quinta-feira, 16 de setembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 24 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



24 – Carinho Reparador

Odila, sob o patrocínio da irmã Clara, foi internada numa instituição de tratamento, por alguns dias, e, durante sete noites consecutivas, visitamos Zulmira, em companhia de nosso orientador, a fim de auxiliar o soerguimento dela.
A segunda esposa de Amaro mostrava-se melhor. Mais silenciosa.
Mais calma. Não saíra, porém, da inércia a que se recolhera.
Alijara a excitação de que se via objeto, mas prosseguia entregue a extrema prostração. Subnutrida, apática, sustentava-se no mais absoluto desânimo.
Atendendo-nos à inquirição habitual, Clarêncio observou, prestimoso:
– Acha-se agora liberta, contudo, reclama estímulo para subtrair-se à exaustão. Falta-lhe a vontade de lutar e viver. Confiemos, no entanto. A própria Odila favorecer-lhe-á a recuperação. A medida que se lhe restaure a visão espiritual, a primeira esposa de Amaro aceitará o imperativo de renúncia e fraternidade para
construir o futuro que lhe interessa.
Zulmira, com efeito, continuava livre e tranqüila. As peças do corpo funcionavam com irrepreensível harmonia, mas, efetivamente, algo prosseguia faltando... A máquina mostrava-se reequilibrada, entretanto, mantinha-se preguiçosa, exigindo adequadas providências.
Transcorrida uma semana, Irmã Clara convidou-nos a breve entendimento. Comunicou-nos que Odila revelava grande transformação.
Submetida à assistência magnética, a fim de sondar o passado, reconhecera o impositivo de sua colaboração com o marido para alcançarem ambos a vitória real nos planos do espírito.
Suspirava pelo reencontro com o filhinho, dispunha-se a tudo fazer para ser útil ao esposo e à filhinha...
E, para tanto, combateria a repulsa espontânea que experimentava por Zulmira, a quem auxiliaria como irmã, reajustando-se devidamente para fortalecê-la e ampará-la.
A benfeitora mostrava-se satisfeita.
Recomendava-nos trouxéssemos Amaro, tão logo pudesse ele ausentar-se do veículo físico, na noite próxima, até à casa espiritual de refazimento em que Odila se encontrava.
Do entendimento entre ambos, resultariam decerto os melhores efeitos.
A mãezinha de Evelina estava reformada e daria provas do reajuste, efetuando o primeiro esforço para a reconciliação.
A solicitação de Clara foi alegremente atendida.
Depois de meia-noite, quando o ferroviário se rendeu à branda influência do sono, guiamo-lo ao sítio indicado.
No aposento claro e florido do santuário de recuperação em que Odila se localizava, aguardava-nos a instrutora junto dela.
O pai de Júlio, que seguia menos consciente ao nosso lado, em reconhecendo a presença da mulher que amava, ajoelhou-se, cobrou a lucidez que lhe era possível em tais circunstâncias, e exclamou, enlevado:
– Odila!... Odila!...
– Amaro! – respondeu a antiga companheira, então completamente transfigurada – sou eu! sou eu quem te pede coragem e fé, serenidade e valor na tarefa a realizar!...
– Estou farto, farto... – clamou ele, agora em lágrimas a lhe verterem, copiosas.
Odila, sustentada pela venerável amiga, levantou-se com alguma dificuldade e, alisando-lhe os cabelos, perguntou, em voz comovida:
– Farto de quê?
– Sinto-me entediado da vida... Casei-me, de novo, como deves saber, acreditando garantir a segurança de nossos filhos para o futuro, entretanto, a mulher que desposei nem de longe chega a teus pés... Fui ludibriado! Em lugar da felicidade, encontrei o desapontamento que não sei disfarçar!...
E, fitando-a com enternecedora expressão, comentou, triste:
– Nosso Júlio morreu num desastre, quando encerrava para mim as melhores aspirações, nossa filha se estiola num quarto sem alegria e a madrasta que lhes impus apodrece num leito!...
Ah! Odila, poderás compreender o que sofro? Tenho rogado a morte ao Céu para que nos reunamos na eternidade, mas a morte não vem...
A esposa, compreensivelmente mais bela pelos pensamentos redentores que agora lhe manavam do ser, com os olhos enevoados de pranto, falou-lhe com inflexão inesquecível:
– Sim, Amaro, compreendo! Também eu padeci muito, no entanto, hoje reconheço que a nossa dor é agravada por nós mesmos...
Porque havemos de converter a distância em rebelião e a saudade em venenoso fel? Porque não reconhecer a Majestade Suprema de Deus, na orientação de nossos destinos? Não temos sabido cultivar o amor que é sacrifício na Terra para a edificação de nosso paraíso espiritual... Temos exigido quando devemos dar, dilacerado quando nos cabe recompor!...
Amaro, é preciso acalmar o coração para que a vida nos auxilie a entendê-la, é indispensável ceder de nós, a fim de receber dos outros o concurso de que necessitamos... Na aspereza de meus sentimentos deseducados, vinha eu adubando o espinheiro do ciúme, atormentando-te o pensamento e perturbando a nossa casa! Mas, em alguns dias rápidos, adquiri mais ampla penetração em nossos problemas, usando a chave da boa vontade!... Quero melhorar-me, progredir, reviver...
