sexta-feira, 25 de maio de 2012

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO - JULIANA SOLARE E MARIA J. SANCHES


Capítulo 8 

 Rematara  os  apontamentos  que  me  propunha  alinhar,  e,  reconhecendo  que  a paciente  chorava,  em  prostração,  visivelmente  distanciada  do  exame  que  me  fora permitido desenvolver, Neves perguntou se podíamos trocar entendimento rápido.
— Como não?
— André — inquiriu ele, sem ocultar a perplexidade —‘ que vem a ser isto, meu amigo?  Você  percebeu?  Meu  neto,  o moço  é  meu  neto!...  Onde  estamos?  Quatro criaturas  noveladas...  Mulher  entre  pai  e  filho,  um  rapaz  entre  duas  irmãs...  
Ignorava  o  que  vemos.  Há  dias,  tento  confortar  minha  pobre  Beatriz,  só  isso.  Não fazia  a  menor  idéia  das  perturbações  que  a  rodeiam...  Ah!  meu  amigo,  como  pai, estaria agora mais consolado se a visse agonizando numa casa de loucos!...
E apontando Marita:
— Esta moça disse a verdade toda?
— Neves — acentuei —, você não desconhece que determinado grupo familiar se  define  como  sendo um  engenho  constituído  de  peças  diferentes,  embora ajustadas entre si para a função que lhe cabe. Cada um daqueles que o integram é parte das realidades que se entrosam no conjunto. Marita foi sincera. Expôs o que sabe. Ela é um pedaço da verdade que procuramos.
Para descobrir o que você conceitua por verdade toda é inevitável consultar as pessoas que ela hospeda no mundo intimo.
O  amigo debuxou o leve sorriso de quem reüne compreensão e conformidade.
Arrojando-se,  porém,  ao  desconforto  com  que  supunha  reverenciar  a  justiça, lastimou-se, áspero:
— Imagine  você!  Gilberto!  Um  menino...  Se  o  pai  auxiliasse!...  Mas  Nemésio  é um caso de manicômio. Não tem jeito...
Olhou, compadecido, para a moça em pranto e salientou:
— Veja esta menina. Correta, fiel... Submeteu-se, confiante. Que culpa no vaso de  porcelana, violentamente  destampado  por  um  animal?  E  esse  animal  é  um garoto que eu amo tanto!... Ela poderia ser a esposa que idealiza, mãe digna, dona de  casa  para  um  homem  de  bem...  No  entanto,  lá  se  vai  Gilberto,  embeiçado  por uma pinóia. Marina e Marita... Incrível hajam crescido sob o mesmo teto! São irmãs adotivas, como acontece à serpente e à pomba...
Diante da pausa curta, não me fiz tardio nas ponderações.
Investi-me,  indebitamente,  na  posição  de  conselheiro  fortuito  e  roguei  ao companheiro asserenar-se.
Achávamo-nos  ali  para  emendar,  proteger,  realizar  o  melhor.  Certo,  o  bem suscetível  de  ser plantado,  naquele  grupo,  redundaria  em  socorro  a  Beatriz.
Colocássemos nela o pensamento. A irritação lhe avinagraria o ânimo e ele, Neves, de  sentimento azedado,  lançaria  sobre  a  filha  ingredientes  fluídicos  de  índole negativa, arruinando-lhe as forças.
Paciência e atividade fraterna servir-nos-iam de apoio.
Além  do  mais,  não  conseguiríamos  precisar  até  quando  perdurariam  os sofrimentos  físicos  da esposa  de  Nemésio.  E’  justo  prever,  calcular.  Entretanto.
poderiam ocorrer determinações superiores, recomendando lhe fosse prolongado o prazo  de  estada  na  Terra.  Nada  impossível  viesse  a  continuar  adstrita  ao  corpo carnal,  relativamente  melhorada,  por  meses,  anos  talvez,  conquanto  os prognósticos  nunciassem  a  desencarnação  para  breve.  Mas,  e  se  acontecesse  o inverso? Exasperação ou desânimo, de nosso lado, marcariam o término das possibilidades  de  cooperação.  Os  supervisores  que  nos  dirigiam,  não  obstante compassivos e prestimosos, removernos-iam da cabeceira da doente, sem a menor dificuldade. Contavam com recursos para localizar-nos em tarefas, até mesmo mais suaves e mais reconfortantes, em outra parte, como quem nos agaloava em serviço.
Agiriam,  assim,  em  proveito  da  própria  doente,  impedindo  os  prejuízos  que  lhe pudéssemos acarretar com qualquer carga de vibrações desconcertantes.
Neves tolerou o aviso com paciência.
Acabou rogando compreensão. Retirara-se do convívio familiar, por longo tempo —  justificou-se  —,  a  fim  de  adestrar-se  em  cordura  e  desprendimento.
Regressando,  no  entanto,  ao  abrigo  doméstico,  topava,  a  cada  instante,  em  si mesmo,  o  homem  que  fora.  Comodista,  agarrado  às  raízes  consanguíneas, absorvido no bem-estar dos que reputava como sendo flores no tronco do coração.
Sabia-se  em  prova  árdua.  Acusava-se  analisado,  esquadrinhado,  sopesado,  na própria  assimilação  dos  princípios  de  caridade  e  indulgência  que  passara  a ministrar, sob o influxo dos mentores sábios e amigos que lhe haviam descerrado a porta das escolas de aperfeiçoamento nas esferas superiores.

