quarta-feira, 11 de abril de 2012

ESTUDO DO LIVRO LIBERTAÇÃO - CAPÍTULO 18 - JULIANA SOLARE



Palavras de Benfeitora

A reunião noturna guardava-nos surpreendente alegria.
Sob a doce claridade lunar, Gúbio assumiu a direção dos trabalhos e congregou-nos em largo círculo.
Era, efetivamente, nos menores gestos, precioso guia a conduzir-nos aos montes de elevação mental.
Recomendou-nos o esquecimento dos velhos erros e aconselhou-nos atitude interior de sublimada esperança, emoldurada em otimismo renovador, a fim de que as nossas energias mais nobres fossem ali exteriorizadas. Esclareceu que um caso de socorro, quando orientado nos princípios evangélicos, qual sucedia no problema de Margarida, é sempre suscetível de comunicar alívio e iluminação a muita gente, elucidando, ainda, que ali nos encontrávamos para receber a bênção do Plano Superior, mas, para isso, tornava-se imperioso guardar inequívoca posição de superioridade moral, porque o pensamento, em reunião qual aquela, punha em jogo forças individuais de suma importância no êxito ou no fracasso do tentame. De todas as fisionomias transbordavam o contentamento e a confiança, quando o nosso orientador, erguendo a voz no cenáculo de fraternidade, rogou humilde e comovente: – “Senhor Jesus, digna-te abençoar-nos, discípulos teus, sequiosos das águas vivas do Reino Celeste!
“Aqui nos congregamos, aprendizes de boa vontade, à espera de tuas santificadas determinações.
“Sabemos que nunca nos impediste o acesso aos celeiros da graça divina e não ignoramos que a tua luz, quanto a do Sol, cai sobre santos e pecadores, justos e injustos...
“Mas nós, Senhor, nos achamos atrofiados pela própria imprevidência.
“Temos o peito ressecado pelo egoísmo e os pés congelados na indiferença, desconhecendo o próprio rumo.
“Todavia, Mestre, mais que a surdez que nos toma os ouvidos e mais que a cegueira que nos absorve o olhar, padecemos, por desdita nossa, de extrema petrificação na vaidade e no orgulho que, através de muitos séculos, elegemos por nossos condutores nos despenhadeiros da sombra e da morte; mas confiamos em Ti, cuja influência santificante regenera e salva sempre.
“Poderoso Amigo, tu que abres o seio da Terra pela vontade do Supremo Pai, usando a lava comburente, liberta-nos o espírito dos velhos cárceres do “eu”, ainda que para isso sejamos compelidos a passar pelo vulcão do sofrimento!
“Não nos relegues aos precipícios do passado. “Descerra-nos o futuro e inclina-nos a alma à atmosfera da bondade e da renúncia.
“Dentro da extensa noite que improvisamos para nós mesmos, pelo abuso dos benefícios que nos emprestaste, possuímos tão somente a lanterna bruxuleante da boa vontade, que a ventania das paixões pode apagar de um momento para outro.
“Ó Senhor! livra-nos do mal que amontoamos no santuário de nossa própria alma!
“Abre-nos, por piedade, o caminho salvador que nos laça dignos de tua compaixão divina.
“Revela-nos tua vontade soberana e misericordiosa, a fim de que, executando-a, possamos alcançar, um dia, a glória da ressurreição verdadeira.
“Distanciados, agora, do corpo de carne, não nos deixes cadaverizados no egoísmo e na discórdia.
“Envia-nos, magnânimo, os mensageiros de tua bondade infinita, para que possamos abandonar o sepulcro de nossas antigas ilusões!” 

Nesse momento, as lágrimas serenas do orientador, em prece, receberam resposta celestial, porque verdadeira chuva de raios diamantinos começou a jorrar do Alto sobre ele, como se força misteriosa e invisível ali houvesse libertado divina torrente de claridade em nosso favor.
Calarase-lhe a voz, mas o quadro sublime arrancava-nos pranto de emotividade indefinível.
Não havia um só dos circunstantes sem o toque visível, no rosto, daquele êxtase bendito que nos assomava, de assalto, ao coração.
O instrutor parecia vacilante, embora o halo radioso que lhe cobria gloriosamente a cabeça veneranda.
Chamou-me num sopro e informou:
– André, dirige os trabalhos da reunião, enquanto devo fornecer recursos à materialização de nossa benfeitora Matilde. Vejo-a ao nosso lado, esclarecendo haver chegado a noite longamente esperada por seu coração materno. Antes do reencontro com Gregório, em companhia de bem-aventuradas entidades que a assistem, pretende ela visitar-nos, de maneira tangível, encorajando quantos aqui hoje se candidatam ao serviço preparatório de ingresso em círculos superiores.
Tremi, perante a ordem, mas não hesitei.
Tomei-lhe o lugar, sem detença, enquanto o sábio mentor se recolhia a dois passos de nós, em profunda meditação.
Reparamos, em silêncio, que luz brilhante e doce passou a se lhe irradiar do peito, do semblante e das mãos, em ondas sucessivas, semelhando-se a matéria estelar, tenuíssima, porque as irradiações pairavam em torno, como que formando singulares paradas nos movimentos que lhe eram característicos. Em breves instantes, aquela massa suave e luminescente adquiria contornos definidos, dando-nos a idéia de que manipuladores invisíveis lhe infundiam plena vida humana.
Mais alguns instantes e Matilde surgiu diante de nós, venerável e bela.
O fenômeno da materialização de uma entidade sublimada ali se fizera prodigioso aos nossos olhos, em processo quase análogo ao que se verifica nos círculos carnais.
Ante a benfeitora, diversas mulheres presentes prosternaram-se, dominadas de incoercível emoção, atitude natural que não nos surpreendeu, porque, efetivamente, nos sentíamos em contacto direto com um anjo glorioso, em forma de mulher.
A abnegada protetora endereçou à assembléia um gesto de bênção e falou em voz pausada e emocionante, depois de ligeira saudação:
– “Meus amigos, todos aguardais a hora feliz de abençoado retorno à “esfera do recomeço”; entretanto, a dádiva do vaso de carne é inapreciável bênção divina.
“Não busqueis a reencarnação tão somente pela ânsia de olvido, nos sonhos do mundo que as tentações do campo inferior podem transformar em pesadelo.
“A vida que conhecemos, até agora, é contínuo processo de aperfeiçoamento.
“Não basta desejar. É imprescindível orientar o desejo na direção do Bem infinito.”
Fez ligeira pausa e, talvez respondendo à arguição mental de muitos, prosseguiu:
– “Não julgueis seja eu excepcional emissária do reino da luz.
Sou humilde servidora, sem outro crédito perante o Eterno Doador que não seja o da boa vontade. Meus pés jazem ainda marcados pelo pretérito obscuro e meu coração ainda guarda cicatrizes recentes e profundas de experiências amargosas, que os dias incessantes, até agora, não conseguiram apagar.

