quinta-feira, 5 de agosto de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 18 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



18 – Confissão

Amaro, cujo semblante exibia os sinais de renovação a que nos reportamos, começou a dizer, comovido:
– Sim, recordo-me perfeitamente... A madrugada do Ano Bom de 1869 ficou marcada para sempre em nossa memória...
Abordaríamos Assunção, procedendo de Santo Antônio, em angustiosa expectativa... A curiosidade abafava a exaustão... Lembro-me de que, antecedendo-se ao desembarque, Esteves procurou-nos, solicitando-nos o concurso fraterno para a solução de um
problema que reputava importante para o futuro que o aguardava...
Éramos três amigos inseparáveis na caserna e achávamo-nos os três juntos... Ele, Júlio e eu... Na incerteza das ocorrências que nos esperavam, pedia-nos, na hipótese de perecer em combate, notificar sua morte à jovem Lina Flores, que conhecera, dias
antes, em Villeta... Referiu-se, entusiástico, ao amor que os ligava e aos projetos que formavam, considerando o porvir... Preocupados com a aflição do companheiro, reconfortamo-lo com palavras de compreensão e esperança, colocando-nos em guarda... A capital paraguaia, porém, revelava-se fatigada e desprevenida... Jamais
olvidarei a gritaria dos nossos, triunfantes, em se vendo seguros sobre a presa, criando aflitivos problemas para as autoridades...
Revejo ainda a fisionomia risonha de Esteves, quando se reconheceu são e salvo... Em breve, comunicava-nos o consórcio.
Ninguém realmente podia casar-se em campanha, mas o enlace efetuou-se às ocultas, sob a bênção de um sacerdote e com a tolerância dos dirigentes da ocupação, atendendo-se à circunstância de que a noiva era uma pobre menina brasileira, desde muito aprisionada...
Amaro fez pequena pausa, recobrando energias e continuou:
Recordo-me de que Júlio e eu fomos em visita ao lar de Esteves, pela primeira vez, em fevereiro do mesmo ano, contudo, colocados à frente de Lina, ambos nos sentimos incompreensivelmente ligados àquela jovem bela e simples, cuja presença exerceu, de imediato, sobre nós, intraduzível atração... Guardei comigo a surpresa que me possuía, mas Júlio, impulsivo e irrequieto, veio a mim extravasando o coração... A esposa de Esteves dominara-lhe a mente, de súbito... Se pudesse haver chegado,
antes do companheiro – acentuava enamorado –, não lhe cederia o lugar... Sustentava a impressão de que Lina já lhe havia surgido em sonhos... E, desse modo, várias vezes repetiu confidências que me tocavam as fibras mais íntimas. Anotando-lhe o estado d'alma e reconhecendo o direito de Esteves sobre a mulher que desposara,
tentei retrair-me... Calquei o sentimento e procurei o olvido necessário... A paixão de Júlio era demasiado forte para resignarse.
Insinuou-se junto à recém-casada, cobriu-a de gentilezas e, provavelmente, quem sabe? Nas vicissitudes da guerra e quase criança para guardar-se, como era preciso, nas responsabilidades do casamento, Lina envolveu-se nas atenções do rapaz, fazendolhe concessões... Recordo-me do dia em que Esteves me procurou, desolado, comentando o golpe que recebera... Chorou debruçado nos meus ombros. Desejava desaparecer, aniquilar-se... Fiz-lhe observar, porém, a inoportunidade de qualquer violência... Enfermeiro bem conceituado e protegido do Conselheiro Silva Paranhos,
nosso embaixador em missão extraordinária, junto às Repúblicas do Prata, não lhe seria difícil a retirada de Assunção...
Assim aconteceu. Esteves afastou-se, primeiramente rio abaixo, na direção de Villeta, de onde havia trazido a esposa e onde se achavam, retardados, alguns camaradas enfermos, aos quais prestaria assistência... Nada mais soube dele, a não ser que havia morrido misteriosamente em Piraju...