Ao  jeito  de  qualquer  pessoa  terrestre,  encerrando  consigo  méritos  e  falhas, declarou-se  disposto  a  dominar-se,  e,  impelindo-nos  a  recordar  antigos condiscípulos da fase juvenil, quando encorajados e vacilantes ao mesmo tempo na solução  dos  problemas  de  autocontrole,  solicitou-nos  colaboração  a  fim  de  que  se mantivesse calado, tanto quanto possível, na presença dos instrutores.
A submissão do companheiro dava para comover.
Acreditava-se  temporariamente  perturbado,  acentuou  humilde.  Partilhava  as agruras da filha.
Voltara  instintivamente  à  agressividade  e  à  extroversão  que  lhe  marcavam  o temperamento  no  passado;  entretanto,  comprometia-se  à  revisão  de  atitudes.
Apesar disso, que lhe relevássemos qualquer desabafo inconveniente, quando nos demorássemos  a sós. Sempre chegava o momento em que ele, por mais aplicado ao  burilamento  íntimo,  sentia  que  as  excitações,  longamente  acumuladas,  lhe  pesavam no espírito, qual nuvem de gases comburentes. Desinibia-se ou dementava-se, ao modo de alguém que carregasse bombas estourando no próprio peito.
Fi-lo  sossegar-se.  Não  precisava  vexar-se  daquela  maneira.  Entendia  tudo, perfeitamente.  De  nossa  parte,  não  apresentávamos  qualquer  traço  de superioridade. Também nós, criatura humana desencarnada, conhecíamos de sobra os lances da batalha interior, em que o adversário somos sempre nós mesmos, na arena das qualidades inferiores que nos tocam sublimar.
Desaconselhável, porém, prosseguir, conversando à margem do serviço.
A  frágil  menina  desoprimia-se,  em  pranto.  Choro  vozeado,  não  obstante discreto. Soluços.
Dispúnhamo-nos a intervir, quando sucedeu o inesperado.
Cláudio  batia,  de  leve,  à  porta,  decerto  incomodado  pelo  som  lastimoso daqueles gemidos que Marita, em vão, buscava reprimir.
Respiramos confortados.
Indubitavelmente,  o  inquieto  coração  paternal  vinha  ao  encontro  da  moça desfalecente,  ansiando  soerguer-lhe  as  energias,  e,  nós  próprios,  através  de estímulos magnéticos, insistimos com ela para que atendesse.
Empregando  vontade  e  forças  para  vencer  a  crise  de  lágrimas,  a  jovem  anuiu aos nossos apelos e cambaleou, desaferrolhando a passagem.
Cláudio  entrou,  mas  não  vinha  só.  Um  daqueles  dois  companheiros desencarnados que lhe alteraram a personalidade, justamente o que se abeirara dele, em primeiro lugar, para o trago de uis que, enrodilhava-se-lhe ao corpo.
O  verbo  enrodilhar-se,  na  linguagem  humana,  figura-se  o  mais  adequado  à definição  daquela  ocorrência  de  possessão  partilhada,  que  se  nos  apresentava  ao exame,  conquanto  não  exprima,  com  exatidão,  todo  o  processo  de  enrolamento fluídico,  em  que  se  imantavam.  E  afirmamos  “possessão  partilhada”,  porque, efetivamente,  ali,  um  aspirava  ardentemente  aos  objetivos  desonestos  do  outro, completando-se, euforicamente, na divisão da responsabilidade em quotas iguais.
Qual acontecera, no instante em que bebiam juntos, forneciam a impressão de dois seres num corpo só.
Em  determinados  momentos,  o  obsessor  afastava-se  do  companheiro,  a distância  de  centímetros;  contudo,  sempre  a  enlaçá-lo,  copiando  gestos  de  felino, interessado  em  não  perder  o  contacto  da  vitima.  Achavam-se,  entretanto, irrestritamente conjugados em vinculação recíproca.
Isso conferia ao semblante de Cláudio expressão diferente, o hipnotizador, cuja visão espiritual não nos atingia, senhoreava-lhe sentimentos e idéias, enquanto ele se deixava  prazerosamente  senhorear.  O  olhar  obediente  adquirira  a  turvação característica  dos  alucinados,  O  recém-chegado  transfigurara-se.  Estranho  sorriso franzia-lhe  a  boca.  Diante  das  percepções  limitadas  de  Marita,  era  ele  um  homem comum; no entanto, à nossa frente, valia por duas personalidades masculinas numa só  representação.  Dois  Espíritos  exteriorizando  impulsos  aviltados, complementando paixões idênticas na mesma tônica da afinidade total.
Neves  fitou-me,  espantado.  Mas,  não  era  só  ele,  menos  experiente, que  jazia transido, amarrotado. Nós também, acostumados, no plano espiritual, aos embates do sentimento, alimentávamos aflitivas apreensões.
Aquele  quarto,  dantes  povoado  pelos  devaneios  doridos  de  uma  criança, metamorfoseara-se  em  jaula,  onde  Cláudio  e  o  vampirizador,  singularmente brutalizados pelo desejo infeliz, constituíam juntos uma fera astuciosa, calculando o caminho mais fácil de alcançar a presa.