“Não me confirais, portanto, nomes e títulos que não possuo.
Sou simplesmente vossa irmã de luta, interessada em acordar-vos para a sublimidade do futuro.
“Nosso coração é um templo que o Senhor edificou, a fim de habitar conosco para sempre.
“Gloriosas sementes de divindade esperam-nos a harmonia e o ajustamento interiores para desabrocharem, dentro de nós mesmos, arrebatando-nos às esferas resplandecentes.
“A aquisição das virtudes iluminativas, no entanto, não constitui serviço instantâneo da alma, suscetível de efetuar-se de momento para outro.
“Somos, cada qual de nós, um ímã de elevada potência ou um centro de vida inteligente, atraindo forças que se harmonizam com as nossas e delas constituindo nosso domicílio espiritual. A criatura, encarnada ou desencarnada, onde estiver, respira entre os raios de vida superior ou inferior que emite, ao redor dos próprios passos, tal qual a aranha que se confunde nos fios escuros que produz ou a andorinha que corta os altos céus com as próprias asas. Todos nós exteriorizamos energias, com as quais nos revestimos, e que nos definem muito mais que as palavras.
“De que vos valeria o retorno à oficina da carne, sem conhecimento das obrigações que nos competem, ante a Justiça Divina?
Que nos adiantaria o temporário esquecimento do passado, sem nos integrarmos na responsabilidade, a maior força capaz de nos socorrer nos círculos de matéria densa e que se traduz em tendência nobre a persistir conosco?
“A volta à vestimenta física é uma bênção que poderemos conseguir à custa de generosas intercessões, quando nos faleçam méritos para obtê-la, no instante oportuno, por nós mesmos, tanto quanto é possível conseguir trabalho digno na Esfera da Crosta, movimentando amigos que nos conduzam aos objetivos disputados; no entanto, qual ocorre a muitos encarnados que se localizam em respeitáveis quadros de serviço, tão só para usarem direitos que nada fizeram pelos merecer, com flagrante abuso das leis que nos regem as ações, muitas almas procuram o santuário da carne formulando precipitadas promessas e nele penetram agravando os próprios débitos.
“Tímidas, levianas ou inconsequentes, aproveitam o estágio bendito na Região da Neblina6, para repetirem as mesmas faltas de outra época, com absoluta perda do tempo, que é patrimônio do Senhor.”
Nesse momento, dentro de breve intervalo que imprimiu à alocução edificante e piedosa, Matilde estendeu-nos as mãos que despediam raios de intensa luz e exclamou, maternal:
– “Rogais o regresso à sombra protetora da carne, no propósito de desfazer os sinais desagradáveis que vos marcam a veste espiritual. Contudo, já armazenastes suficiente força para esquecer os males que vos foram causados na Crosta da Terra? Reconheceis os vossos erros, a ponto de aceitar a necessária retificação? Fortalecestes o ânimo, a fim de examinar as necessidades que vos são peculiares, sem aflições alucinatórias? Aprendestes a servir com o Cordeiro Divino, até ao sacrifício pessoal na cruz da incompreensão humana, anulando na própria alma as zonas viciadas na sintonia com os poderes das trevas? Já auxiliastes os companheiros de caminho evolutivo e salvador com a intensidade e a eficiência que vos justifiquem a rogativa de colaboração intercessora? Que boas obras já efetuastes a fim de rogardes novos recursos do Céu? Com quem contais para vencer nas experiências porvindouras? Acreditais, porventura, que o lavrador recolherá sem plantar? Armazenastes bastante serenidade e entendimento no coração, de modo a não vos intoxicardes amanhã, no plano físico, sob o bombardeio sutil dos raios pardos da cólera, da inveja ou do ciúme nefasto? Permaneceis convencidos de que ninguém se aquecerá ao Sol Divino, sem abrir o próprio coração às correntes da Luz Eterna? Ignorais, acaso, que é preciso igualmente trabalhar para que se mereça a bênção de um templo carnal na Terra? Que amigos beneficiastes para pedir-lhes a ternura e o sacrifício da paternidade e da maternidade no mundo, em vosso favor? “Não vos iludais. “Somente as criaturas primitivas, nos círculos selvagens da natureza, conhecem, por agora, a semi-inconsciência do viver, por se abeirarem ainda dos reinos inferiores. Recebem a reencarnação quase ao jeito dos irracionais, que aperfeiçoam instintos para ingressarem, mais tarde, no santuário da razão.
“Para nós, porém, senhores de vigorosa inteligência, que já respiramos em centenas de formas diversas e que já atravessamos vários climas evolutivos, ofendendo e sendo ofendidos, amando e odiando, acertando e errando, resgatando débitos e contraindo-os, a vida não pode resumir-se a mero sonho, como se a reencarnação constituísse simples processo de anestesia da alma.
“É indispensável, pois, que nos refaçamos, aprimorando o tom vibratório de nossa consciência, alargando-a para o bem supremo e iluminando-a à claridade renovadora do Divino Mestre.
“A mente humana, honrando os patrimônios celestiais que lhe foram conferidos, não poderá vegetar, à feição do arbusto enfeza do que nada produz de útil na economia do orbe, nem deve imitar o irracional que se localiza na retaguarda da inteligência incompleta.
“Uma existência entre os homens, por mais humilde, para nós outros é acontecimento importante demais para que o apreciemos sem maior consideração. 

