quinta-feira, 9 de setembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 23 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



23 – Apelo Maternal

A paisagem doméstica, na residência de Amaro, não mostrava qualquer alteração.
Zulmira, atormentada por Odila, que realmente lhe vampirizava as forças, jazia no leito, apática e desolada, como estátua viva de angústia e medo escutando o vento que zunia, lá fora...
Mais magra e mais abatida, exibia comovedoramente a própria exaustão.
Irmã Clara, depois de expressivo entendimento com o nosso orientador, solicitou que nos mantivéssemos a pequena distância, e, abeirando-se da genitora de Evelina, que tanto quanto a enferma não nos percebia a presença, alongou os braços em prece. Sob forte emoção, acompanhei o formoso quadro que se desdobrou, divino, ao nosso olhar.
Gradativamente, o recinto foi invadido por vasto círculo de luz, do qual se fizera a instrutora o núcleo irradiante. Assemelhava-se nossa amiga a uma estrela repentinamente trazida à Terra, com os dois braços distendidos em forma de asas, prestes a desferir excelso vôo...
Cercava-a enorme halo de dourado esplendor, como se ouro eterizado e luminescente lhe emoldurasse a forma leve e sublime...
Dos revérberos dessa natureza, passavam as irradiações a tonalidades diferentes, em círculos fechados sobre si mesmos, caminhando dos reflexos de ouro e opala ao róseo vivo, do róseo vivo ao azul celeste, do azul celeste ao verde claro e do verde
claro ao violeta suave, que se transfundia em outros aspectos a me escaparem da apreciação...
Tive a idéia de que a irmã Clara se convertera no centro de milagroso arco-íris, cuja existência nunca pudera vislumbrar.
Fizera-se a casa excessivamente estreita para aquela abençoada fonte de raios balsamizantes e indefiníveis.
Reparei que a própria Odila se aquietara como que dominada por branda coação.
Extático, mal consegui articular alguns monossílabos, procurando esclarecimento em nosso instrutor.
– Irmã Clara – informou o Ministro, igualmente enlevado – já atingiu o total equilíbrio dos centros de força que irradiam ondulações luminosas e distintas. Em oração, ao influxo da mente enaltecida, emite as vibrações do seu sentimento purificado, que constituem projeções de harmonia e beleza a lhe fluírem do ser.
Se partilhássemos com ela a mesma posição evolutiva, entraríamos agora em relação imediata com o elevado plano de consciência em que se exterioriza e, então, em vez de somente observarmos este deslumbramento de luz e cor, perceberíamos a mensagem
glorificada que lhe nasce do coração, de vez que as irradiações sob nossos olhos são música e linguagem, sabedoria e amor do pensamento a expressar-se maravilhoso e vivo... A sintonia espiritual perfeita, porém, só é possível entre aqueles que se confundem na afinidade completa...
A mensageira transfigurada parecia mais bela.
Avançou para a primeira esposa de Amaro e cobriu-lhe os olhos com a destra lirial.
– Reparem – disse Clarêncio, feliz –: ela guarda o poder de ampliar a visão. Odila identificar-lhe-á a presença, assim como a vemos.
Com efeito, vimos que a genitora de Evelina, tocada por aqueles dedos celestes, proferiu um grito de encantamento selvagem e caiu de joelhos.
Naturalmente ofuscada pelo brilho de que se envolvia a visitante inesperada, começou a chorar, suplicando:
– Anjo de Deus, socorre-me! socorre-me!...
– Odila, que fazes? – interrogou a emissária com inesquecível inflexão de ternura.
– Estou aqui, vingando-me por amor...
– Haverá, porém, algum ponto de contacto entre amor e vingança?
Indicando timidamente a triste companheira que jazia acorrentada ao leito, Odila tentou conservar a atitude que lhe era característica, exclamando, cruel:
– Devo alijar a intrusa que me assaltou a casa! Esta miserável mulher tomou-me o marido e assassinou-me o filhinho!... Quem ama faz justiça pelas próprias mãos!...
– Pobre filha! – revidou Clara, abraçando-a. Quem ama semeia a vida e a alegria, combatendo o sofrimento e a morte...
Quando nosso culto afetivo se converte em flagelação para os que seguem ao nosso lado, não abrigamos outro sentimento que não seja aquele do desvairado apego a nós mesmos, na centralização do egoísmo aviltante. Achamo-nos à frente de infortunada irmã, arrojada a dolorosa prova. Não te dói vê-la derrotada e infeliz?
– Ela desposou o homem que amo!... – soluçou Odila, mais dominada pela influência magnética da mensageira que impressionada por suas belas palavras.
– Não seria mais justo – ponderou Clara sem afetação – considerar que ele a desposou?
E, acariciando-lhe a cabeça agora trêmula, a instrutora aduziu:
– “Odila, o ciúme que não destruímos, enquanto dispomos da oportunidade de trabalhar no corpo denso, transforma-se em aflitiva fogueira a calcinar-nos o coração, depois da morte.