Um  clarividente  reencarnado  que  contemplasse  o  dono  da  casa,  naquela  hora, vê-lo-ia noutra máscara fisionômica. 
A  incorporação  medianímica,  espontânea  e  consciente,  positivava-se  em plenitude  selvagem.  O  fenômeno  da  comunhão  entre  duas  inteligências  —uma delas,  encarnada,  e  a  outra,  desencarnada  —,  levantava-se,  franco;  ainda  assim, desdobrava-se  tão  agreste  quanto  o  furacão  ou  a  maré,  que  se  expressam  por forças  ainda  desgovernadas  da  Natureza  terrestre,  não  obstante  a  ocorrência,  do ponto de vista humano, efetivar-se na suposta mudez do plano mental.
Para  nós,  porém,  não  se  instituíam  apenas  as  formas-pensamentos,  dando conta das intenções libertinas da dupla animalizada, com estruturas, cores, ruídos e movimentos  correlatos;  amedrontava-nos  igualmente  escutar  as  vozes  de  ambos, em diálogo, claramente perceptível.
As palavras escapavam do crânio de Cláudio, aparentemente silencioso para a filha adotiva, qual se a cabeça dele estivesse transfigurada numa caixa acústica de aparelho radiofônico.
Magnetizador e magnetizado denotavam sensualidade do mesmo nível.
Refletindo na corrida à garrafa, momentos antes, avaliávamos o perigo aberto à menina indefesa. A diferença, ali, é que Cláudio ainda encontrava recursos a fim de parlamentar, dentro da hipnose — hipnose que ele, aliás, amimalhava.
Discorria o obsessor, comovendo-o, no intuito patente de arruinar-lhe os restos do escrúpulo, através da emoção:
— Agora, agora sim!... O amor, Cláudio, é isto... Esperar, por vezes, anos a fio, para  dominar  a  felicidade  num  simples  minuto.  Existem  mulheres  aos  milhões; entretanto, esta é a única. A única que nos poderá, enfim, aplacar a sede. Pontos de apoio alongam-se em toda parte, mas o pássaro viaja, léguas e léguas, suspirando por descansar na penugem do próprio ninho... Na fome física, todo alimento serve, mas no amor... No amor, a felicidade é semelhante ao aro de que o homem possui a metade e a mulher detém a outra. Para que a euforia vibre perfeita no círculo, é imperioso que as metades sejam da mesma substância. Ninguém alcança a fusão de um  pedaço  de  ouro  com  um  pedaço  de  madeira.  Paganini  tocou  numa  corda  só; entretanto, a corda se harmonizava com ele. Jamais arrancaria no mundo o menor sinal do próprio gênio, se apenas dispusesse para o violino das cordas de cânhamo, ainda mesmo que essas cordas o desafiassem a toneladas. Cada homem, Cláudio, para  realizar-se  nos  domínios  da  vitalidade  e  da  alegria,  há  de  encontrar  a  mulher magnética  que  lhe  corresponde,  companheira  na  afinidade  absoluta,  capaz  de  lhe oferecer a plenitude interior, que transcenda convenções e formas ... (3)
Pausava-se  a  voz,  por  segundos,  para  continuar,  suplicante,  proclamando sofismas arguciosos:

— Vamos!  Marita  é  nossa,  nossa!...  Somos  homens  sequiosos,  sofredores...
Apiedamo-nos  de  enfermos  abandonados,  administrando-lhes  remédio  seguro; somos o apoio certo de mendigos que tropeçam às  tontas...  Acaso,  mereceremos  simpatia  menor?  Os  que  enlouquecem, esfaimados  de  ternura,  serão  piores  do  que  os  infelizes, a se estirarem na rua por falta de pão?  Você,  Cláudio,  tem  amargado  angustiosa  carência.  Um  pedinte  na praça  não  tem  leve  pitada  de  suas  aflições.  De  que  valem  vencimentos  fartos  e experiências de lupanar, quando o amor verdadeiro grita insatisfeito na carne? Você vive no lar, à moda de cão na sarjeta. Escoiceado, ferido... Marita é a compensação.
       O cultivador, porventura, não tem direito ao fruto que amadurece? Você abrigou esta  menina  nos  braços,  embalou-a  no  peito;  viu-lhe  o  crescimento,  como  quem acompanha  a  evolução  da  flor  que  desabrocha,  e  acabou  descobrindo  nela  o  seu tipo.  Não  estará  você  cansado  de  vê-la  e  desejá-la,  ardentemente,  todos  os  dias, resignando-se ao suplício da distância, vivendo tão perto?
— Criei-a,  no  entanto,  como  sendo  minha  própria  filha...  —  suspirou  Cláudio, crendo falar para si mesmo.
— Filha? — insistiu o sedutor. — Mero artifício social. Apenas mulher. E quem assegurará que ela também não espera por seu beijo com a sede da corça, presa ao pé da fonte? Você não é nenhum neófito; sabe que toda mulher estima render-se, em trabalhosa porfia.
Conjeturando-se  dividido  mentalmente  em  duas  personalidades  distintas,  a  de pai e a de enamorado, Cláudio argumentou, desencorajando-se.