Todavia, sem abraçar a noção de responsabilidade individual, que nos deve marcar o esforço de santificação, qualquer empresa dessa ordem é arriscada, porque em nosso aprendizado intensivo, na recapitulação, cada Espírito segue sozinho no círculo dos próprios pensamentos, sem que os companheiros de jornada, com raríssimas exceções, lhe conheçam as esperanças mais nobres e lhe partilhem as aspirações dignificadoras. Cada criatura encarnada permanece só, no reino de si mesma, e faz-se indispensável muita fé e suficiente coragem para marcharmos vitoriosamente, sob o invisível madeiro redentor que nos aperfeiçoa a vida, até ao Calvário da suprema ressurreição.”
Nesse instante, Matilde fez mais longa pausa na alocução com que nos enriquecia aquela hora de sabedoria e luz e acercou-se de Gúbio, prostrado e palidíssimo.
Afagou-o, bondosa, com palavras de agradecimento e, em seguida, como se desejasse quebrar a feição de solenidade que a sua presença nos imprimira à reunião, dirigiu-se, com acento carinhoso, aos ouvintes, rogando-lhes que se pronunciassem acerca dos projetos acalentados para o futuro.
Vozes de gratidão elevaram-se, comovidas.
Um cavalheiro de olhos fulgurantes destacou-se e foi claro na consulta.
– Grande benfeitora – disse, gravemente –, fui duplamente homicida, na derradeira romagem terrestre. Respirei muitos anos no corpo carnal, como se fora a pessoa mais tranquila do mundo, não obstante trazer a consciência tisnada de remorso e as mãos enodoadas de sangue humano. Ludibriei quantos me cercavam, através da máscara da hipocrisia. Atravessando os umbrais do túmulo, atormentado de acerbas reminiscências, supus que tremendas acusações me esperariam. Semelhante expectativa aliviava-me, de algum modo, porque o criminoso, perseguido pelo remorso, encontra verdadeiro socorro nas humilhações que o espezinham. Contudo, não encontrei senão o desprezo, com aviltamento de mim próprio. Minhas vítimas distanciaram-se de mim, desculparam-me e esqueceram-me. Vejo-me, todavia, acicatado por forças punitivas que nunca poderei descrever com as minúcias desejáveis. Há um tribunal invisível em minha consciência e debalde procuro fugir aos sítios em que menoscabei as obrigações de respeito ao próximo.
Abafando os soluços, rematou, comovente:
– Como iniciar o esforço de minha restauração?
Tão imensa tristeza perpassava naquela voz humilde, que nos sentíamos todos tocados nas fibras mais íntimas. Matilde, contudo, respondeu, sem titubear:
– Outros irmãos, não longe de nós, suportando a carga das mesmas culpas, peregrinam, desditosos, entre o pesadelo e a aflição inomináveis. Abre teu coração para eles. Começarás ajudando-os a enxergar a senda regenerativa, alimentando-os com esperanças e ideais novos e atraindo-os ao trabalho de sublimação, pelo esforço, na constante aplicação do bem. Sofrer-lhes-ás as injúrias, os remoques, as incompreensões, mas descobrirás um meio de ampará-los com eficiência e brandura. Depois de semelhante sementeira, principiarás a recolher as bênçãos de paz e de luz, porquanto o Espírito que ensina com amor, embora delituoso e imperfeito, acaba aprendendo as mais difíceis lições da responsabilidade que adquire, transmitindo a outros revelações salvadoras que lhe não pertencem. Realizado esse serviço nobilitante, retomarás, então, mais tarde, o corpo físico, recapitulando os ensinamentos que gravaste na mente interessada em renovar-se.
Reencontrarás, daí em diante, mil motivos para a cólera violenta; e a tentação de eliminar adversários, prostrando-os a golpe mortal, visitar-te-á com frequência o coração. Se souberes, porém, e, sobretudo, se quiseres vencer os próprios impulsos destrutivos, quando te encontrares em plena e abençoada luta na “esfera do recomeço”, plantando amor e paz, luz e aperfeiçoamento, ao redor dos teus pés, então terás demonstrado aproveitamento real e efeti-vo das dádivas recebidas e revelar-te-ás preparado para maior ascensão.
Antes que a emissária pudesse imprimir novo brilho ao ensinamento, chorosa mulher recorreu-lhe ao conselho, exclamando, humilhada:
– Grande mensageira do bem, confesso aqui minhas faltas diante de todos e peço-te roteiro salvador. Enquanto encarnada, nunca fui punida pelos meus excessos no abuso dos sentidos.
Possuí um lar que não honrei, um esposo que depressa esqueci e filhos que afastei, deliberadamente, de meu convívio, para gozar, à saciedade, os prazeres que a mocidade me oferecia. Meu transviamento moral não foi conhecido na comunidade em que vivi, mas a morte apodreceu a máscara que me ocultava aos alheios olhos e passei a experimentar horrível pavor de mim mesma. Que farei por retornar à paz? Como traduzir o arrependimento que me enche a alma de infinita amargura?
Matilde fitou-a, compungidamente, e observou:
– Milhares de seres, despojados da roupagem fisiológica, estertoram em zona próxima, sob o guante cruel das paixões a que se algemaram, invigilantes. Poderás encetar o reajustamento de tuas energias, dedicando-te, nos círculos próximos, ao levantamento dos sofredores de boa vontade. Com esquecimento de ti mesma, arrebatarás muitos Espíritos, cadaverizados no abuso, aos pântanos de dor em que se debatem. Plantarás na mente deles novos princípios e novas luzes, consolando-os e transformando-os, a caminho da harmonia divina, reconquistando, por tua vez, o direito de regresso ao campo bendito da carne. Reconduzida, então, à abençoada escola terrestre, receberás, talvez, a prova terrível da beleza física, a fim de que o contacto com as tentações da própria natureza inferior te retempere o aço do caráter, se conseguires manter fidelidade suprema ao amor santificante. Esta é a lei, minha filha! Para que nos reergamos com segurança, depois da queda ao precipício, é imprescindível auxiliar quantos se projetaram nele, consolidando, ante as dores alheias, a noção da responsabilidade que nos deve presidir às ações porvindouras, de modo que a reencarnação não se converta em novo mergulho no egoísmo. O único recurso de fugirmos definitivamente ao mal é o apoio constante no Bem infinito.
A benfeitora imprimiu ligeira interrupção ao verbo generoso, espraiou o olhar na assembléia que a ouvia, expectante, e concluiu:
– E que nenhum de nós admita o acesso fácil aos tesouros eternos, tão só porque atualmente nos vejamos libertos das cadeias beneméritas do corpo de carne. O Senhor criou leis imperecíveis e perfeitas para que não alcancemos o Reino da Divina Luz, ao sabor do acaso, e Espírito algum trairá os imperativos sábios do esforço e do tempo! Quem pretende a colheita de felicidade no século vindouro, comece desde agora a sementeira de amor e paz.
Nesse momento, entregou-se Matilde a maior parada e, enquanto parecia meditar, em prece, de seu tórax iluminado nasciam, espontâneas e brilhantes, ondas sucessivas de maravilhosa luz.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

