quinta-feira, 15 de julho de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 15 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



15 – Além do Sonho

Tornando a Esteves, Clarêncio ofereceu-lhe o braço amigo, mas o moço prorrompeu em súplica:
– Não me prendam! Não me prendam! Sou a vítima!...
O Ministro absteve-se de continuar em sua afetiva manifestação.
No passo vagaroso de quem carrega um fardo de aflição, o inimigo de Leonardo retirou-se para a via pública, regressando ao aconchego doméstico.
Seguimo-lo a pequena distância.
Renovava-se o dia.
Pedestres marchavam diligentes, na direção do trabalho.
Bondes rangiam, sonolentos, e os autos, aqui e ali, começavam a transitar pelas ruas.
Em breve tempo, o rapaz, seguido de nosso grupo, estacionou à frente de vasto conjunto residencial.
Grande relógio próximo exibia o mostrador.
Cinco horas e trinta minutos.
Embatucado, o moço voltou-se para nós, e, em seguida, desapareceu no interior.
Entramos.
Em momentos rápidos, achávamo-nos diante dele, que se esforçava por reaver o corpo físico.
O Ministro, sem molestá-lo, amparou-o afetuosamente e Esteves, pouco a pouco, recuperou a calma natural.
Mantinha-se em suave modorra, quando o despertador tilintou, faltando quinze minutos para seis.
O rapaz esfregou os olhos, de carantonha amarrada, guardando a impressão de mau sonho.
Vestindo-se, apressado, notamos que minúsculo cartão de visita lhe caiu do bolso, ensejando-nos a leitura de um nome: – “Mário Silva, Enfermeiro”.
E o nosso instrutor reafirmou:
– Nosso amigo, ontem Esteves, hoje é Mário Silva, prosseguindo em sua vocação para a enfermagem. Ouçamo-lo por alguns momentos.
O moço atendeu às obrigações da higiene e, logo após, foi recebido em pequena sala do apartamento por simpática velhinha, em cujo olhar adivinhamos a ternura de mãe.
Depois de saudação carinhosa, a senhora indagou bem humorada:
– Onde esteve esta noite, meu filho? Seu semblante carregado não me engana.
– Um sonho horrível, mamãe.
E fixando gestos expressivos, entre os goles do café notificou:
– Sonhei que alguém me chamava, a distância, em voz alta, e, acreditando tratar-se de algum doente em estado grave, não vacilei.
Corri ao apelo, mas, ao invés de topar um quarto de enfermo, vi-me, de imediato, numa cela mal iluminada e úmida...
E, com os recursos de imaginação de que dispunha para corresponder às requisições da mente, o rapaz continuou:
– Era um perfeito cubículo de prisão, onde me surpreendi encarcerado, de repente, junto de um criminoso de mau aspecto e de infortunada mulher em pranto... Senti tanta simpatia pela moça desventurada, quanta aversão pelo réu de medonha catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que nos conhecíamos. Um misto de ódio e sofrimento me tomou de assalto, junto deles, principalmente ao lado do infeliz, cujo olhar se me afigurava cruel... Perguntava, a mim mesmo, porque me não retirava de tão detestável presença, mas, enquanto o homem me repelia a mulher me provocava
o maior enternecimento... Por mais estranho que pareça, experimentava o desejo de agredi-lo e de acariciá-la, ao mesmo tempo.
Achava-me em expectativa, quando o criminoso avançou para mim, com o propósito evidente de liquidar-me, ao passo que a pobrezinha procurava defender-me. Estava atônito, ignorando se o condenado pretendia assassinar-me ali mesmo quando tentei uma
reação à altura! Cego de incompreensível rancor, ia precipitar-me sobre ele, quando, rápido, apareceu um delegado policial, seguido de dois guardas que entraram na contenda, impedindo-nos o mau impulso. O chefe, segundo percebi, de um só golpe conteve o meu agressor, obrigando-o a sentar-se, vencido, conquistando-me um
respeito tão grande que, realmente, apesar do desejo de ouvir a mulher ajoelhada, em soluços não arredei pé do lugar em que me apoiava. Depois de palavras enérgicas e rápidas, o delegado trouxe, então, à cela outros ajudantes que arrastaram meu adversário para fora... Logo após, acomodando-me numa velha cadeira, reconduziu a jovem para o interior do cárcere...
Estampou na fisionomia a expressão de quem se propunha inutilmente lembrar-se e, decorridos longos instantes de reticência, rematou:
– Depois... depois, não consigo precisar as recordações .. Sei apenas que me pus a correr, em fuga para nossa casa, de vez que os policiais se mostravam igualmente dispostos a recolher-me.
