quarta-feira, 14 de abril de 2010

ESTUDO DO LIVRO NO MUNDO MAIOR - CAPÍTULO 19 - JULIANA SOLARE



REAPROXIMAÇÃO

Quando Cipriana regressou, em companhia dos demais amigos, encontrou-me banhado em lágrimas, e ouviu a estranha narrativa de meu avô semilúcido. Esboçou complacente gesto e disse, bondosa:
— Sabia, André, que não terias vindo para nenhum resultado.
Em rápidos minutos descrevi-lhe a ocorrência, prestando-lhe todos os informes sobre o passado.
A diretora ponderou, serena, a minha digressão através do pretérito e obtemperou:
— Dispomos de tempo curto e, como não será possível ao doente acompanhar-nos, cumpre interná-lo já em algum recolhimento, aqui mesmo.
Meu avô, mau grado ao júbilo de me haver reconhecido, não guardava razoável equilíbrio: pronunciava frases desconexas, em que o nome de Ismênia era repetido a cada passo.
— Não podemos esquecer — acentuou a venerável instrutora — que o irmão Cláudio precisa de tratamento e de cuidado. É impossível prever quando se achará em condições de respirar atimosfera mais elevada.
Assim dizendo, generosa e meiga, auscultou o velhinho semilouco, examinando-o maternalmente.
Decorridos alguns instantes, informou:
— André, nosso enfermo, para melhorar com mais rapidez e eficiência, deveria retornar à experiência carnal.
— Neste caso, então, — disse eu, humilde poderíamos merecer seu auxilio, Irmã?
— Como não? em se tratando de reencarnação por meras atividades reparadoras, sem projeção nos interesses coletivos, de modo mais amplo, nosso concurso pessoal pode ser mais decisivo e imediato. Temos nestes sítios grande número de benfeitores, providenciando reencarnações em grande escala nos círculos regenerativos. Vejamos como estudar a situação futura deste irmão.
Submeteu o doente a carinhoso interrogatório.
O ancião, comovido, contou que seu genitor, ao se casar, conduziu para o lar uma filha de sua mocidade turbulenta, a qual a mãezinha acolhera com doçura. Essa irmã lhe fora, mais tarde, ama desvelada, tornando-se-lhe credora de justa gratidão. Todavia, enceguecido pelo propósito inferior de possuir dinheiro desmedidamente, despojou-a dos bens que lhe cabiam, por ocasião do falecimento dos pais, que, vitimados por febre maligna, o haviam deixado em vésperas de casamento. Ismênia, espoliada, depois de chorar e reclamar debalde, foi compelida a homiziar-se em residência de família abastada, que lhe cedeu, por favor, um lugar de copeira com remuneração desprezível. Soube que, premida por dificuldades materiais de toda a sorte, desposara um analfabeto, homem rude e cruel, que a seviciara e lhe dera algumas filhas em dolorosas condições de miserabilidade. Exposto o desvio máximo de seu caminho, passou a comentar os indignos ideais que nutria no terreno da sovinice, estremecendo-nos os corações.
Cipriana, demonstrando-se habituada aos problemas daquela natureza, esclareceu-me:
— Já conhecemos dois pontos essenciais para os serviços que lhe competem: a necessidade da reaproximação com Ismênia, que não sabemos onde se encontra, se encarnada ou não, e o imperativo da pobreza extrema, com trabalho intensivo, para que reeduque as próprias aspirações.
De posse do endereço provável dos descendentes da irmã outrora espezinhada, Cipriana recomendou a dois companheiros nossos se encarregassem de rápida investigação na Crosta Terrestre, a fim de nos orientarmos quanto aos rumos a tomar no imprevisto acontecimento.
Os emissários não se demoraram mais do que noventa minutos.
Traziam boas novas, que me reconfortavam.
Localizaram a família a que o desditoso velhinho se referira em suas amargas reminiscências, e traziam sensacional informação. Amigos de nossa esfera esclareceram-nos, quanto a Ismênia, que ela reencarnara e vivia na fase juvenil das forças físicas. Corporificara-se no mesmo tronco doméstico a que emprestara colaboração na época em que meu avô a expulsara do campo familiar.
Cipriana tudo ouviu, sensibilizada, e, interessando-se por nós, sugeriu organizássemos as bases da futura experiência, conquistando, sem delongas, as simpatias da jovem.
A esse tempo, já nos achávamos portas a dentro de uma organização socorrista, que recebeu a solicitação de nossa diretora em favor do enfermo, com excelente disposição de servir-nos.