ESTUDO DO LIVRO "SEXO E DESTINO" - EXPOSITORA JULIANA SOLARE


Capítulo 7

Entramos em aposento contíguo, onde encontramos jovem franzina, em doridaatitude.
Sentada num dos leitos que se estiravam no quarto gracioso e limpo, refletia, torturada, permitindo-nos entre-ver-lhe o drama oculto.
O irmão Félix apresentou-a.
Tratava-se de Marita, que os donos da casa haviam perfilhado ao nascer, vinte anos antes.
Bastou uma vista de olhos para que me condoesse ao contemplá-la. Rosa humana, embora exalasse a fragrância da juventude, aquela moça, quase menina,de mãos enclavinhadas sob o queixo, matutando, parecia carregar o peso estafante de tribulações cronicificadas e dolorosas.
Figurava-se-lhe a cabeleira ondeada lindo toucado de veludo castanho sobre acabeça. O rosto esculpido em linhas raras, os olhos escuros contrastando com a brancura da tez, as mãos pequenas e as unhas róseas complementavam belo manequim de carne, apresentando por dentro uma criança assustada e ferida.
Tristeza maquilada. Aflição no disfarce de flor.
Obedecendo a instruções de Félix, abordei-a, enternecido, rogando-lhe, mentalmente, algo esclarecesse, em torno de si própria.
Desde o contacto com Nemésio, o benfeitor ensaiava-me, provavelmente sem querer, em novo gênero de anamnese: consultar o enfermo espiritual empensamento, evidenciando a terna compreensão que um pai deve aos filhos, a fimde pesquisar conclusões para o trabalho assistencial.
Compelido a operar individualmente, recompus emoções.
Recobrei os sentimentos paternais que me haviam animado entre os homens ecravei o olhar indagador naquela criaturinha cismarenta, imaginando-a por filha de minha alma.
Solicitei-lhe, sem palavras, confiasse em nós, desoprimíndo-se. Relacionasse, por gentileza, as suas impressões mais recuadas no tempo. Desenovelasse o passado. Reconstituisse na lembrança tudo o que soubesse de si, nada escondesse.
Propúnhamo-nos auxiliá-la. Não conseguiríamos, porém, agir ao acaso. Era imprescindível que ela se nos revelasse, arrancando à câmara da memória as cenas arquivadas desde a infância, expondo-as na tela mental para que as analisássemos, imparcialmente, de maneira a conduzir as atividades socorristas que intentaríamos desenvolver.
Marita assimilou-nos o apelo, de imediato. Incapaz de explicar a si mesma a razão pela qual se via instintivamente constrangida a rememorar o pretérito, situou o impulso mental no ponto em que obtinha o fio inicial das suas recordações.
Os quadros da meninice se lhe estamparam na aura, movimentados como num filme.
Vimo-la pequenina, hesitante, nos passos primeiros.
E, enquanto desfilavam os painéis ingênuos do que lhe havia acontecido, logo após o soerguimento do berço, ela alinhavava elucidações inarticuladas, respondendo-nos às perguntas.
Sim — relembrava, supondo falar consigo —, não era filha dos Nogueiras. Dona Márcia, a esposa de Cláudio, adotara-a. Nascera de jovem suicida. Aracélia, a mãezinha que não conhecera, fora tomada a serviço do casal, por ocasião do matrimônio daqueles que o destino lhe impusera na condição de pais. Quando se entendera por gente grande, a genitora de Marina lhe dera a saber, através de informações pessoais, a breve história da mulher simples e pobre que a trouxera ao mundo. Recém-chegada do interior, procurando emprego humilde, Aracélia acolhera-se-lhe à moradia, encaminhada por senhora de suas relações. Era bonita, espontânea. Brincava, gostava de festas. Findos os compromissos caseiros, divertia-se. Pela ternura expansiva, granjeara amizades, passeava, dançava. Alegre e comunicativa, mas operosa e correta. As vezes, regressava, tarde da noite, ao aposento que a família lhe destinara; de manhãzinha, porém, estava no posto. Nunca se queixava. Invariavelmente prestimosa, a desvelar-se do tanque à cozinha.

A vista disso, embora os patrões não lhe estimassem as companhias pouco recomendáveis, não se sentiam com direito a lançar-lhe reproches. Dona Márcia era habitualmente precisa nas referências. Lembrava-se dela, enternecida. Por ocasião do nascimento de Marina, a filha única, fizeram-se mais amigas, mais íntimas.
Aracélia desdobrara-se, junto dela, em carinho e dedicação. Contudo, justamente nessa época, verificara-se a grande mudança. A doméstica devotada engravidara-se, com muito padecimento físico. Por mais se esforçassem os donos da casa, instando a que se manifestasse quanto ao responsável pela situação, apenas chorava, abolindo qualquer possibilidade de se lhe tentar casamento digno. Sabia-se que, freqüentando bailes a rodo, decerto se precipitara em aventuras diversas.
Compadecidos, os patrões deram à jovem mãe solteira a mais ampla assistência, inclusive internando-a em estabelecimento adequado, para que a criança nascesse sob o amparo possível.
Nesse tópico das amargosas reminiscências, a menina estacou, mentalmente, qual se estivesse cansada de pensar no mesmo assunto. Fora assim que ela, Marita, chegara ao mundo.
Marejaram-se-lhe os olhos de lágrimas, estabelecendo confronto entre as provações da mãezinha e as dela própria; no entanto, para não distrair a pesquisaem curso, sugeri-lhe continuasse.
Dona Márcia contara-lhe — prosseguiu no solilóquio — que, retornando a casa, mostrara-se Aracélia irremediavelmente abatida. Lágrimas incessantes, irritação, melancolia. Não valeram advertências, nem cuidados médicos. Na noite em que sorveu grande dose de formicida, conversara animadamente com a patroa, fornecendo a impressão de que se recuperava. Entretanto, pela manhã, foi achada morta, com uma das mãos agarrada ao seu berço, como se, na última hora, não lhe quisesse dizer adeus.
Fundamente comovida, a jovem procurou, em vão, revisar o começo, interessada em relatar-nos quanto conhecia de si mesma. Certificava-se tão-somente de que despertara para a vida no colo de Dona Márcia, que considerara, a principio, sua mãe verdadeira, que se ligava a Marina como se lhe fosse irmã no sangue, apegando-se a ela em todos os brincos da infância. Juntas freqüentaram a escola, juntas comungaram a meninice. Partilhavam excursões e entretenimentos, alegrias e jogos. Manuseavam os mesmos livros, vestiam cores iguais.
Processava-se a análise, normalmente, mas, talvez porque o tempo avançasse,o irmão Félix se despediu, alegando obrigações urgentes. Serviços na instituição pela qual se responsabilizava não lhe permitiam delongar a visita.
Asseverou, gentil, que nos hipotecava confiança. Observou, com a delicadeza do chefe que solicita, ao invés de mandar, que esperava por zelosa atenção de nossa parte, ao pé daquela menina inexperiente, enquanto a prestação de concurso fraterno se nos tornasse possível.
Enunciando a petição, notava-se-lhe o embaraço. Compreendi que ele, espírito superior, ali se achava por generosidade, àfeição do professor destacado e enobrecido que desce de sua cátedra para alentar o ânimo de alunos detidos no alfabeto.
Ele sorriu com desapontamento, percebendo a interpretação que me assomara à cabeça, e esclareceu, discreto, que possuia fortes razões para consagrar-se à felicidade daquela casa, com entranhado afeto; entretanto, a família teimava em fugir de toda atividade religiosa ou beneficente.
Ninguém, ali, se interessava pelo cultivo da oração ou do estudo. Nenhum dos quatro componentes da equipe doméstica se inclinava para o serviço ao próximo. À face disso, não obstante amasse Cláudio com paternal solicitude, não se sentia autorizado a localizar-lhe, na residência, servidores sob sua orientação, sem objetivos sérios que lhe fundamentassem a atitude.
Não lhe sendo lícito assim proceder, satisfazendo a mero capricho, reconhecia-se impelido a comparecer, sob aquele teto, exclusivamente de quando em quando,ou rogar a colaboração de amigos itinerantes.
Neves e eu, pesarosos, ao vê-lo partir, destacamos nossas deficiências, mas prometemos boa-vontade. Permaneceríamos de sentinela e, se alguma eventualidade ocorresse, apelaríamos na direção dele.
Félix sorriu e informou que Amaro, o enfermeiro de Beatriz, e cooperadores diversos operavam nas cercanias. Todos dedicados, amigos, prontos a auxiliar, embora sem qualquer obrigação para isso. Otimista, acrescentou que, na hipótese de necessidade, o pensamento preocupado funcionar-nos-ia por sinal de alarme.
Achamo-nos a sós, em serviço.