Não  desconhecia  que  a  moça  já  se  revelara.  Elegera  Gilberto,  o  rapaz  com   quem  se  dava  a  passeios  freqüentes.  Era  impossível  que  o  amasse,  a  ele, Cláudio,  em  segredo.  Não  alentava  dúvidas.  Ciumento,  acompanhara-os, discretamente,  em  excursões  domingueiras,  sem  que  lhe  desconfiassem  da presença ou do zelo ofendido. Nunca lhes ouvira as palavras; entretanto, apanhara-lhes,  às  ocultas,  os  gestos  equívocos.  Admitia-se  com  razão  para  convidar  o estouvado  a  compromisso.  Calculara,  calculara.  Todavia,  quando  se  inclinava  a pedir  conselho  de  autoridades  policiais,  chocara-se  com  o  imprevisto.  Homem  de prolongada vida noturna, passou a esbarrar com a filha, em recantos de prazer, não apenas  na  companhia  de  Nemésio  Torres,  o  cavalheiro  que  desempenhava,  junto dela,  a  função  de  chefe,  mas  igualmente  com  Gilberto,  o  filho,  em  posição comprometedora.  Os  desregramentos  de  Marina,  desde  muito,  se  haviam  tomado para  ele  em  calamidades  inevitáveis.  A  principio,  atormentara-se.  Pai  contundido pela licenciosidade em família.
Contudo,  Márcia,  a  esposa,  ditava  os  figurinos.  Nos  primeiros  tempos  do consórcio,  emergira  entre  ambos  a  muralha  da  discórdia,  da  discórdia  que  lhes emanava do âmago, em ondas torvelinhantes de aversão instintiva, cuja existência não haviam sequer pressentido, de leve, antes do casamento.
De  começo,  rixas  e  discussões.  Depois,  a  indiferença,  o  cansaço  total  um  do outro. Aventuras unilaterais. Cada qual em seu caminho.
Marina, evidentemente, seguira a trilha materna. Desligara-se dele. Classificava a filha, em seu juízo de homem, por mulher livre; contudo, tolerável no lar, enquanto exercesse  a  profissão  que  lhe  assegurava  sustento  às  fantasias.  Em  casa, habitualmente reuniam-se à mesa, a esposa, Marina e ele, à feição de três animais inteligentes, dissimulando o desprezo recíproco, através da convenção ou do chiste.
No  conceito  dele,  porém,  Marita  definia-se  à parte.  Flor  no  ramo  espinhoso daqueles antagonismos flagelantes.
Afastara-a, intencionalmente, na direção do serviço. Inventara meios de obrigá-la  a  tomar  refeições  em  Copacabana,  para  que  as  picuinhas  do  círculo  doméstico, no Flamengo, não lhe torturassem o espírito.
Espiava-lhe os passos, ouvia-lhe os chefes.
Uma vez instalada no exercício da nova condição, ele mesmo, quanto possível, manter-lhe-ia a independência.
Amando-a com entranhado carinho mesclado de egoísmo tirânico, feriam-lhe as humilhações que a esposa e a filha não regateavam a ela, no trato mais íntimo.
Queria-a para ele, com a ternura de um pombo e com a brutalidade de um lobo.
Não concordava lhe dessem a beber afronta ou sarcasmo. Tais atitudes acabaram  revestindo-a  de  liberdade  mais  ampla,  que  Marita  utilizava  no  culto  afetivo  a  Gilberto, de vez que, por vocação, se distanciava de festas. Márcia e Marina, sempre mais  absorvidas  nas  extravagâncias  em  que  se  inculcavam  por  duas  irmãs doidivanas, nem deram por isso. A ausência dela como que as aliviava de um peso.
Certificando-se  de  que  não  lhe  dobrariam  o  caráter,  acusavam-se  felizes  por  não serem induzidas a suportar-lhe a fiscalização.
Embrenhado nos raciocínios que lhe derivavam, rápidos, do ligeiro auto-exame, sob o controle do vampirizador que o influenciava, recordava-se Cláudio de que há muitos dias concluíra que Gilberto não hesitava embair as duas moças, e, depois de refletir maduramente, resolvera silenciar.
Não  seria  conveniente  sopesar  as  próprias  vantagens?  Denunciar  Marita  por jovem  ultrajada  redundaria  em  arredar-lhe  a  confiança.  Apontar  Marina  no  páreo significava insultar a filha adotiva, aplicando-lhe temíveis lesões de ordem moral. Ardiloso,  deixava  o  tempo  correr,  achando  preferível,  a  seu  ver,  fosse  Marita machucada  pelas  circunstâncias.  Quando  se  voltasse  para  ele,  fatigada  e
desiludida, convertê-la-ia, talvez sem dificuldade, na amante a que aspirava.
Engodado  pelo  interlocutor  que  lhe  era  invisível,  enfileirou  as  reflexões apressadas que lhe vinham à mente; no entanto, assoprado agora por ele, deixava-se  iludir  por  imaginosa  expectativa,  formulando-se  outra  espécie  de  inquirições.
Envolvido  nas  sutilezas  do  obsessor,  esmerilhava  o  próprio  íntimo,  tentando  saber se estava sendo inspirado com segurança naquela hora. Andaria enganado? Acaso, Marita  entregar-se-ia  a  Gilberto,  pensando  nele,  Cláudio,  de  quem  se  afastava  por escrúpulos  de  consciência?  Semanas  havia,  fizera-se  a  jovem  mais  esquiva.
