembrar que estamos plasmando nossa individualidade imperecível no espaço e no tempo, ao preço de continuadas e difíceis experiências. A idéia de um ente divinizado e perfeito, invariavelmente ao nosso lado, ao dispor de nossos caprichos ou ao sabor de nossas dívidas, não concorda com a justiça.
Que governo terrestre destacaria um de seus ministros mais sábios e especializados na garantia do bem de todos para colar-se, indefinidamente, ao destino de um só homem, quase sempre renitente cultor de complicados enigmas e necessitado, por isso mesmo, das mais severas lições da vida? Porque haveria de obrigar-se um arcanjo a descer da Luz Eterna para seguir, passo a passo, um homem deliberadamente egoísta ou preguiçoso? Tudo exige lógica, bom senso.
– Com semelhante apontamento, quer dizer que os anjos de guarda não vivem conosco?
– Não digo isso – asseverou o benfeitor.
E, com graça, aduziu:
– O Sol está com o verme, amparando-o na furna, a milhões e milhões de quilômetros, sem que o verme esteja com o Sol.
As irmãs que seguiam conosco, lado a lado, embevecidas na contemplação do céu, comentavam carinhosamente o porvir de Júlio, psiquicamente distanciadas de nossa conversação.
O apontamento de nosso orientador impunha-nos graves reflexões e, talvez por esse motivo, o silêncio tentou apossar-se do grupo, mas Clarêncio, reconhecendo que o assunto demandava elucidação mais ampla, continuou:
– “Anjo, segundo a acepção justa do termo, é mensageiro.
Ora, há mensageiros de todas as condições e de todas as procedências e, por isso, a antigüidade sempre admitiu a existência de anjos bons e anjos maus. Anjo de guarda, desde as concepções religiosas mais antigas, é uma expressão que define o Espírito celeste que vigia a criatura em nome de Deus ou pessoa que se devota infinitamente a outra, ajudando-a e defendendo-a. Em qualquer região, convivem conosco os Espíritos familiares de nossa vida e de nossa luta. Dos seres mais embrutecidos aos mais sublimados, temos a corrente de amor, cujos elos podemos simbolizar nas almas que se querem ou que se afinam umas com as outras, dentro da infinita gradação do progresso.
“A família espiritual é uma constelação de Inteligências, cujos membros estão na Terra e nos Céus. Aquele que já pode ver mais um pouco auxilia a visão daquele que ainda se encontra em luta por desvencilhar-se da própria cegueira. Todos nós, por mais baixo nos revelemos na escala da evolução, possuímos, não longe de nós, alguém que nos ama a impelir-nos para a elevação. Isso podemos verificar nos círculos da matéria mais densa. Temos constantemente corações que nos devotam estima e se consagram ao nosso bem. De todas as afeições terrestres, salientemos, para exemplificar, a devoção das mães. O espírito maternal é uma espécie de anjo ou mensageiro, embora muita vez circunscrito ao cárcere de férreo egoísmo, na custódia dos filhos. Além das mães, cujo amor padece muitas deficiências, quando confrontado com os princípios essenciais da fraternidade e da justiça, temos afetos e simpatias dos mais envolventes, capazes dos mais altos sacrifícios por nós, não obstante condicionados a objetivos por vezes egoísticos.
Não podemos olvidar, porém, que o admirável altruísmo de amanhã começa na afetividade estreita de hoje, como a árvore parte do embrião.
“Todas as criaturas, individualmente, contam com louváveis devotamentos de entidades afins que se lhes afeiçoam. A orfandade real não existe. Em nome do Amor, todas as almas recebem assistência onde quer que se encontrem. Irmãos mais velhos ajudam os mais novos. Mestres inspiram discípulos. Pais socorrem os filhos. Amigos ligam-se a amigos. Companheiros auxiliam companheiros. Isso ocorre em todos os planos da Natureza e, fatalmente, na Terra, entre os que ainda vivem na carne e os que já atravessaram o escuro passadiço da morte. Os gregos sabiam disso e recorriam aos seus gênios invisíveis. Os romanos compreendiam essa verdade e cultuavam os numes domésticos. O gênio guardião será sempre um Espírito benfazejo para o protegido, mas
é imperioso anotar que os laços afetivos, em torno de nós, ainda se encontram em marcha ascendente para mais altos níveis da vida.
“Com toda a veneração que lhes devemos, importa reconhecer, nos Espíritos familiares que nos protegem, grandes e respeitáveis heróis do bem, mas ainda singularmente distanciados da angelitude eterna. Naturalmente, avançam em linhas enobrecidas, em planos elevados, todavia, ainda sentem inclinações e paixões particulares, no rumo da universalização de sentimentos. Por esse motivo, com muita propriedade, nas diversas escolas religiosas, escutamos a intuição popular asseverando: – “nossos anjos de guarda não combinam entre si”, ou, ainda, “façamos uma oração aos anjos de guarda”, reconhecendo-se, instintivamente, que os gênios familiares de nossa intimidade ainda se encontram no campo de afinidades específicas e precisam, por vezes, de apelos à natureza superior para atenderem a esse ou àquele gênero de serviço.”
Chegávamos ao Lar da Bênção e os esclarecimentos do instrutor represavam-se em nossa alma, por inesquecível preleção, compelindo-nos a grande silêncio.
Blandina, porém, veio até nós e perguntou ao orientador, sensibilizada:
– Generoso amigo, podemos estar realmente convictos de que Júlio devia desencarnar, agora?
– Perfeitamente. A Lei funcionou, exata. Não há lugar para qualquer dúvida.
– E aqueles jatos de pensamento escuro que partiram do enfermeiro, como que envenenando o nosso doentinho?
– Se não estivéssemos junto dele – disse o Ministro –, teriam efetivamente abreviado a morte da criança e, ainda assim, a Lei ter-se-ia cumprido; entretanto, aqueles pensamentos escuros de Mário voltaram para ele mesmo. Emitiu-os, com o evidente propósito de matar e, em razão disso, experimenta o remorso de um autêntico assassino.
A graciosa residência de Blandina, para onde nos encaminhávamos, estava agora à nossa vista.
Clarêncio afagou-a, bondoso, e concluiu:
– Permaneçamos convencidos, minha filha, de que, em qualquer lugar e em qualquer tempo, receberemos da vida, de acordo com as nossas próprias obras.