Findo o ligeiro intervalo, retomamos a análise em curso. Observei que Neves se esmerava, mais atentamente, em ser útil.
Marita, que se alheara das próprias reminiscências, por instante rápido, voltou,automaticamente, a memorizar, expondo-nos à vista as telas do passado próximo, que lhe eram abordáveis ao conhecimento.
Mergulhada na imaginação, qual se devaneasse, em conta própria, surpreendia-se mentalmente no regaço materno ou colada à irmãzinha, na segurança inocente de quem se supunha plenamente ajustada ao quadro familiar. Revia Cláudio, a sustê-la nos braços, por flor tenra desabotoada num tronco juvenil, transmitindo-lhe a impressão de pai legítimo.
Oh! a felicidade fugidia da infância!. -. As doces convicções dos dias primeiros!
Como suspirava pelo retrocesso do tempo para dormir na simplicidade!
Súbito, confrangeu-se-lhe a alma, como se implacável bisturi lhe retalhasse os nervos. Vimo-la cair numa explosão de lágrimas. Coloriu-se-lhe na mente a festa distante que lhe havia comemorado o término do primeiro curso escolar, nove anos antes. Detinha-se no instituto garrido, nos adeuses aos colegas, nas palavras de saudação e reconhecimento que proferira, feliz, diante dos mestres, e nos beijos que recebera sobre os cabelos a se lhe derramarem nos ombros.
Depois... em casa, o olhar diferente de Dona Márcia, no aposento à porta fechada.
Iniciara-se-lhe, desde então, o conflito da vida inteira. A revelação inesperada ferira-lhe o espírito, à maneira de pedra contundente. Esvaecera-se-lhe, de improviso, a alegria infantil. Sentira-se criatura humana adulta, amadurecida e sofredora, de um momento para outro. Não era filha da casa. Era órfã, adotada pelos corações queridos, aos quais amava tanto, julgando pertencer-lhes.
Isso lhe arrebentara o coração. Pela primeira vez, chorara com medo de enlaçar-se àquela a cujo peito se albergava, até ali, nas horas difíceis, como se se aninhasse no refúgio maternal. Sentia-se machucada, sozinha. Dona Márcia, diligenciando esclarecer com evidente bondade, explicava, explicava. Ela, até então menina estouvada e risonha, repentinamente torturada, ouvia, ouvia.
Ansiava perguntar o porquê de tudo aquilo, mas a voz calara-se-lhe nagarganta. Era preciso aceitar a verdade, conformar-se, sofrer. Esforçara-se a mãe adotiva por diluir a amargura da notificação no bálsamo do carinho, mas não se esquecera de lhe dizer em tom conselheiral: «você deve crescer sabendo tudo, melhor saber hoje que amanhã; filhos adotivos, quando crescem ignorando a verdade, costumam trazer enormes complicações, principalmente quando ouvem esclarecimentos de outras pessoas), e acrescentara, diante do silêncio em que ela afogava as próprias lágrimas: «não chore, estou apenas explicando; você sabe que criamos você por filha, mas é necessário que conheça a realidade toda; adotamos você, lembrando Aracélia, tão amiga, tão boa.»E os informes foram imediatamente complementados com a exibição de fotografias e relíquias da genitora suicida, arrancadas de pequena caixa de madeira que Dona Márcia trouxera.
Espantada, revirara nervosamente nas mãos aqueles retratos e adereços demoça pobre.
Sensibilizara-se ao ver os colares de fantasia, os anéis de plaquê. Era tudo quanto restava daquela mãe que desconhecia. Contemplou a imagem dela nas fotos que o tempo amarelecera e experimentou profunda e indizível atração por aqueles olhos grandes e tristes que pareciam arrebatá-la do quarto para um mundo diferente.
Não amadurecera, porém, o raciocínio para pensar nas angústias daquela mulher que o sofrimento abatera. A reflexão, em torno da mãezinha desencarnada, durara um momento só.
Achava-se melindrada em demasia para deslocar-se facilmente da sua dor.
Ouvira Dona Márcia, ao despedir-se, arrecadando aqueles ternos vestígios do passado, sem prestar-lhe maior atenção. 