Cercando de todas as atenções meu antigo credor, a estimada benfeitora frisou, dirigindo-se a mim:
— Nosso amigo, durante dois anos aproximadamente, não poderá ausentar-se desta casa de assistência fraterna. Permanece ainda profundamente identificado com a atmosfera destes sítios. Visitá-lo-emos seguidamente, amparando-o com os nossos recursos, até que possa respirar de novo os ares da Crosta. É de notar que a mente dele não se libertará das teias da incompreensão com facilidade, e, neste estado, não volveria com êxito ao educandàrio da carne.
Acatei a ponderação, acompanhando o curso das providências para o caso.
Cipriana contemplou, enternecida, a entidade demente, e prosseguiu, bondosa:
— Agora, André, finalizando nossos trabalhos da semana, tentemos trazer Ismênia até aqui, para os trabalhos preparatórios de reaproximação. Achando-se presentemente na juventude terrestre, provàvelmente nos auxiliará no momento preciso, recebendo o irmão perturbado em seu próprio instituto doméstico. Antes de mais nada, porém, necessitamos da simpatia dela, em face do nosso programa de reerguimento.
— Se Ismênia aceitar, se consentir... — acrescentei, hesitante.
— Encarregar-nos-emos do resto — prometeu a interlocutora, decidida; o retorno de Cláudio à esfera física terá características muito pessoais, sem reflexos de maior importância no espírito coletivo, pelo que nós mesmos poderemos providenciar quase tudo.
Confiando o enfermo aos beneméritos companheiros que velavam na casa de amor cristão em que nos asiláramos, dirigimo-nos para o Rio, onde Ismênia seria encontrada por nós em modesto lar de Bangu.
Em plena madrugada, entramos, respeitosos, na humilde residência.
A irmã de meu avô era agora a sexta filha daquela senhora que, na existência física, era conhecida por neta da velha Ismênia, cuja personalidade, para a família terrena, se perdera no tempo, e que não era outra senão a menina e moça, sob nossos olhos, de volta às tarefas aperfeiçoadoras da luta carnal.
Tudo ali respirava pobreza digna e adorável simplicidade.
Adiantando-se, Cipriana colocou a destra sobre a fronte da jovem adormecida, como a chamá-la até nós. Efetivamente, decorridos instantes, veio ter conosco e, reparando que nossa orientadora, envolta em luz intensa, a cobria com um gesto de bênção, ajoelhou-se, desligada da matéria, exclamando em lágrimas de júbilo:
— Mãe Celestial, quem sou eu para receber a graça de vossa visita? Sou indigna servidora...
Cobriu o rosto com as mãos, sentindo-se talvez ofuscada pela claridade sublime, e contendo, a custo, a comoção a estuar-lhe no peito; mas nossa veneranda benfeitora aproximou-se, pousou-lhe as mãos carinhosas na basta cabeleira negra e falou, compassiva:
— Minha filha, sou apenas tua irmã, tua amiga... Ouve! Quais são tuas intenções na vida?
Como a jovem erguesse para ela os olhos lacrimosos, acrescentou a nobre mensageira:
— Precisamos de tua colaboração e não desejamos ser amigos Inúteis. Em que te podemos servir?
Decorreram pesados instantes de expectação.
— Fala! — acrescentou Cipriana, prestimosa; explica-te sem receios...
Voz entrecortada pela comoção, lembrou com ingenuidade juvenil:
— Minha mãe, se eu puder rogar-vos alguma coisa, peço-vos auxilio para Nicanor. Somos noivos, há quase dois anos, mas somos pobres. Trabalho na indústria de tecelagem, com salário reduzido, para ajudar à manutenção de nossa casa, e Nicanor é pedreiro... Temes sonhado com a organização de um lar pequeno e modesto, sob a proteção da Divina Providência. Poderemos aguardar a aprovação de Deus?
Cipriana estampou na fisionomia suma ternura materna e considerou:
— Como não? Teus desejos são justos e santificantes. Nicanor terá nosso amparo, e tuas esperanças nossa viva contribuição. Esperamos, porém, algo de teu concurso...
— Ah! em que poderia servir-vos, eu, mísera serva que sou?
A diretora não prolongou a conversação, pedindo-lhe tão somente:
— Vem conosco!
Em seguida, com grande surpresa para mim. Cipriana cobriu-lhe o rosto com estreito véu de substância semelhante a gaze, para que lhe não fosse dado ver as impressionantes paisagens que deveríamos atravessar.
Sustentada por nós, dentro em pouco a moça se ajoelhava, curiosa e enternecida, ante meu avô, que, ao enxergá-la, prorrompeu em exclamações em que ressumbrava ansiedade:
— Ismênia! Ismênia! minha irmã, perdoa-me!... Afagando-lhe as mãos, torturado, contemplava-lhe o semblante humilde:
— Oh! é ela mesma — insistia, tomado de evidente espanto, com a mesma tristeza do dia em que a expulsei!... Que fêz, porém, para ser hoje mais jovem e mais formosa?