Estranhara.  Darse-ia  o  fato  de  recolher-lhe telepaticamente as apreensões ou deliberara  fugir-lhe,  de  propósito,  a  fim  de  ocultar  a  simpatia  amorosa  que, possivelmente, lhe impelia o coração de mulher a querê-lo?

Ele mesmo fornecia ao perseguidor a argumentação com que se lhe arruinava a  resistência.
Até  ali,  trancara,  bem  ou  mal,  diante  da  jovem,  os  sentimentos  que  lhe transbordavam do peito. Não chegara, porém, aos limites do enigma? Caber-lhe-ia sofrear-se até à loucura?
O hipnotizador, em cujo semblante se podia ler a desmesurada sede de volúpia, sorriu, satisfeito, e sussurrou, mentalmente, ganhando preponderância:
— Cláudio, compreenda. Iniciativa, em assunto de amor, não é passo feminino.
Velho rifão: «laranja à beira de estrada não tem preço». Disse um filósofo: «prazer sem conquista é bife sem sal.
Adiante, adiante!
Esquadrinhando o imo do companheiro, à caça de recursos com que o próprio Cláudio lhe pudesse fortificar a posse magnética, o obsessor, por segundos, cravou nele o olhar  penetrante.  E,  decerto,  exumando-lhe  as  desrespeitosas  ilusões  em matéria  de  ligação  afetiva,  que  ele,  Cláudio,  embutira  na  cabeça,  desde  menino, começou a martelar:
— Cigarro!  Lembre-se  do  cigarro  e  da  boca!  Manita  é  mulher  igual  às  outras...
Cigarro,  cigarro  na  vitrina...  Cigarro,  cigarreira,  piteira  e  charuto  não  escolhem comprador... A carne é flor desabrochada na terra do espírito, só isso. O cultivador não sabe o que seja a formação essencial do canteiro, tanto quanto desconhece o que  está  no  fundo  da  planta.  Proclamava  Salomão  que  «tudo  é  vaidade»; acrescentamos que tudo é ignorância. Entretanto, na superfície das situações e das coisas,  é  possível  enxergar  claramente.  Flor  que  ninguém  colhe  é  perfume  que  se perde.  Hora  de  amor  desaproveitada  vem  a  ser  pétala  no  estrume.  Rosa  murcha, adorno para o chão. Carne sem viço, adubo para a erva. Aproveite, aproveite...
Percebíamos  que  o  desencarnado  não  era  simples  dipsomaníaco,  que o álcool apenas lhe constituía porta de escape, de vez que as palavras que selecionava para aliciar influência e o jeito astucioso de sensibilizar o parceiro, antes de empalmar-lhe o  raciocínio,  demonstravam  técnicas  de  exploradores  consumados  das  paixões humanas.
Aquele perseguidor não era vagabundo acidental.
O  anseio  incontido  com  que  impelia  Cláudio  para  a  jovem  e  a  expressão  com que a fitava, apaixonadamente, pareciam chegar de muito longe. Mas a ocasião não comportava  investigações  de  retaguarda.  O  momento  reclamava  atenção.
Necessário  contornar  obstáculos,  improvisar  medidas  socorristas  que  protegessem a triste menina desarmada.
O excêntrico dueto prosseguiu entre os dois amigos que se entendiam, sem o concurso da boca.
O magnetizador pressionava, o magnetizado resistia.
Por fim, Cláudio avançou dois passos, quase vencido.
Idéias,  contradições,  estímulos  e  arrebatamentos  abalroavam-se-lhe, violentamente,  no  espaço  estreito  do  crânio.  A  terrível  batalha  interior  de  alguns instantes esmorecia. A natureza animal ampliara domínio. O sedutor desencarnado rematava a obra.
Não  mais  a  gritaria  de  Espírito.  Não  mais  o  entrechoque  das  mudas ponderações entrecortadas a esmo.
Sim  —  deduzia,  transtornado  —.  ele  era  homem,  homem...  Marita, incontestavelmente  mais  jovem,  não  passava  de  mulher.  Não  lhe  cabia,  portanto, diminuir-se. Ela chorava, ele podia acalentá-la, aquecer-lhe o coração.
Alucinado  de  lascívia,  envolveu-a  em  longo olhar,  inferindo  que,  não  fossem  o temor  de  vê-la  fugir  em  definitivo  e  o  receio  de  verificar-se  por  ela  própria desonrado,  tomar-lhe-ia  o  colo  entre  os  braços,  qual  guri  destemeroso,  buscando desentranhar-lhe a ternura.
Entanto, os derradeiros arrazoados esmaeciam. Esbarrondara-se, dentro dele, a última  trincheira  que  lhe  cerceava  os  impulsos.  Sujeitou-se  de  todo  à  direção  do vampirizador que o comandava. Colaram-se, fundiram-se, enfim.
Marita  ergueu  para  ele  os  olhos  súplices,  imitando  as  atitudes  da  ave perseguida,  para  quem  não  resta  outra  alternativa  que  não  seja  esperar  pela piedade do atirador.
Jungido  ao  companheiro  infeliz,  Cláudio  adiantou-se,  acomodando-se, assumindo  ares  de  protetor,  resolvido  a  ultrapassar  os  limites  da  afeição  pura  e simples.

—  Pelo  que  vejo,  esse  pilantra  do  Gilberto  vem  abusando...  —  sussurrou, adocicando a voz.