Aquelas palavras: «adotamos você, lembrando Aracélia tão amiga, tão boa», percutiam-lhe na cabeça.
Então, era assim que a despachavam para a estação da orfandade em que lhe competia viver?
E os beijos do lar que admitia lhe pertencerem? E os mimos domésticos que julgava partilhar com Marina em partes e direitos iguais?
Figurara-se-lhe Dona Márcia decididamente empenhada em falar-lhe sem amenor manifestação do efusivo amor que lhe caracterizava os gestos de outras horas. Demonstrara-lhe carinho, sem dúvida, mas racionava os afagos, qual se quisesse traçar, dali em diante, severa fronteira entre ela e a família. Imaginava-se, por isso, esbulhada, ferida. Fora simplesmente albergada, tolerada, enganada. Não era filha, era órfã.
A inteligência precoce compreendia toda a situação, conquanto não conseguisse inclinar-se, naquele dia, a qualquer agradecimento pela compaixão de que se reconhecia objeto, assaltada qual se achava pelo orgulho infantil.
Em seguida a pausa rápida no curso das comovedoras reminiscências, Marita desdobrou-nos à vista uma cena enternecedora e inesquecível.
De minha parte, nunca registrara uma dor de criança, assim, tão funda.
Ah! sim, aquele fato nunca mais se lhe desvinculara da memória. Quando a esposa de Cláudio a deixou em pranto desconsolado, viu a cadelinha da casa, magra e anônima, que Marina, semanas antes, recolhera na rua. O animalzinho abeirara-se dela, como se lhe aderisse à mágoa, lambendo-lhe as mãos. Ela, por sua vez, retribuira-lhe a carícia, qual se lhe transferisse toda a carga de amor que acreditava lhe fora restituída naquele instante, por Dona Márcia, e, chorando, abraçou-se à cachorrinha afetuosa, gritando num desabafo:


«ah! «Jóia, não é só você que foi enjeitada! eu também...»


Desde esse dia, transfigurara-se-lhe a vida. Perdera, de todo, a espontaneidade.
A partir da revelação que não mais se lhe desencravou do cérebro, conjeturava-se diminuída, lesada, dependente.
Semelhante suplício moral, que adquirira aos onze de idade, atenuava-se tão-somente pela dedicação incessante do pai adotivo que se lhe confirmava mais terno, à medida que Dona Márcia e a filha se lhe afastavam da comunhão espiritual.
Era sozinha em assuntos de seu sexo.
Mãe e filha empenhavam-se, deliberadamente, na abstenção de qualquer parecer, quando se tratasse das incertezas dela na escolha de figurinos. Deixavam-na à revelia de qualquer assistência nos cuidados que uma jovem deve a si mesma, embora Dona Márcia, de quando em quando, a escutasse com ternura maternal, em tudo o que se referia às suas indagações de menina e mulher, necessitada de instrução para a vida íntima.
Quando sobrevinha a possibilidade do intercâmbio afetuoso, certificava-se de que a esposa de Cláudio possuía vasto patrimônio de compreensão e carinho, abafado sob o peso de conveniências e convenções, semelhando tesouro enterrado nas raízes de sólido espinheiro.
Aproveitava-se dessas horas de efusão entre ambas, exibindo-lhe todas as dúvidas e perplexidades que se lhe estacavam na imaginação, aguardando a brecha propícia.
Dona Márcia afigurava-se largar distâncias e respondia-lhe entre beijos, demonstrando vivamente que o lume da dedicação e da confiança de outros tempos não se lhe arrefecera no coração. Sorria, encantava-se. Expandia-se-lhe a meiguice maternal, em apontamentos sábios e doces. Suprimia-lhe a insipiência no trato com os problemas começantes da vida feminina, dando-lhe a impressão de haver reencontrado a mãezinha, que acreditara possuir ao pé do berço, quando aquelas mãos belas e finas, agora distanciadas, lhe afagavam a cabeleira.
Entretanto, o momento luminoso escoava-se, rápido.
Marina chegava e turvava-se o ambiente.
Assistia, espantada, à transformação que se operava de improviso. A interlocutora comprazia-se num espetáculo de personalidade dúplice.
Ocultava-se a mãezinha espiritual, afável e acolhedora, e aparecia Dona Márcia, avalentoada e cortês, na atmosfera psíquica.
Inventava, de repente, alguma atividade em aposento vizinho, dava-lhe incumbências a distância, a fim de apartá-la. Assumia ares diferentes. Queixava-se subitamente de dores que, até então, Jaziam ignoradas.
Ante a reviravolta, analisava o reverso do quadro.
Ambas, unidas, completavam-se em pequeninas torpezas para deprimi-la, humilhá-la. Diminuta mancha no vestuário constituía razão para sarcasmo; ligeira indisposição orgânica atraía-lhe complicada série de admoestações jocosas e indiscretas. Concediam-lhe, raramente, a honra da companhia para compras no centro. E se as casas comerciais visitadas não dispunham, eventualmente, de recursos mobilizáveis na entrega de encomendas, não se pejavam, mãe e filha, de carregá-la com pacotes diversos, exercitando crueldade risonha nos pejorativos com que lhe agravavam o constrangimento e a subalternidade.

