quinta-feira, 22 de julho de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 17- ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



17 – Recuando no Tempo

Depois do nosso esforço de autocondensação, para o necessário ajuste vibratório, Clarêncio abeirou-se dos dois amigos, com o amoroso poder que lhe era característico, e, em nos reconhecendo, Mário associou-nos a presença ao pesadelo da véspera e passou a clamar:
– Meu caso não é com a polícia!... Não precisamos de qualquer delegado aqui!...
– Acalma-te, amigo! – respondeu o Ministro, atencioso. – Não somos quem julgas. Estamos aqui para que te lembres... É indispensável te recordes.
E, situando a destra na fronte do enfermeiro, reparamos que Mário Silva aquietava-se, de repente.
O semblante dele acusou estranha metamorfose.
Afigurou-se-nos mais elegante, mais jovem.
Abriu desmesuradamente os olhos, depois de alguns momentos, e exclamou, semi-aterrado:
– Ah! agora!... agora me lembro!... Meu agressor de ontem é Leonardo Pires... Como poderia esquecê-lo assim tão infantilmente?
Como não rememorar? Disputávamos a mesma mulher...
Achávamo-nos em Luque, quando conheci a cantora e bailarina admirável... Lola Ibarruri! Quem senão ela poderia oferecer-me o bálsamo do esquecimento? Realmente fiz tudo para separá-los...
Ele não era o tipo de homem capaz de fazê-la feliz! Lola trazia consigo a beleza, a juventude e a arte reunidas e eu carregava no peito o esquife dos sonhos mortos... Deu-me o repouso de que minhalma necessitava... restaurou-me. Mas... que domingo terrível aquele da praça embandeirada, em Piraju!... Deslocavam-se as forças para a caça ao inimigo... Imaginava, porém, a melhor maneira de reencontrar a mulher querida e, naquela manhã de terrível memória, consegui a simpatia de Frei Fidélis, antes da missa... O caridoso capuchinho auxiliar-me-ia, advogando-me a causa... Lola
não deveria movimentar-se, entretanto, poderia, por minha vez, tornar à retaguarda!... Os maiorais eram meus amigos!... Obteria, por isso, o favor do Príncipe!... Arquitetava meus planos, quando encontrei Leonardo... Não supunha conhecesse ele a deserção da companheira e procurei agradá-lo, aceitando-lhe a companhia... O suculento repasto exigia algum trago de vinho e Pires não hesitou,
ministrando-me o veneno que trazia às ocultas!... Ah! bandido!
bandido!...
Mário levou as mãos à garganta, como se registrasse enorme sofrimento e caiu, desamparado, gemendo de dor.
O Ministro, paciente, aplicou-lhe recursos magnéticos balsamizantes e o rapaz levantou-se, aturdido.
Amaro, que se mostrava igualmente transtornado, acompanhava a cena com manifesta aflição.
Clarêncio ajudou o enfermeiro a firmar-se de novo sobre os pés e perguntou, concitando-o a relembrar:
– Por que razão te afeiçoaste à cantora, com tamanho desvario?
Porque não atendeste aos avisos da consciência, que, decerto, te rogava não despertasses o ódio naquele que te aniquilaria o corpo físico?
Apresentando a expressão de um louco, Mário desferiu desconcertante gargalhada e bradou:
– Porque amei Lola Ibarruri? Porque não tive escrúpulos em arrebatá-la ao companheiro que a retinha nos braços?
Nosso instrutor afagava-lhe a cabeça com o evidente intuito de reavivar-lhe a memória.
– Ah! sim!... – prosseguiu Mário Silva, alarmado – ausentei-me de Assunção com o espírito irremediavelmente desiludido...
De olhar vagueante, como se surpreendesse o passado ao longe, nos recôncavos da noite, continuou:
– Nos arredores da formosa capital paraguaia, construíra minha casa e era feliz!... Lina era o tesouro de meu coração... Minha amiga e minha esposa, minha esperança e minha razão de ser...
Descendente de uma das famílias de Mato Grosso aprisionadas pelo inimigo, na invasão de dezembro de 1864, encontrei-a sem parentes, asilada por respeitável família, que a adotara por filha estremecida!... Ah! quando lhe fitava os olhos claros e doces,
sentia-me transportado a céus imensos... Era tudo o que a mocidade ideara de mais lindo para o meu coração... Nela encontrava a divina novidade de cada dia e, apesar das vicissitudes da guerra, mergulhávamo-nos ambos na rósea corrente dos mais belos sonhos...
O próprio Marquês de Caxias conheceu-a e animou-nos a união... Foi assim que, em janeiro de 1869, quando a trégua nos atingira, um sacerdote consagrou-nos o casamento... O Conselheiro Paranhos prometeu ajudar-nos, tão logo regressássemos ao
Brasil, para que o nosso consórcio fosse devidamente festejado...
Vivíamos tranqüilos, como duas aves entrelaçadas no mesmo ninho, quando tive a desgraça de levar ao nosso templo doméstico dois companheiros de trabalho e de ideal... Armando e Júlio...
Sim, seriam eles amigos ou abutres? Sei apenas que Lina e eles se fizeram íntimos em pouco tempo... Com a desculpa de aliviarem os sofrimentos da campanha, os dois passaram a gastar, em nosso pequeno santuário de ventura, todo o tempo que lhes era disponível.