Em  seguida,  tomou-lhe  a  destra  pequena  entre  as  suas  mãos  nervosas,  mal disfarçando a lubricidade duplicada que o possuía.
A  jovem  registrou  o  impacto  das  forças  aviltadas  a  lhe  requisitarem  adesão, calando a repulsa.
Escutara  o  apontamento,  num  misto  de estranheza e revolta, mas, reprimindo-se,  passou  a  responder,  esforçando-se  por  desculpar  o  rapaz  e  atribuindo  a  si  o desmantelo emotivo; entretanto, à medida que o pai adotivo dilatava a liberdade das atitudes, apagava-se-lhe a energia para a conversação, até que silenciou, como se o interesse, ao redor do problema, houvesse desaparecido de chofre. E, num átimo,
realinhou na mente as impressôes amargas dos tempos últimos...
Assinalara,  havia  meses,  a  reservada  mudança  do  trato  paterno.  Desconcertava-se  ao  perceber  que  Cláudio  demorava  sobre  ela  o  olhar  insistente.
Amedrontara-se. Reagira, porém, energicamente, contra si mesma. Consagrava-lhe o  respeitoso  amor  de  filha  reconhecida  e  não  lhe  cabia  conspurcar  sentimentos sem ore mantidos imáculos, desde a intimidade da infância. Opusera-se à suspeita.
Lutara, não queria aceitar-se visada por ele, sob a inspiração de qualquer propósito menos digno.
Ainda  assim,  por  mais  brandisse  argumentos  contra  si  própria,  inexplicável sensação  advertia-lhe  o  espírito,  exortando-a  a  policiar  as  maneiras  com  que Cláudio  agora  a  cercava.  Pelos  motivos  mais  fúteis,  exagerava  cuidados, multiplicando frases de dúbio sentido.
Torturada  pela  dúvida,  afirmava  a  sua  desconfiança  e  desdizia-se, intimamente.
Naquele  instante,  porém,  o  instinto  de  defesa  sentenciava  prudência, segredava-lhe vigilância.
Pressentindo,  em  espírito,  a  presença  do  «outro»,  arregimentou,  sem  querer, todas as suas forças na posição de alarma.
O contacto de Cláudio comunicava-lhe insegurança.
Batia-lhe  o  coração  desritmado,  ao  senti-lo  ensaiando  meios  de  enlaçar-se  a ela, ávido de carinho.
—  Não  negue,  filha  —  entaramelou-se  o  pai,  um  tanto  trêmulo  —,  não  desejo contrariá-la,  mas  venho  analisando,  analisando...  Você  não  nasceu  para  esse meninão  caprichoso.  Compreendo  você...  Não  sou  apenas  seu  pai  pelo  coração, sou também seu amigo... Esse rapaz...
Marita cobrou ânimo e, antecipando-se-lhe às ilações reticenciosas, explicou ingenuamente que amava a Gilberto, que lhe hipotecava confiança, que o pai estivesse tranqüilo, e acentuou, sorrindo quase, que as lágrimas daqueles minutos não se reportavam a qualquer desgosto e sim a indisposição orgânica indefinível.
Deduziu, de relance, que seria justo desvelar-lhe mais ampla zona da alma, anulando mal entendidos no nascedouro, e, intencionalmente, prosseguiu confidenciando, a expor-lhe, com lealdade, a expectativa com que aguardava o anel esponsalício, determinada a medir as reações de Cláudio, a fim de orientar, sem
tergiversações, a própria conduta.
Atrapalhava-se,  todavia,  ao  consignar-lhe  a  indignação  pintada  no  rosto.  Na meia-luz do quarto, podia ver-lhe a face congesta, nos esgares da ira.
Compreendeu que a borrasca naquele espírito voluntarioso se mostrava prestes a estalar; no entanto, continuou apresentando razões para colher reações.
E a explosão do interlocutor não se fez demorar.
Cerrando os punhos, Cláudio cortou-lhe a conversa, exclamando, irritado:
— Percebo, percebo, mas não precisa maçar-me... Estimo, porém, que você me conheça melhor o devotamento.
Avançando  na  intimidade,  qual  se  aspirasse  a  enredá-la  no  próprio  hálito, continuou — agindo por si e pelo «outro» — na queixa primorosamente lavrada:
— Filha, é necessário que você me ouça, que me entenda...
E, assaltando-lhe a emotividade para esbater-lhe a resistência:
-  Você  não  desconhece  o  que  sofro.  Imagine  a  tragédia  de  um  homem  que morre, a pouco e pouco, desolado, sozinho... de um homem que dá tudo, sem nada receber... Você cresceu, vendo isso... Infelicidade, solidão. É impossível que não se condoa.  Esta  casa  é  meu  deserto.  Chego  esfalfado,  diariamente,  sem  achar  mão amiga.  Márcia,  embora  quarentona,  vive  de  jogatinas  e  festas...  Você  está  moça, inexperiente,  mas  deve  saber.  Desculpe-me  o  desabafo,  mas  os  próprios  amigosme  lastimam  o  drama...  Estará  você  em  condições  de  avaliar  os  conflitos  de  um pobre  diabo  algemado  a  companheira  de  vida  irregular?  Ela,  porém,  não  me  fere com isso. No começo, o corte sangrava, mas coração calejado não sente. Habituei-me  a  detestá-la.  Dar-lhe  o  dinheiro  que  exige,  para  que  suma  depressa,  é  hoje  o que me consola... Por outro lado, Marina, cujo afeto poderia proporcionar-me algum reconforto, faz empenho de humilhar-me com a própria devassidão! Sou um homem
falido. Dias surgem, nos quais me reconheço o palhaço mais desditoso da Terra...
