quinta-feira, 23 de setembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 25 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



25 – Reconciliação

Amaro não registrou o convite da companheira desencarnada, em forma de palavras ouvidas, mas recebeu-o como silencioso apelo à vida mental.
Dirigiu-se a pequenina copa, pensando em Zulmira, com o insopitável desejo de comunicar-lhe o estranho contentamento de que se via possuído.
Não seria justo envolver a esposa doente na onda de alegria em que se banhava?
Vimos que Odila tremeu um instante, ao lhe observar a súbita felicidade com a perspectiva de restauração do carinho para com a segunda mulher. Compreendi o esforço que a iniciativa lhe reclamava ao coração feminino e, mais uma vez, reconheci que a morte do corpo não exonera o Espírito da obrigação de renovar-se. No
fundo, não podia sentir, de imediato, plena isenção de ciúme, entretanto, aceitava o ideal de sublimação que se lhe implantara no sentimento e não parecia disposta a perder a oportunidade de reajuste.
Anotando-lhe a queda de forças, Clara abeirou-se dela e falou, maternal:
– Prossigamos firmes. Todo bem que fizeres a Zulmira redundará em favor de ti mesma. Não esmoreças. Ajuda-te. A vontade, à procura do bem, realiza milagres em nós mesmos. O sacrifício é o preço da verdadeira felicidade.
O abraço afetuoso da benfeitora infundiu-lhe energias novas.
Os olhos dela brilharam outra vez.
Enlaçada ao marido, impeliu-o docemente ao leito em que a pobre doente repousava.
A enferma, por certo, desde muito perdera o contacto com qualquer manifestação afetiva por parte do companheiro e, assim, ao lhe ver o semblante carinhoso e feliz, exibiu larga nota de espanto.
– Zulmira! – perguntou ele, inclinando-se para o seu rosto ossudo e desconsolado – estás realmente melhor?
– Sim... sim... – suspirou a interpelada, hesitante.
– Escuta! Hoje, amanheci pensando em nós, em nossa felicidade...
Não julgas seja tempo de reagirmos contra o sofrimentoque nos cerca? Preocupo-me por ti, acamada e abatida, desde a morte de Júlio...
Notei que do tórax de Amaro emanava largo fluxo de energia radiante, assim como um jato de raios de luz verde-prateada que envolveram o busto de Zulmira, despertando-lhe emotividade incoercível.
A desventurada senhora começou a chorar, dando-nos a impressão de que os fluidos arremessados sobre ela lhe lavavam o coração.
Clarêncio, calmo, informou:
– Como vemos, a sinceridade dispõe de recursos característicos.
Emite forças que não deixam margem a enganos. O sentimento puro com que Amaro se dirige agora à esposa é fator decisivo para que ela se reerga e se cure.
O ferroviário, auxiliado por Odila, enxugou as lágrimas que corriam copiosas daqueles olhos macerados e tristes e continuou:
– Peço confies em mim! Afinal de contas, somos companheiros um do outro... Como poderei ser feliz sem o teu concurso?
Não nos casamos para chorar...
– Amaro! – exclamou a interlocutora agoniada, conservando ainda os últimos resíduos mentais do complexo de culpa em que se torturava – como te agradeço a alegria desta hora!... Entretanto, a imagem de Júlio não me sai da lembrança... Sinto que o remorso
me persegue. Não fiz tudo o que eu devia para salvar o filhinho que me confiaste!...
– Esqueçamos o passado – asseverou o esposo, decidido –, todos pertencemos a Deus e acredito que a Divina Vontade vive conosco, em toda parte. Indiscutivelmente, Júlio nos faz muita falta, mas não podemos renunciar à vida que o Céu nos concedeu.
É imprescindível lutar, procurando a vitória.
Ligado à mente da primeira esposa, que tudo fazia por ajudálo, prosseguiu com enternecedora inflexão de voz:
– Não olvides que pertencemos aos compromissos morais que assumimos... O carinho do meu caçula significava muitíssimo para o meu coração, contudo, não pode ser mais importante que o nosso amor!... Refaze-te! Vivamos nossa vida!... Temos Evelina e
a nossa felicidade!...
A doente sentou-se, de olhos reanimados e diferentes.
E, enquanto o esposo acomodava-se ao lado dela, vimos Odila, de fisionomia satisfeita, dirigir-se ao quarto da filha.
Instintivamente acompanhamo-la, de modo a assisti-la em qualquer dificuldade. Ela, porém, com inefável surpresa para nós, colocou a destra sobre a fronte da menina, solicitando-lhe a presença.
Findos alguns instantes, Evelina, em Espírito, voltou ao aposento em que seu corpo repousava.
Vendo a mãezinha, correu a abraçá-la.
Fundiram-se ambas num amplexo longo e comovedor, misturando-se as lágrimas.