O ferroviário contemplou-a, carinhoso e reverente, e acentuou, desalentado:
– Isso não impede a terrível realidade. Achamo-nos em dois mundos diferentes... Infortunado que sou! Sinto-me desarvorado e infeliz!...
– Achava-me igualmente assim; contudo, procurei no silêncio e na oração o roteiro renovador.
– Que fazer de Zulmira, colocada entre nós como empecilho à nossa verdadeira união?
– Não raciocines desse modo! Ela não permaneceria em tua estrada sem motivo justo.
Nesse instante, Clarêncio abeirou-se do ferroviário e, tocando-lhe a fronte com a destra, ofereceu-lhe ao campo mental o retorno imediato às recordações das dívidas por ele contraídas no Paraguai.
Amaro estremeceu e continuou escutando.
– Se Zulmira foi situada no templo de nosso amor – prosseguiu Odila, admiravelmente inspirada –, é que nosso amor lhe deve a bênção da felicidade de que nos sentimos possuídos...
– Sim... sim... – aprovava agora o interlocutor, de posse das reminiscências fragmentárias que lhe assomavam do coração.
– Interpretemo-la por nossa filha, por irmã de Evelina, cujos passos nos compete encaminhar para o bem. O lar não é apenas o domicílio dos corpos... É o ninho das almas, em cujo doce aconchego desenvolvemos as asas que nos transportarão aos cumes da glória eterna. Aceitemos a provação e a dor, como abençoadas instrutoras de nossa romagem para Deus...
– Todavia – ponderou o moço, triste –, sabes quanto te amo!...
– Não ignoras, por tua vez, que o teu coração constitui para mim o tesouro maior da vida, entretanto hoje vejo o horizonte mais largo... Valeria realmente o brilho dos oásis fechados? Serviria a construção de um palácio, em pleno deserto, onde estaríamos humilhando com a nossa saciedade os viajores que passassem por nós, mortificados de sede e fome? Como categorizar o carinho que se pervertesse no isolamento, a pretexto de conservar a ventura só para si?
Renovemo-nos, Amaro! Nunca é tarde para recomeçar o bem!... Trabalhemos, valorizando o tempo e a vida!...
Tocado talvez nas fibras mais íntimas, o pai de Evelina chorava convulsivamente, infundindo piedade... Odila enlaçou-o com mais ternura e Clara convidou-nos a excursão através do grande jardim próximo.
A breves instantes, achávamo-nos em plena contemplação do céu...
Os dois cônjuges instalaram-se em perfumado recanto para a conversação a sós.
Notamos que a orientadora se preocupava em deixá-los entregues um ao outro, para mais seguro ajuste espiritual. E, enquanto ambos se recolhiam a confortadoras confidências, distanciamonos, de algum modo, admirando a beleza da noite.
Maravilhoso, o firmamento cintilava.
Longínquas constelações como que nos acenavam, indicando glorioso futuro...
Virações suaves deslizavam, de leve, quais se fossem cariciosas e intangíveis mãos do vento, animando-nos a cabeça.
Flores de rara beleza vertiam do cálice raios de claridade diurna, como pequeninos e graciosos reservatórios do esplendor solar.
Irmã Clara fascinava-nos com a sua palavra brilhante. Com simplicidade encantadora, comentava suas viagens a outras esferas de trabalho e realização, exaltando em cada narrativa o amor e a sabedoria do Pai Celestial.
Por largo tempo, embevecidos, permutamos impressões acerca da excelsitude da vida que se nos revela sempre mais surpreendente e mais bela, em cada plano da Criação.
Avizinhava-se o novo dia...
Tornamos à presença do casal para devolver o companheiro ao lar terrestre. Ambos, ao término do grande entendimento, apresentavam o rosto pacificado e radiante.
Irmã Clara guardou a pupila nos braços e as duas seguiramnos a romagem de volta.
Em casa, Amaro despediu-se de nós, risonho e calmo.
Dispúnhamo-nos à retirada, quando a instrutora nos advertiu:
– Esperemos. Odila retomará hoje a tarefa.
O relógio marcava seis da manhã.
À maneira de colegial em dia de prova, a transfigurada mãezinha de Júlio fitava-nos com extrema expectação...
Amaro recuperou o corpo físico, descerrando os olhos com excelentes disposições.
Não conseguira relacionar os aspectos particulares da excursão, mas conservava no cérebro a indefinível certeza de que estivera com a primeira esposa em “algum lugar” e que a vira reanimada e feliz.
Distendeu os braços com a deliciosa tranqüilidade de quem encontra o fim de longa e aflitiva tensão nervosa.
Levantou-se, reparando que o dia começava alegre e lindo, sem dar conta de que a alegria e a beleza haviam renascido nele próprio.
Sentia vontade de rir e cantar...
E, depois de ausentar-se do banheiro, onde cantarolou baixinho uma canção que lhe recordava o tempo em que se consorciara pela primeira vez, tornou, sorridente, ao quarto de dormir.
Foi então que Odila o enlaçou carinhosamente e exclamou:
– Vamos, querido! Estendamos a nossa felicidade! Zulmira espera por nosso amor...