Descansava minhalma na confiança sincera, até que um dia...
O semblante do narrador alterou-se, de súbito. Esgares de amargura modificaram-lhe a feição.
Imprimindo à voz lúgubre acento, continuou, atormentado:
– Até que, um dia, encontrei Lina e Júlio abraçados um ao outro, como se o tálamo conjugal lhes pertencesse.
Cravou em nós o olhar agora coruscante e terrível e acrescentou:
– Compreenderão, acaso, a dor do homem que se vê irremissivelmente atraiçoado pela mulher em que se apóia para viver?
Entenderão o incêndio que lavra no espírito flagelado de quem, num minuto, vê destruídas as esperanças da vida inteira?... Tudo é treva para quem carrega consigo mesmo o carvão dos enganos mortos! Não quis acreditar no que via e interpelei a mulher amada...
Lina, porém, atirou-me em rosto o mais frio desprezo...
Afirmou, rudemente, que não podia amar-me, senão como irmã que se compadece de um companheiro necessitado, que me desposara simplesmente para fugir às humilhações que experimentava numa terra estrangeira e que eu, efetivamente, deveria desaparecer...
Envergonhado, invoquei a proteção de superiores amigos e fugi de Assunção... Eu era, contudo, um homem diferente... A segurança de caráter que cultivava, brioso, fora abalada nos alicerces...
Viciei-me... Confiei-me ao álcool e ao jogo... Do militar responsável, desci à condição de aventureiro infeliz... Foi assim que encontrei Lola e Leonardo e não hesitei em exterminar-lhes a felicidade... É muito difícil albergar respeito aos outros, quando fomos pelos outros desrespeitados.
Valendo-se da pausa que se evidenciava, espontânea, Clarêncio indagou:
– E nunca recebeste notícias da esposa?
Mário Silva, reconduzido à personalidade de Esteves pela influência magnética, exibiu sarcástico sorriso e informou:
– Lina, que passei a odiar, era demasiado cruel. Achava-me não longe de Assunção, depois de três meses sobre a mágoa terrível que me fora assacada, quando vim a saber que Júlio fora igualmente escarnecido por ela. Certo dia, de volta ao lar, encontrou-a nos braços de Armando, o outro amigo que parecia consagrar-nos estima fraternal. Menos forte que eu mesmo, Júlio esqueceu-se do revés com que me dilacerara, semanas antes, e, cego de absorvente afeição, ingeriu grande dose de corrosivo... Socorrido a tempo, na caserna, conseguiu sobreviver, mas, incapaz de suportar os males corpóreos decorrentes da intoxicação, depois de alguns dias embebedou-se deliberadamente e arrojou-se às águas do Paraguai, aniquilando-se, enfim... Depois disso, nada mais soube. A morte aguardava-me em Piraju... O destino marcara-me, impiedoso...
Mário fixou desagradável carantonha e acentuou:
– Sou um poço de fel. Não posso modificar-me... Haverá paz sem justiça e haverá justiça sem vingança?
Nosso orientador ergueu a voz calmante e considerou, generoso:
– É necessário esquecer o mal, meu amigo. Sem aquela atitude de perdão, recomendada pelo Cristo, seremos viajores perdidos no cipoal das trevas de nós mesmos. Sem amor no coração, não teremos olhos para a luz.
Silva dispunha-se a responder, entretanto, Amaro fizera ligeiro movimento e mostrou-se-nos singularmente renovado. Seu veículo espiritual parecia haver regredido no tempo. Revelava-se mais leve e mais ágil e sua face impressionava pelos traços juvenis.
Buscou aproximar-se do enfermeiro num gesto natural de cordialidade, todavia, em lhe observando o rosto metamorfoseado, o antagonista bradou entre o ódio e a angústia:
– Armando! Armando! ... Pois és tu? O Amaro que hoje detesto é o mesmo Armando de ontem? Onde me encontro? Enlouqueci, porventura?...
Instruindo-nos, cuidadoso, Clarêncio falou, rápido:
– Não precisei despender grande esforço para que a memória de Amaro tornasse ao pretérito. O sofrimento reparador conferiulhe à mente e à sensibilidade recursos novos. Bastou-me tocá-lo de leve, para que aproveitasse a digressão do antigo companheiro, recuperando as recordações da época em estudo...
O esposo de Zulmira procurava estender braços amigos ao adversário que o contemplava, galvanizado de assombro; contudo, recuando, de repente, como animal ferido, Mário gritou em desespero:
– Não, não! não te acerques de mim! Não me provoques, não me provoques!...
O Ministro, no entanto, situando-se entre os dois, pediu, comovidamente:
– Tenhamos calma! Respeitemo-nos uns aos outros!
E, dirigindo-se particularmente ao enfermeiro, determinou, sem afetação:
– Agora, é o momento de nosso amigo. Comentaste o pretérito à vontade. É indispensável que Amaro fale por sua vez. A justiça, em qualquer solução, deve apreciar todas as partes interessadas.
Contido pela força moral da advertência, Mário calou-se e, voltados então para o ferroviário, que se fizera mais simpático pela serenidade de que se investira, continuamos à escuta.