– Enfim! enfim!... – clamou a jovem maravilhada.
– Minha filha! minha filha!
E, em seguida, a genitora descansou nela os olhos inflamados de esperança, pedindo súplice:
– Evelina, ajuda-nos! Se não nos unirmos sob a luz da compreensão e do trabalho, nossa casa desaparecerá... Teu pai e eu não podemos dispensar-te o concurso. Da saúde e da paz de Zulmira depende a feliz continuação de nossa tarefa... Deus não nos
reúne para a indiferença ou para o egoísmo e sim para o serviço salutar de uns pelos outros!...
– Mãezinha – explicou a jovem extática –, tenho orado, tenho pedido ao seu coração nos auxilie...
– Sim, Evelina, sei que em tua abnegação não te descuidas da prece. Jesus terá recebido teus rogos... Achava-me surda, vitimada pelo ruído destruidor de minha própria incompreensão. Sinto, porém, que minhalma desperta hoje... e vejo que nos compete algo fazer para restaurar o valor de teu pai e a alegria de nossa casa...
– Continuarei orando...
– Não olvides a prece, querida, mas a súplica que não age pode ser uma flor sem perfume. Peçamos o socorro do Senhor, algo realizando para contribuir em seu apostolado divino... Comecemos por refundir a confiança em tua nova mãe. Faze-te melhor para ela... Procura-a, desdobra-te no trabalho de preservação da
tranqüilidade doméstica, a fim de que Zulmira se veja segura de teu afeto e de teu entendimento filial... Uma rosa sobre a mesa, uma vassoura diligente, uma peça de roupa cuidadosamente guardada, uma escova no lugar que lhe compete, são serviços de Jesus, no santuário da família, com os quais devemos valorizar o pensamento
religioso... Não te detenhas tão somente nas boas intenções.
Movimenta-te no trabalho encorajador da harmonia. Sê o anjo do serviço em nossa casinha singela! Zulmira necessita de uma irmã, de uma filha!... Aproveita a oportunidade e faze o melhor!...
Evelina, com indefinível contentamento a iluminar-lhe o rosto, enlaçou a mãezinha com extremada ternura e beijou-a, muitas vezes.
Logo após, passando a obedecer à mensageira, retomou o corpo carnal e acordou deslumbrada.
Tão grande se lhe afigurava a própria ventura que detinha a impressão de estar descendo da esfera celestial.
A imagem de Odila, carinhosa e bela, ocupava-lhe, agora, todo o espelho da mente.
Estendeu as mãos em torno como se ainda pudesse tocar a genitora com os dedos de carne, conservando perfeita lembrança da inolvidável entrevista.
Intensamente feliz, ergueu-se de um salto e vestiu-se.
Finda a higiene rápida, vimos Odila recolhê-la nos braços, conduzindo-a igualmente até Zulmira.
Induzida pela influência materna, passou pela copa e chegou junto da madrasta, oferecendo-lhe pequena bandeja com a leve refeição da manhã.
Amaro e a companheira receberam-na, encantados.
– Meu Deus – disse a doente, sorrindo –, tenho a impressão de que um anjo penetrou nossa casa. Tudo hoje amanheceu contentamento e bom ânimo!...
Evelina alcançou o leito, reuniu os dois cônjuges num só abraço e falou, jubilosa:
– Sonhei com Mãezinha! Vi-a tão nítida, como se ainda estivesse conosco. Afirmou que necessitamos de amor e recomendou seja eu para Zulmira a filha que ela não tem!... Ah! que felicidade!...
Mamãe ouviu minhas preces!
O ferroviário anotou, satisfeito, a informação, guardando, porém, consigo mesmo as recordações da noite para não ferir as suscetibilidades da companheira, e Zulmira, a seu turno, embora lembrasse os repetidos pesadelos que atravessara, sentindo-se
atormentada pelos ciúmes de Odila, abafou as próprias reminiscências, para aderir com toda a alma ao otimismo daquele abençoado momento de paz e renovação.
Fixando a madrasta, com embevecimento, a menina acrescentou:
– Quero ser melhor, mais diligente e mais amiga!... Papai, você e eu seremos doravante mais felizes.
A pobre senhora suspirou reconfortada e aduziu:
– Sem dúvida alguma, Odila deve ser o nosso gênio protetor...
É muita alegria nesta manhã para que a nossa ventura seja simples sonho ou mera coincidência!
Aquele testemunho de gratidão, partido com a melhor espontaneidade da mulher considerada, até então, por inimiga, tocou as recônditas fibras da primeira esposa de Amaro que, incapaz de suportar a emoção, começou a chorar entre o reconhecimento e o regozijo.
Irmã Clara abraçou-a e falou, humilde:
– Chora, minha filha! Chora de júbilo! Em verdade, quando o amor sublime penetra em nosso coração, a luz do Senhor passa a reger os passos de nossa vida.