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 32 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



32 – Recaptulação

De volta ao hospital, o enfermeiro não encontrou pessoalmente o chefe, que se ausentara, constrangido por serviço urgente, mas recebeu das mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções.
O rapaz leu a ficha, atenciosamente.
Um menino, perfeitamente caracterizado nas indicações, atacado de crupe, exigia socorro imediato.
De posse do endereço e munindo-se do material imprescindível ao tratamento, Silva rodou num ônibus para a casa de Amaro.
Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto.
Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia gentileza e contentamento na saudação, tartamudeava alguns monossílabos, desapontado, espantadiço...
Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez do rosto.
Então – refletia, acabrunhado – era aquela casa que lhe cabia atender? Se soubesse de antemão, teria solicitado um substituto.
Não pretendia reaproximar-se dos desafetos dos quais se havia distanciado... Abominava o homem que lhe furtara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem observar-se tocado de insólita aversão... Muita vez, rememorando o passado, calculava quanto ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência... Porque lhe competia
revê-la? Porque salvar-lhe o filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe a casa?
Entretanto, algo interferia em suas reflexões. Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental.
Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher valorosa, repetindo-lhe ao coração:

“As mãos que curam não podem ferir...”
“Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos...”
“A vida não termina neste mundo...”
“Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem...”


Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colocá-lo à vontade, Amaro solicitou em voz súplice:
– Entre, Mário! conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo...
E, indicando o quarto próximo, acrescentou:
– Zulmira está lá dentro com o nosso filhinho. Já me entendi com o médico pelo telefone e sei que o crupe foi positivado.
O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinalmente.
Varou a câmara, perturbado, lívido.
Quando viu a mulher que amara apaixonadamente, trazendo o pequenino ao colo, registrou súbita vertigem de revolta.
Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha aflição lhe oprimia o peito.
A volúpia da vingança enceguecia-o...
Zulmira pagar-lhe-ia, caro, a deserção – pensava de olhos fixos na maternidade dolorosa que ali se exteriorizava em mortificante padecimento.
Contemplou a criancinha que a dispnéia agitava e deu curso a incontida animosidade. Tinha a impressão de odiá-la, de longa data. Ele próprio se surpreendia, sobressaltado... Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência? Mas, acreditando justificar a terrível disposição de espírito com a circunstância
de achar-se, ali, o fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não procurou analisar-se. A idéia de que Amaro e a esposa sofreriam irreparavelmente, com a morte do petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço. A felicidade daquele templo doméstico dependia, naquela hora, de sua atuação. E se cooperasse com a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a desaparecer? A pergunta criminosa traspassou-lhe o pensamento como um estilete de treva.
Contudo, a lembrança do culto de oração, no lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça.
As consoladoras afirmações da mãezinha de Lisbela regressavam-lhe aos ouvidos:

“Vale sempre mais o acordo pacífico...”
“Não devemos nutrir qualquer espécie de aversão...”
“Quem ajuda é ajudado...”
“Ninguém se eleva aos mais altos níveis da vida com o endurecimento espiritual...”
“Nunca sabemos realmente até que ponto somos ofendidos ou ofensores...”
“O perdão é vitória da luz...”


Os retalhos da palestra edificante afiguravam-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expansão dos malignos desejos.
Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe na consciência em breve minuto...
Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva torturada, que o reconheceu de pronto, tentando cumprimentá-lo.
Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispondo-se ao serviço.
– Mário! – implorou a pobre senhora, agoniada – compadeçase de nós! ajude-nos! Esperei meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios... Será crível deva agora vê-lo morrer?
Lágrimas copiosas seguiam-lhe os soluços que lhe emudeceram a garganta.
Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca lhe impunha inquietação, mas naquele instante soberana indiferença enrijecia-lhe o espírito. Que lhe importava a dor da mulher que o abandonara?
Zulmira rira-se dele, anos antes... não lhe cabia rir-se agora?
De semblante rude, recomendou fosse a criança restituída ao leito e, logo após, tateou-lhe a sensibilidade.
De pensamento martelado pelas idéias recolhidas no estudo evangélico da noite e contido pela suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.
Ainda assim, como se carregasse um gênio infernal na própria mente, assinalou as criminosas sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfogueado.
A ministração de medicamento impróprio, decerto, favoreceria a rápida extinção do enfermo. Júlio encontrava-se à beira da sepultura... apenas o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga...
Todavia, o semblante de Antonina dominava-lhe a memória, exaltando o perdão.
Se viesse àquela casa na véspera – considerou consigo mesmo –, teria exterminado o petiz sem piedade... Recorreria à eutanásia para justificar-se intimamente.
Naquela hora, porém, os princípios evangélicos da fraternidade e da conciliação, como pensamentos intrusos, atenazavam-lhe a consciência.
Esperou, silencioso, a reação do menino ofegante e, embora assinalasse graves complicações que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com o médico responsável, fez a aplicação do soro antidiftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se em veneno destruidor.
Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças.
Ante o assombro com que observávamos a exteriorização daquele visco enegrecido, nosso instrutor elucidou de boa vontade:
– São fluidos deletérios do ódio com que Silva, inconscientemente, procura envolver a infeliz criança, contudo as nossas defesas estão funcionando.
Odila, que chamara Blandina e Mariana até nós, acompanhava a medicação, ansiosamente.
– Abnegado amigo – dirigiu-se, inquieta, ao nosso orientador –, acredita que Júlio possa recuperar-se?
Clarêncio, que estabelecera extensa faixa magnética em torno do doentinho, preservando-o contra a influência do visitante, meneou a cabeça e falou, paternal:
– Odila, é tempo de penetrares a verdade. O menino deixará o corpo talvez em breves horas. O futuro dele exige a frustração do presente. Fortalece-te, contudo... A Vontade Divina, expressa na Lei que nos rege, faz sempre o melhor.
E talvez porque nossa irmã decepcionada ensaiasse nova perquirição, o devotado condutor pediu-lhe, calmo:
– Não indagues agora. Saberás mais tarde. Júlio reclama assistência, vigilância, carinho.
A interlocutora recompôs a expressão fisionômica, denunciando humildade e disciplina.
O enfermeiro fitava o pequeno, qual se estivesse a hipnotizálo para a morte, observando-lhe as contrações faciais.
Os genitores fixavam igualmente a criança, em tremenda expectativa.
Em dado instante, Júlio estremeceu, empalidecendo.
Descontrolara-se-lhe o coração.
Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, procurou os olhos de Amaro, aflito, e solicitou em voz menos dura:
– Convém a presença imediata do nosso facultativo. Receio um choque anafilático de conseqüências fatais.
Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o ferroviário se despejava porta a fora, em busca do pediatra.
Minutos longos de espera foram vividos no quarto estreito.
Uma hora escoou, vagarosa e terrível...