Dona Márcia e Marina, juntas, à frente dela, significavam provação inqualificável que lhe competia agüentar em silêncio. Nesses instantes, sentia o coração descompassado, em desconforto indizível, como se estivesse encantoada num teste de tolerância e paciência, perante examinadores que lhe avaliavam as reações, entre o chiste e a impiedade.
Cedo percebeu que a irmã, filha única, não abriria mão de ínfima parcela dos mimos caseiros, de que se supunha senhora.
Dominado o segredo de sua origem, modificara a conduta para com ela.
Tramava motivos para biografá-la, nas conversações com as amigas, suprimindo, previamente, quaisquer dúvidas, suscetíveis de ocorrer, com relação às duas, no meio social. Criticava-lhe os gostos, as atitudes. E a genitora não fazia mistério na tomada de posição.
Em separado, não vacilava ceder-lhe a ternura que vinha do passado, enriquecida talvez pela compaixão que ela, moça pobre, inspirava no presente. Isso, porém, exacerbava-lhe a secura.
Ansiava repouso em dedicações estáveis. Pesava-lhe a solidão, sem qualquer parente consangüíneo que lhe disputasse os vínculos da amizade. Mensagens aos familiares de Aracélia nunca mereceram resposta. Informações procedentes da remota cidade em que sua mãe nascera inteiraram-na, por fim, de que todos eles haviam demandado outras regiões do país, apetecendo melhor sorte.
Retinha suficiente autocrítica e discernia a situação. Estava só.
Marita, que conjeturava reaver lembranças por impulso deliberado, franqueou o propósito de recrear-se para dar conta de si, como quem se propõe alijar, por momentos, a carga que transporta, a fim de interrogar-se, quanto aos empeços do caminho.
Afrouxamos, com naturalidade, a observação aguda com que lhe acompanhávamos a exposição silenciosa.
Aliviada, indagou de si mesma se não fora o insulamento a causa de exagerar tão cedo a necessidade de companhias diferentes das que lhe traçavam no lar o estreito círculo de provas.
Encerrada nos pensamentos que lhe armavam as fantasias e receando exteriorizá-los, pelo temor do ridículo, recorrera à evasão.
Ave cansada pelo exercício prematuro das próprias asas, inquiria por que se lhe recusara alimento afetivo no ninho, onde conseguira distendê-las.
Antes, porém, que se acomodasse em algum esconderijo da mente, para fixar-se em contristações inúteis, solicitamo-la a que viesse, por gentileza, em apoio da análise que empreendíamos, no intuito de auxiliá-la e protegê-la.
Docilmente, retomou as elucidações interrompidas, relacionando os primeiros dias de atividade na profissão de comerciánia a que se afizera.
As rememorações externaram-se em jorro.
Entremostrou-nos o movimentado estabelecimento comercial em que Cláudio lhe obtivera a função de balconista. Pequeno mundo da preferência feminina.
Bijuterias, perfumes, tecidos leves, roupas feitas.
No dia imediato àquele em que o pai adotivo lhe trouxera da rua um bolo enfeitado com dezessete rosas pequenas, para comemorar-lhe o aniversário, entrara em serviço.
De começo, tudo hesitação e novidade.
Vira-se, depois, atirada aos embates do sentimento. Ligações novas, idéias renovadas.
Aliciara relações confortadoras, expandiram-se-lhe os interesses, permutava confidências, conquistava simpatias.
A imaginação agora se lhe excitava em descontrole, sugerindo-lhe adornar-se com esmero, de modo a se destacar diante do herói que lhe viria, decerto, governar o império emotivo, oferecendo-lhe um lar, pedaço de paraíso em que pudesse anestesiar o coração, desoprimir-se e achar a felicidade.
Menina bisonha, circunscrevia, até então, todos os conhecimentos, em matéria de amor, aos romances em que cinderelas anônimas acabavam em deslumbramento, nos braços de príncipes que as arrancavam da obscuridade para a glória. Entusiasmava-se com novelas e filmes que terminassem pelo altruísmo coroado ou pelas supremas aspirações humanas, convenientemente atendidas.
O destino, entretanto, escarnecera-lhe da inocência.
Comparava o contacto da vida prática a podão implacável que lhe talara todas as flores do jardim de sonhos juvenis.
A principio, a desilusão conturbara-lhe o ânimo, através de um colega que a obsequiava, repetidamente, com entradas de cinema. Conhecia-lhe a noiva, professora jovem e distinta que se lhe afeiçoara ao convívio.
Que mal em se verem juntos para uma fita simpática, de vez em vez? Iniciaram-se os momentinhos de encontro fraterno. Intimidade dos minutos propícios.
Copacabana, aqui e ali. Um cafezinho de bar, nas horas de vento frio, um sorvete na praia, quando o calor vinha forte. Mera camaradagem. Amiguinho, fazendo o papel do irmão que não tivera.
Veio, porém, a noite em que ele se apresentou, transtornado. Chegara sem a noiva, que se dirigira a Petrópolis. Acontecimento natural, conquanto raro. Nada prenunciava sucessos desagradáveis, nenhum motivo de inquietação.
Conversaram, pacificamente, nas areias do Leme. A Lua nascera, plena, inspirando-lhes pensamentos mansos e alegres, enquanto se expunham ao sopro refrigerante do mar.
O trabalho na loja fora banho de suor copioso, no dia cálido.
Falavam acerca de freguesas apressadas, mencionando clientes ásperos. Riam-se, despreocupados, ao jeito de colegiais, no intervalo das lições.
Ele, no entanto, começou o inesperado, reportando-se a medidas. A fita métrica,a seu parecer, não satisfazia, de todo, em casos determinados de atendimento.
Necessária a adoção de recursos psicológicos para tranqüilizar compradores inquietos, quando se interessassem simplesmente por fragmentos de rendas ou passamanes.
Nisso, pediu-lhe a mão pequena para confrontá-la com a dele e, respondendo, espalmara a destra sem qualquer prevenção.
Assustou-se, ao sentir-lhe a mão hirsuta e máscula, comprimindo-lhe os dedos.
Intentou desvencilhar-se. O rapaz, contudo, fez-se claro nos propósitos infelizes.
Puxou-a, num gesto brusco, de encontro ao peito, gaguejando declarações.
Na vertigem da pessoa atingida pelos efeitos de um raio, em momento de céu aparentemente azul, quis gritar, reclamar socorro, mas o sangue turbilhonava-lhe na cabeça.
Impetuosamente submetida àqueles lábios que se colavam aos dela, desfaleceu por segundos.
O hálito sedutor do primeiro homem que a retinha, submissa, destilava o magnetismo da serpente, quando hipnotiza o pássaro confiante.
O desmaio, no entanto, durara um instante só. A profunda e invencível reação da feminilidade unida à consciência surdiu, rápida. A noção de responsabilidade relampagueou-lhe no raciocínio.
Bastou isso e o impulso sexual esmoreceu, neutralizado. Ideou a imagem da amiga ausente, compreendeu todo o perigo a que se expunha.
Aspirava, sim, a ser mulher de um homem, companheira de alguém que lhe fosse companheiro.
Compenetrava-se, com humildade, da sua condição de criatura humana, moça sequiosa de afeto, prelibando emoções da maternidade, mas não concordaria com o próprio aviltamento em deslealdade ou devassidão.
Apelou para todas as energias de que se reconhecia capaz e, tocada de súbita resistência, arrojou longe o perseguidor que lhe pressionava o busto tremente.
Desembaraçada, o pranto explodiu-lhe quente e doloroso.
Interpelações da alma sincera estouraram, contundentes e francas.
Onde os compromissos do noivado? que fazia da jovem correta que lhe empenhara o destino? trazia, assim, o coração rolando tão baixo? não possuía acaso, mãe e irmãs, para as quais exigia valimento e respeito?
Lívido e atarantado, o colega escusou-se, asseverando, impudente, que não a supunha meninota antiquada.
Estava comprometido, noivo há meses, no entanto — sublinhou, cínico —, a seu modo de ver, era muito natural que ele e ela, Marita, ainda jovens, desfrutassem o tempo, acrescentando, ainda, em sua filosofia desabusada, que todo viajante consciente, embora conheça o caminho certo, é livre para saborear os frutos que pendam de plantas erguidas à margem.
Zombou-lhe das lágrimas e retirou-se, gargalhando, sarcástico, para depois hostilizá-la em serviço.