Temendo o xadrez, acordei estremunhado e abatido...
A velhinha que escutava atenciosa, comentou calma:
– Há sonhos que valem por terríveis pesadelos...
– É o que senti – concordou Mário, preocupado.
A mãezinha contemplou-o, bondosa, e acrescentou:
– Meu filho, o sonho terá alguma relação com a nossa Zulmira?
A mulher com quem simpatizou não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser interpretado como sendo o esposo dela?
O rapaz cobriu-se de leve palidez, mostrou-se mais taciturno e falou, triste:
– Quem sabe?
– Você nunca mais teve notícia de nossa antiga companheira?
– Não. Tenho apenas a informação de que mora aqui mesmo, onde o marido é ferroviário de importância.
– Nunca pude entender-lhe a atitude. Tantos anos de convivência, tantos projetos de felicidade!... Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de dois filhos!...
O moço fixou um gesto de amargura e observou:
– Ora, mamãe, evitemos recordações sem proveito. Zulmira não deve reaparecer em minha memória e esse Amaro que ela desposou é um ponto negro em meu coração. Creio que o melhor sentimento para eles dois em minha vida íntima é o ódio com que os reúno em minha lembrança. Não desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nossa transferência para outro rumo...
E, transcorridos alguns instantes, ajuntou:
– Meu sonho foi um simples pesadelo. Alguma preocupação imprecisa ou alguma intoxicação alimentar...
A senhora sorriu, desapontada, e aduziu:
– Cá por mim, estou certa de que, à noite, reencontramos as pessoas que amamos ou detestamos. Nosso espírito, no sono, procura os afetos ou os desafetos do caminho para acertar as próprias contas. Disso, não tenho qualquer dúvida.
O filho, indiscutivelmente enfadado, reergueu-se, abraçou a genitora, osculou-lhe a cabeça branca e concluiu:
O relógio é inflexível. O sonho passou e, agora, é a realidade que me espera. Devo cooperar no serviço operatório de duas crianças, às oito em ponto. Não me posso demorar. O hospital não cogita de pesadelos.
Mostrou um sorriso forçado e despediu-se.
A mãezinha acompanhou-o carinhosamente até à porta, retomando os serviços caseiros, pensativa...
Preparando-nos para a retirada, trazia o meu cérebro castigado por obsidiantes interrogações.
Encontráramos um novo capítulo na história da oração de Evelina?
Amaro e Zulmira, mencionados pelo enfermeiro, seriam as mesmas personagens que havíamos visitado anteriormente?
Dispunha-me à inquirição, quando o olhar de Clarêncio cruzou com o meu. Registrando-me a estranheza, informou:
– Já sei o teor de tuas interrogações. Realmente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira, a senhora obsidiada que conhecemos.
Pretendia desposá-la, mas foi preterido no coração dela por Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O passado fala no presente.
Acham-se enredados numa teia de compromissos que lhes reclamam resgate.
– E reencontrar-se-ão para o desdobramento das lutas redentoras em que se envolvem? – perguntou Hilário, admirado.
– Inevitavelmente – acentuou o instrutor com voz segura.
A dona da casa, mãe devotada e sensível, meditando no sonho do filho, embora movimentando automaticamente a vassoura, orava por ele, rogando a Jesus o abençoasse.
Anotávamos-lhe as reflexões na mente preocupada. Sabia quanto custara ao moço renunciar à mulher escolhida. Conhecialhe o temperamento enigmático e receava tornar a vê-lo atormentado e vencido...
O pensamento em prece escapava-lhe da cabeça, como tênue esguicho de luz.
Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe forças calmantes, que lhe sossegaram o coração.
Em seguida, o orientador no-la apresentou, generoso:
– Nossa irmã Minervina é velha conhecida. Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem sabido conduzir, admiravelmente.
Coração abnegado, alma rica de fé.
Abraçamo-la, carinhosamente, às despedidas. De regresso, reparando que estávamos desejosos de seguir Mário Silva para obter maiores informes, no desenvolvimento de nossa história que começava a ser fascinante, o Ministro recomendou:
– Não convém incomodar nossos amigos no curso das obrigações diuturnas, provocando elucidações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. Aguardemos a noite, porque enquanto o corpo físico se refaz a alma invariavelmente procura o lugar ou o objeto
a que imanta o coração.
Ouvimos o orientador e aquietamo-nos.
Cabia-nos aguardar a noite, quando se estenderiam as nossas experiências.