Nesse  ponto,  sob  o  governo  do  obsessor,  a  voz  de  Cláudio  entravara-se  na garganta.
Alterara-se de todo, comovido na aparência.
Com isso, amolgara-se a jovem, sinceramente compadecida, e, concluindo que atingira o alvo a que se propunha, acrescentou, exaltado:
—  Só  você,  somente  você  me  prende  ao  lar  infeliz.  Ainda  agora,  o  Banco  me propôs excelente comissão em Mato Grosso; entretanto, pensei em você e desisti...
Por você, filha, tolero os insultos de Márcia, as ingratidões de Marina, os dissabores da profissão, os aborrecimentos cotidianos. Conseguirá você compreender-me?
A  moça  suspirou,  diligenciando  expulsar  de  si  as  vibrações  de  sensualidade com que a “dupla” lhe envolvia a cabeça, e falou, calma:
— Sim, papai, entendo as dificuldades que são nossas...
— Nossas! — repetiu ele, ganhando novas energias para chegar à meta —, sim, minha filha, as dificuldades são nossas, mas é preciso que você saiba que nossas também devem ser as esperanças e as alegrias. Anseio pelo instante em que você me veja não exclusivamente por pai...
Atentando  no  olhar  da  infortunada  menina  que  se  tocara  de  imenso  espanto, acentuou num supremo esforço por revelar-se:
— Marita, pareço um velho, mas você me faz jovem... O coração é seu, seu...
O obsessor, com trejeitos de lascívia, prelibava o lance final.
Marita,  no  entanto,  percebendo  a  intenção  inequívoca  do  homem  apaixonado, que arrojava o rosto maduro e bem tratado sobre o dela, intentou recuar.
— Não, não! — gemeu, suplicante, ao sentir-lhe o hálito.
Cláudio, porém, cujas forças jaziam somadas à valentia do «outro», enlaçava-lhe o busto, copiando o procedimento de um jovem mal comportado.
Qual se houvéramos combinado previamente a defesa. Neves e eu saltamos na direção  dela,  ofertando-lhe  as  mãos,  para  que  pudesse  arrancar-se,  e  a  vitima, crendo  apoiar-se  nos  próprios  recursos,  conseguiu  levantar-se  num  prodígio  de ligeireza,  estacando,  à  frente  dele,  que  a  fitava,  agora,  com  a  expressão desconfiada de um animal repentinamente ferido.
— Papai, não me faça mais infeliz... Poupe-me a humilhação!...
O dono da casa, ao impacto da recusa imprevista, pareceu desligar-se do amigo desencarnado,  lembrando  a  fera  que  se  desvencilhasse,  de  inopino,  do encantamento  mantido  pelo  domador;  entretanto,  o  parceiro  trazia  uma  carga  de paixão  vigorosa  demais  para  desistir  facilmente.  Retomou,  impetuoso,  o  próprio domínio, a ponto de antepor a máscara fisionômica ao semblante de Cláudio. Cerra-va  os  punhos,  despedia  cólera  letal.  Estabelecia-se  pavoroso  conflito  na  mente  de cada um. Num deles, o desapontamento e o desespero, no outro, a malignidade e a agressão.
O pai  adotivo,  carregando  o  estranho  fardo  de  angústia,  mesclada  de  revolta, incapaz de compreender os sentimentos contraditórios que o faziam avizinhar-se da loucura, passou a clamar, inconsiderado:
— Isto é a explosão de muitos sofrimentos acumulados. Fiz tudo para esquecer e não pude...
Que fazer com esta inclinação que me arrasta? Sou palha no vento, minha filha!
Desde que a vi menina, carrego esta idéia fixa... Se eu fosse religioso, diria que um demônio mora dentro de mim.
Um demônio que me atira constantemente sobre você. Em sua presença, quero pensar em você, como sendo minha filha, crescida em meus braços e não posso...
Li muitos livros de Ciência para saber o que se passa, mas o enigma continua. Quis procurar um médico; entretanto, senti vergonha de mim próprio... É só você que eu vejo em tudo! Odeio Márcia, desprezo Marina...
Tenho  acalentado  a  esperança  de  uma  viuvez  que  nunca  chega,  a  fim  de oferecer-me a você, sem condições... Tenho ciúmes, ciúmes que me afogam a alma em labaredas... Detesto esse rapaz leviano, inconsciente...
A  voz  de  Cláudio  amaciara-se,  adquirindo  tom  lacrimoso.  Identificava-se-lhe  o abalo sentimental. O perseguidor duplicou em desprezo tudo o que ele exprimia em emotividade,  provocando  inesperada  reviravolta.  O  pai  enternecido  deu  lugar  ao enamorado violento.
Avinagrara-se  a  ternura,  semelhando  calda  azedada.  Revelando  súbito  transtorno,  deitou  à  filha  adotiva  um  olhar  de  escárnio,  traumatizando-a  de  horror,  a esbravejar, dementado:
—  Não,  não  posso  humilhar-me  assim.  Você  sabe  que  não  sou  nenhum  tonto.