Ocorreram outros impedimentos e tentações.
O sobrinho do chefe, bonito rapagão recém-casado, insinuara-se, começando por um presente de aniversário e terminando por solicitar-lhe colaboração no escritório, onde pretendeu arrancar-lhe atitudes inconfessáveis. Angariara inimigo novo e amargara preterições. Enquanto isso, observava que Marina se alterara, sensivelmente. Favorecida pelo devotamento materno, alcançara diploma de contadora, situando-se com manifestas vantagens. E, decerto pelo motivo de ganhar expressivas somas na profissão, sustinha, desajuizadamente, prodigalidades e excessos. Figurinistas de prol, penteados extravagantes, bebedeiras e tafulices.
Nesse ponto das confidências mudas, o vulto de um jovem raiou, nítido. Ao estampá-lo na paisagem dos mais recônditos pensamentos, transfigurou-se a castigada criança.
Desanuviou-se-lhe o firmamento íntimo. Queixas arredadas, apreensões esquecidas.
Clareou-se a aura de tal modo, ao refletir o rapaz, que o fenômeno induzia às mais belas apreciações do entusiasmo poético. Vaso pensante que incorpora o privilégio de esculpir-se e alindar-se, à vontade, para encertar a flor predileta. Lago consciente, mantendo a faculdade de esconder, de inopino, todos os detritos de suas águas, metamorfoseando-se em espelho suave e cristalino para retratar uma estrela.
Marita amava o escolhido com a firmeza da árvore que se levanta sobre a raiz
principal de apoio, com a abnegação das mães, que preferem morrer, felizes no sacrifício extremo, se for essa a condição para que os filhos queridos logrem viver.
Enlevado com o painel, que se configurava qual retábulo vivo, incutindo respeito religioso, interroguei-me, quanto ao lugar onde teria visto quadro idêntico: jovem mulher plasmando aquele rosto no campo mental.
Vasculhei a memória e identifiquei-o. Era o adolescente cujo semblante repontava dos pensamentos de Marina, senhoreando-lhe o coração, de parceria com Nemésio.
Ambas as meninas jaziam espiritualmente imanadas a ele por laços idênticos.
Cruzavam-se-lhes as preferências, sócias de análogo destino.
Relanceei o olhar sobre Neves, que me espreitava, atento, exercitando-se em serviço de análise psíquica, percebendo-lhe a face transida de mágoa.
Bastou recolher-me o sinal e aproximou-se, impulsivo, segredando-me, transtornado:
— Ainda não nos entendemos devidamente. Sabe você quem é este? É meu neto, Gilberto, filho de Beatriz...
Articulei breve aceno, rogando-lhe aguardar ensejo que fosse vantajoso à conversação, e graduei, dentro de mim, os efeitos do impacto emocional. Eu, que me abeirara daquela atormentada criança, imaginando-me na posição de um pai socorrendo uma filha, sopitei, a custo, o espanto que me assaltava, para não tresmalhar-me na inconveniência da compaixão destrutiva.

Não sabia de que modo o pesar me doía mais, se ao refletir em Marina, a dividir-se entre pai e filho, ou se ao concentrar a atenção naquela moça triste, profundamente lesada nos tesouros do sentimento.
Estanquei no Intimo as impressões que me sensibilizavam e prossegui, pesquisa adiante.
A muda confissão da jovem avançou em reminiscências vivas e francas.
Conhecera Gilberto, precisamente há seis meses, no gabinete do chefe. Ela prestava informações de serviço, ele representava os interesses do próprio pai, em negócios alusivos à venda de imóveis.
Com que deslumbramento lhe recebera os primeiros olhares afetuosos e indagadores! Elos de intensa afinidade passaram, desde então, a jungi-los um ao outro, sem que lhe fosse possível justificar a sede crescente de comunhão que a dominava.
Para surpresa maior, na excursão inicial que lhes precedera a série de passeios e entretenimentos felizes, soubera, satisfeita, que Marina, recentemente empregada, se fizera contadora da firma em que o genitor dele se destacava como sendo a figura mais importante.
Riram-se da coincidência com a ingenuidade de duas crianças.
Marita confiara-se a ele, integralmente. Amava-o, sentia-se amada.
Desde que se lhe apoiara ao braço, pronto a enlaçá-la e protegê-la, mais vastos horizontes se lhe descerraram à alma. Tolerava as alfinetadas do cotidiano, transformando-as em notas de perdão e alegria. A Natureza desvendava-lhe encantos novos. Admitia que outra luz se lhe acendera nos olhos, permitindo-lhe descobrir a beleza do mar; detinha, sem explicá-la, certa música nos ouvidos para assinalar, contente e embevecida, as ternas arengas das crianças e as vozes dos passarinhos. Desligara-se do calvário doméstico; o tempo voava, doce, ao coração.
O amor correspondido anestesiara-lhe a sensibilidade. Nenhum peso a carregar, nenhuma noção de sacrifício.
Dera-se a Gilberto, copiando a passividade da planta que se rende ao cultivador, da fonte que se entrega ao sedento.
O filho de Nemésio Torres prometera-lhe casamento. Falava do futuro risonho, suscitava-lhe sonhos de maternidade e ventura. Para fazê-la integralmente feliz, apenas aguardava a melhoria econômica que adivinhava perto.
Apesar de tudo, tinha agora o coração farpeado, abatido. Convencia-se de que Gilberto se enfastiara, que ambos, precipitados à fome de prazer, haviam colhido, antes do tempo, a flor da felicidade que parecia frustra.
Marina adiantara-se. Sempre Marina...
Na véspera, surpreendera a irmã e Gilberto num colóquio, que não deixava dúvidas. Ouvira-lhes a conversação impregnada de ternura ardente, sem ser pressentida.
Nesse ponto das lembranças amargas, ao modo de ave repentinamente ferida, estirou o corpo  desgovernado, abandonando-se a lágrimas convulsas.