Preocupado, o médico auscultou a criança e, logo após, convidou o pai desolado a entendimento mais íntimo, anunciando:
– Surgiu o colapso irremediável. Infelizmente é o fim. Se o senhor tem fé religiosa, confiemos o caso a Deus. Agora, somente a concessão divina...
Amaro, consternado, baixou a cabeça e nada respondeu.
O pediatra trocou idéias com Silva, que se fizera muito pálido, e deu-lhe instruções, recomendando-lhe, ao despedir-se, permanecesse com o pequenino, por mais algumas horas.
Um sedativo administrado em Zulmira compeliu-a ao repouso.
Júlio, em coma, respirava dificilmente.
Enquanto isso, a noite avançava... A madrugada, agora lavada pelo vento leve, permitia ver o céu povoado de cintilantes constelações.
Reparando que a mulher e a filha descansavam, Amaro encaminhou-se para a janela próxima, como quem procurava consolo, no seio agasalhante da noite, e começou a chorar em silêncio.
Ao lado da criancinha agonizante, o enfermeiro observava-lhe a atitude sofredora e humilde, reconhecendo-se tocado no imo d'alma.
Porque lutara contra semelhante inimigo? – pensava, ensimesmado.
– Amaro assemelhava-se a uma estátua de martírio silencioso. Estava ali, cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era um homem de bem, devotado à retidão. Decerto, já havia amargado muito. O rosto, sulcado de rugas precoces, que lhe detinham o pranto, falava da cruz de experiências difíceis que lhe pesava nos ombros. Quantos problemas inquietantes teria defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo rigor da sorte? Como pudera ele, Mário Silva, ser ali tão cruel? Rememorou as passagens
da hora de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evangelho estribava-se nas melhores razões.
Mais valia conciliar-se depressa com o adversário que enterrar um espinho de remorso no próprio peito, e ele notava, triste, que o remorso como lâmina acerada lhe retalhava o coração...
Amaro e a esposa, indiscutivelmente, poderiam ter manifestado desconfiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, entretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços abertos... Se o haviam ferido, noutro tempo, não se achavam agora sob o guante de terrível flagelação? Rendia graças a Deus por não haver injetado
substâncias tóxicas no doentinho agora moribundo, mas não teria, acaso, concorrido para abreviar-lhe a morte? Experimentava o desejo de abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, mas sentia vergonha de si mesmo...
Durante quase duas horas permaneceram ali, os dois, calados e impassíveis.
A aurora começava a refletir-se no firmamento em largas riscas rubras, quando o ferroviário abandonou a meditação, aproximando-se do filhinho quase morto.
Num gesto comovente de fé, retirou da parede velho crucifixo de madeira e colocou-o à cabeceira do agonizante. Em seguida, sentou-se no leito e acomodou o menino ao colo com especial ternura. Amparado espiritualmente por Odila, que o enlaçava,
demorou o olhar sobre a imagem do Cristo Crucificado e orou em alta voz:
– Divino Jesus, compadece-te de nossas fraquezas !... Tenho meu espírito frágil para lidar com a morte! Dá-nos força e compreensão...
Nossos filhos te pertencem, mas como nos dói restituilos, quando a tua vontade no-los reclama de volta!...
O pranto embargava-lhe a voz, mas o pai sofredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade de oração, prosseguiu:
– Se é de teu desígnio que o nosso filhinho parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor e luz! Concede-nos, porém, a precisa coragem para suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade e dor!... Dá-nos resignação, fé, esperança!... Auxilia-nos
a entender-te os propósitos e que a tua vontade se cumpra hoje e sempre!...
Jatos de safirina claridade escapavam-lhe do peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco, adormeceu.
Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigando-se nos braços de Odila, à maneira de um órfão que busca tépido ninho de carícias.
Tocado nas fibras mais recônditas do ser e percebendo que a morte ali estendera as suas grandes asas, Silva experimentou violenta comoção a constringir-lhe a alma. Convulsivo choro agitou-lhe o peito, enquanto uma voz inarticulada, que parecia
nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe na consciência:
– Assassino! Assassino!...
Desorientado e inseguro, o moço correu para a via pública, achando-se, atormentado, no seio da sombra fria, soluçando...