Há  quinze  dias,  acompanhei  vocês  dois  a  Paquetá,  sem  que  me  vissem...  Segui-lhes  o  passo  descuidado  e  feliz,  como  se  eu  fosse  um  cão  escoiceado  pelo destino... Ao cair da noite, vi quando vocês dois se enlaçaram, trocando promessas e falando bobagens, na Ribeira... Arrastei-me no matagal e vi tudo... Desde então, enlouqueci...  Pelo  jeito,  vocês  andam  acanalhados,  há  muito  tempo...  Você!  você, que eu supunha intangível, entregue a um menino doido!... Ingênua! Julga que não tenho motivos para expulsá-la! Você imagina que me falta coragem para chamar às contas esse filho de papai rico»?
Alterando o tratamento paternal de que se valia, rugiu, brutalizado:
—  Marita,  fique  sabendo  que  você  agora  não  é  mais  criança!  Você  é  apenas mulher, não passa de mulher, mulher...
A  jovem  soluçava.  Reconhecendo-se  descoberta  nas  mais  íntimas  nuanças  da conduta impensada, não ousava erguer a fronte.
Neves, incapaz de remover o próprio assombro, abeirou-se de mim, rezingando:
— Você está vendo? Este homem será louco ou desbriado?
Temendo-lhe a impulsividade, fi-lo recordar as atitudes ponderosas e cristãs do irmão Félix,  informando,  discretamente,  que  me  achava  em  oração,  a  exorar  o auxílio  da  esfera  superior,  porqüanto,  ali,  não  dispúnhamos  de  maiores  recursos para impedir um assalto passional de penosas conseqüências.
—  Oração?  —  chasqueou  o  companheiro,  positivamente  desencantado  —  não creio que os anjos se ocupem de casos como este. Aqui, meu amigo, e em outros lugares onde tenho visto muito bicho velho fantasiado de gente, só a polícia...
Efetivamente,  os  anjos  pessoalmente  não  nos  atenderam  às  rogativas silenciosas, enunciadas desde o início da cena desagradável; no entanto, o socorro apareceu.
Ouviu-se  barulho  de  ferrolho  em  ação  e  alguém  penetrou  em  casa, ruidosamente.
Sobreveio o choque providencial.
Cláudio, em sobressalto, desligou-se do hipnotizador, que se lhe postou de lado, um tanto desenxabido.
— Que é que há?
Marita  cobrou  energias,  regressando  ao  leito,  enquanto  o  chefe  do  lar  se recompunha à pressa.
Espantados, notamos, porém, a surpreendente capacidade de fabulação da qual Nogueira dava mostras. Ele próprio, sem qualquer ingerência do obsessor, começou a tramar em pensamento a desculpa com que se justificaria.
Agindo  quase  que  mecanicamente,  libertou  a  porta  que  havia  prendido, perspicaz, abriu janela próxima e, de imediato, esbelta senhora surgiu, indagando, apreensiva:
— Que é que há?
Tratava-se da esposa que voltara, de imprevisto.
Dona  Márcia  alegava  susto,  asseverando  ter  ouvido  um  vozeirão  ao  chegar.
Cláudio,  no  entanto,  repondo  a  máscara  das  conveniências,  entornou  pela  boca  a versão que inventara, ali, naquele momento, diante de nós.
Fixou a moça, de modo significativo, e tranqüilizou a senhora, dizendo-lhe, com a  maior  sem cerimônia,  que  chegara  a  casa,  momentos  antes,  encontrando  o  gás do fogão a volatilizar-se.
Fechara  as  saídas  que  a  cozinheira  deixara  abertas  e  exortou  a  que  se  lhe chamasse  a  atenção,  no  dia  seguinte.  Dona  Justa,  a  companheira  do  serviço doméstico,  devia  examinar  os  aparelhos  da  casa,  minuciosamente,  antes  de  se retirar.  Acentuou  que,  atemorizado,  descerrara  as  janelas,  arejando  o  ambiente.
Quando envergava o pijama, aduziu com absoluta seriedade a lhe transparecer do semblante,  ouvira  gemidos  agoniados.  Correu  ao  aposento  das  meninas, surpreendendo Marita a gritar, inconsciente. Sonâmbula, sonâmbula como sempre...
Acordara-a, atarantado, averiguando, porém, que tudo estava em ordem.
A jovem, mergulhada na penumbra, cobriu o rosto com o lenço para ocultar as lágrimas,  abandonando-se  à  inércia,  como  se  transferisse  a  cabeça  de  um  sono para outro.
A recém-chegada riu-se, sem suspeitar, de leve, do vulcão que faceava, e, qual se desejasse compensar-lhe a indiferença, Cláudlo, de volta ao salão, esboçou um aceno gentil, convidando Márcia a descansar.

(3)  Compreendemos  o  caráter  negativo  da  linguagem  do  Espírito desencarnado,  quando  em  deploráveis  condições  de  ignorância,  mas acreditamos seja nossa obrigação consigná-la, nestas páginas, ainda mesmo esbatida qual se encontra, prevenindo criaturas senalveis e afetuosas, que, às vezes,  abdicam  impensadamente  do  próprio  raciocínio,  arrojando-se  em profundo sofrimento moral, em nome do coração. (Nota do Autor espiritual.)