“Acalma-te! A mulher de carne, que eras, precisa agora oferecer lugar à mulher de luz que deves ser. A porta do lar terrestre, onde te supunhas rainha de pequeno império sem fira, cerrou-se com os teus olhos materiais! A passagem na Terra é um dia na escola... Todos os bens que desfrutávamos no mundo de onde viemos constituíam recursos do Senhor que no-los concedia a título precário. Por lá, raramente nos lembramos de que o tesouro do carinho doméstico é algo semelhante a sementeira preciosa, cujos valores devemos estender...
“Começamos a obra de amor no lar, mas é necessário desenvolvê-la no rumo da Humanidade inteira. Temos um só Pai que é o Senhor da Bondade Infinita, que nos centraliza as esperanças...
“Somos, assim, todos irmãos, partes integrantes de uma família só... Já te imaginaste no lugar de Zulmira, experimentando-lhe as dificuldades e aflições? Já te colocaste na condição do esposo que asseveras amar? Se te visses no mundo, sem a companhia dele, com os filhinhos necessitados de consolo e sustentação, não
sentirias reconhecimento por alguém que te auxiliasse a protegêlos?
“Consideras somente os teus problemas... Entretanto, o homem amado permanece no cárcere de escuros padecimentos íntimos a debater-se com enigmas inquietantes, sem que te disponhas a socorrê-lo...”
– Não me fales assim! – imprecou a interpelada, com evidentes sinais de angústia – Odeio a infame que nos roubou a felicidade...
– Odila, reflete! Esqueces-te de que a mulher sempre é mãe?
O túmulo não te restituirá o corpo que a Terra consumiu e, se desejas recuperar a ternura e a confiança do companheiro que deixaste na retaguarda, é preciso saber amá-lo com o espírito.
Modifica os impulsos do coração! Não suponhas Amaro capaz de querer-te, transtornada qual te encontras, entre as farpas envenenadas do despeito, caso chegasse, de repente, até nós...
– Ela, porém, matou meu filho!...
– Como podes provar semelhante acusação?
– A intrusa invejava-lhe a posição no carinho de Amaro.
– Sim – concordou Clara, afetuosa –, admito que Zulmira assim se conduzisse. É inexperiente ainda e a ignorância enquanto nos demoramos na Terra pode impedir-nos a visão, mas não seria justo, tão somente por isso, atribuir-lhe a morte do pequenino...
Medita! A verdadeira fraternidade ajudar-te-á a sentir naquela que te sucedeu no lar uma filha suscetível de recolher-te o afeto e a orientação... Em lugar de forjares uma inimiga na sinistra bigorna da crueldade, edificarás uma dedicação nobre e leal para enriquecer-te a vida. Retirando a luz do teu amor das chamas comburentes
do inferno de ciúme em que padeces pela própria vontade, serás realmente para o homem querido e para a filha que clama por tua assistência uma inspiração e uma bênção!...
Talvez porque Odila, quase vencida, simplesmente chorasse, a mensageira afagava-lhe os cabelos, acrescentando:
– Sei que sofres igualmente como mãe atormentada... Recorda, contudo, que nossos filhos pertencem a Deus... E se a morte colheu a criança que estremeces, separando-a dos braços paternais, é que a Vontade Divina determinou o afastamento...
A mensageira amimava-lhe a fronte, dando-nos a impressão de que a submetia a suaves operações magnéticas.
Depois de alguns instantes em que apenas ouvíamos os soluços de Odila transformada, a venerável amiga acentuou:
– Porque não te dispões a clarear o próprio caminho, a fim de reencontrares o teu anjo e embalá-lo, de novo, em teus braços, ao invés de te consagrares inutilmente à vingança que te cega os olhos e enregela o coração?
Clara, certo, alcançara o ponto sensível daquela alma atribulada, porque a infortunada genitora de Evelina, qual se arrojasse para fora de si mesma todos os pesares que lhe senhoreavam os sentimentos, gritou, como fera jugulada pela dor:
– Meu filho!... Meu filho!...
E seu pranto convulsivo se fez mais angustiado, mais comovente.
A emissária do bem abraçou-a com maternal carícia e falou-lhe aos ouvidos:
– Rejubila-te, irmã querida! Grande é a tua felicidade! Podes ajudar e isso representa a ventura maior! Nada te impede auxiliar o companheiro da humana experiência, ao alcance de tuas mãos, e basta uma prece de amor puro, com o testemunho de tua compreensão e de tua piedade, para que venças a reduzida distância entre o teu sofrimento e o filhinho idolatrado!... Há vinte e dois séculos
espero por um minuto igual a este para o meu saudoso e agoniado coração, de vez que os meus amados ainda não se inclinaram para mim!
A voz de Clara parecia mesclada de lágrimas que não chegavam a surgir.
Dominada pelas vibrações da mensageira celeste, Odila agarrou-se a ela, prosseguindo em choro convulso, enquanto a instrutora repetia com desvelos de mãe:
– Vamos, filha! Vamos à procura de nossa renovação com Jesus!...
Amparando-a, Clara conduziu-a para fora, colada ao próprio peito.
Junto de nós, Clarêncio informou:
– Agora, Zulmira poderá recuperar-se. A adversária retirou-se sem a violência que lhe prejudicaria o campo mental.
E, acompanhando o nosso orientador, afastamo-nos por nossa vez, embora conservando a atenção presa à continuação de nossa edificante aventura.