Como a visitante guardasse silêncio, confundida, inquiria, aflito:
— Dize, dize que me perdoas, que esquecerás o mal que te fiz!
A essa altura da inopinada entrevista, Cipriana interveio, dirigindo-se a ela, interrogando:
— Nunca soubeste, em família, que tua bisavó teve um irmão.
A jovem não a deixou concluir, perguntando por sua vez:
— ... que a expulsou de casa? Sim.
— Minha mãe já se referiu a esse passado distante — acrescentou, melancólica.
— Não o reconheces? — tomou, afável, a benfeitora. — Não te recordas?
Nesse instante, o velhinho interferiu, excitando-lhe a memória:
— Ismênia, Ismênia! eu sou Cláudio, teu desventurado irmão...
A jovem não sabia como interpretar aquelas evocações, mas nossa diretora, cingindo-lhe os lobos frontais com as mãos, a envolvê-la em abunantes irradiações magnéticas, insistia, meiga, provocando a emersão da memória em seus máis importantes centros perispiríticos:
— Revê o pretérito, minha amiga, para bem servirmos à Obra Divina.
Notei, assombrado, que algo de anormal sucedera na mente da jovem, porque seus olhos, dantes doces e tranquilos, se tornaram dilatados e inquietos. Tentou recuar ante a súplice expressão de meu avô, mas a energia de Cipriana a conteve, evitando-lhe a expansão dos impulsos iniciais de medo e de revolta.
— Agora, sim! Lembro-me... — gemeu, aterrada.
Nossa instrutora, então, libertou-lhe a fronte e, indicando o enfermo, exclamou em tom comovedor:
— E não tens piedade?
Alguns segundos de expectativa rolaram pesadamente; contudo, o amor, sempre divino na mulher de aspirações elevadas, triunfou no olhar enternecido de Ismênia, que, plenamente modificada, se abraçou ao doente, exclamando:
— Pois és tu, Cláudio? que te aconteceu?
Traçou o ancião largo comentário de suas penas, referiu-lhe as faltas passadas, e falou-lhe, mais lúcido e contente, do conforto que a reaproximação lhe conferia.
Ela conservou-o muito tempo de encontro ao peito, fazendo-lhe sentir sua imensa ternura, sua dedicação e entendimento sem limites.
Quando pareciam perfeitamente reconciliados, Cipriana abeirou-se dela e considerou:
— Minha amiga, estimaríamos receber a tua promessa de auxiliar nosso irmão Cláudio, em futuro próximo. Cooperarás conosco em favor dele, recebendo-o nos braços abnegados de mãe, se a Lei Divina autorizar teu matrimônio?
Reverente, dando-me a conhecer os tesouros de uma existência singela e humilde na Terra, a visitante exclamou:
— Se o Céu me conceder a felicidade de com algo contribuir em benefício de Cláudio, esse benefício será feito a mim mesma; e, se um dia eu receber a ventura conjugal, será nosso primeiro e bem-amado filhinho. De antemão, sei que Nicanor se regozijará com o meu compromisso.
Contemplando, enlevada, o desditoso prisioneiro das sombras, prometia:
— Partilhar-nos-á a vida pobre e honrada, conhecerá as alegrias do pão, filho do suor com a Proteção Divina, e olvidará, em nossa companhia, as ilusões que por tanto tempo nos separaram...
Evidenciando deliciosa singeleza de coração, projetava em êxtase:
— Será um pedreiro feliz, como Nicanor! abençoará a luta digna que atualmente bendizemos!...
Como chorasse, comovida, Cipriana abraçou-a, também tocada no coração e de olhos úmidos, assegurando:
— Bem-aventurada sejas tu, querida filha, que compreendes conosco o celestial ministério da mulher nobre, sempre disposta à maternidade sublime.
Mais alguns minutos decorreram em salutares entendimentos, e, quando o Sol engrinaldava o horizonte de tonalidades diamantinas, de novo estávamos no modesto aposento de Ismênia, ajudando-a a retomar o aparelho fisiológico e a olvidar a ocorrência que vivera, junto de nós, na esfera do Espírito.
Acordou no veículo pesado, experimentando ignoto júbilo. Tinha a mente refrescada de idéias felizes. Teve a nítida impressão de que tornava de maravilhosa romagem, cujas minúcias não conseguiria precisar. Sem saber como, guardava, naquele instante, absoluta certeza de que se casaria e de que Deus lhe reservava ditoso porvir.
Quem poderia definir-nos o reconhecimento e a admiração daquela hora? Meus companheiros abençoaram-na, e eu, por minha vez, desedindo-me dela comovidamente, osculei-lhe a destra minúscula, num beijo silencioso de profunda amizade e de indizível gratidão.