Evidenciando enorme padecimento moral, diante daquelas evocações, Silva estremeceu e, aproveitando o intervalo que se fizera, bradou, agoniado:
– E a tua participação no infortúnio de minha casa? quem me convencerá de que também não te achavas de parceria com Júlio, na destruição de minha felicidade? Infames!..
Clarêncio, afetuoso, acomodou o enfermeiro irritado, recomendando-lhe esperar a narração, até o fim.
Amaro não perdera a calma.
Assinalou a objurgatória do adversário, fixando triste sorriso, e continuou:
– Sim, minha confissão deve ser exata e completa... Entendendo que Lina e Júlio se haviam ajustado para a vida comum, tentei distanciar-me... Temia por mim mesmo. Lina, no entanto, como que me registrava a inclinação imanifesta... Deitava-me
olhares que me acordavam, simultaneamente, para a alegria e para a dor. Queria aproximar-me e fugir dela, ao mesmo tempo... A princípio, tentei evitá-la; contudo, o afastamento do Marquês de Caxias deixava as tropas com larga provisão de tempo para diversões...
Instado talvez pela companheira, Júlio constrangia-me a freqüentar-lhe a casa. O jogo alegre e o chá saboroso reuniam-nos os três, noite a noite... Amedrontado, ante o sentimento que a moça despertava em meu coração, não somente porque não devia
perturbar-lhe a harmonia doméstica, mas também porque possuía uma noiva no Brasil, busquei isolar-me, de novo... Reparando, todavia, o assédio de Lina, resolvi asilar-me no trabalho mais intenso e consegui a designação para servir na vigilância noturna do Palacete Resquin, onde a ocupação concentrava todos os assuntos
e documentos de interesse do nosso País... Ela, entretanto, não desistiu do propósito de que se animava. Certa noite, procurou-me, disfarçada em mulher do povo... A sós comigo, confessou-se... Declarava-se atormentada, aflita... Sentira-se amada por Esteves e via-se ardentemente querida por Júlio, mas não pudera
interessar-se pela felicidade junto deles, odiando-os por fim...
Amaro confiou-se a longa pausa e continuou:
– Quem poderá explicar os enigmas do coração humano?
Quem possuirá bastante visão para surpreender os caminhos da alma? Incapaz de dominar-me, cometi a falta de assumir um compromisso espiritual que não me competia... Lina agarrou-se ao meu afeto com o vigor da hera numa construção sem defesa... E foi assim que, em certa manhã de maio, meu companheiro encontrou-nos juntos... Desesperado, Júlio ingeriu grande quantidade de corrosivo, mas, amparado suficientemente, foi salvo... Debalde, porém, submeteu-se ao tratamento na caserna. Adquiriu estranhos padecimentos da garganta e do esôfago e, não sabendo como
suportar as provações físicas e morais, arrastou-se, um dia, até às águas do Paraguai, supondo encontrar na morte a paz que procurava...
Experimentando pesados remorsos, por minha vez perdi a afeição que me algemava à mulher que nos atraíra e infelicitara e fugi dela, fugi incorporando-me às tropas que combateriam os derradeiros remanescentes de Solano López, na Cordilheira...
Prometi-lhe a volta, todavia, terminada a luta, tornei à pátria por outros caminhos, decidido a jamais reencontrá-la...
Amaro, mais comovido, passou a destra pelo rosto e prosseguiu, depois de breve pausa:
– Dez anos correram, apressados... Novamente no Rio, caseime e fui feliz... Numa noite de chuva forte, minha esposa e eu tornávamos do teatro, quando os cavalos em disparada colheram pobre mulher embriagada na via pública... O cocheiro sofreou os
animais e desci a socorrê-la... E enquanto minha companheira continuava o trajeto para a casa, procurei internar a mísera criatura para a assistência imediata... Guardas e populares auxiliaram-me a empresa, mas com inesquecível assombro, quando a mulher foi recolhida ao leito, de ventre rasgado a esvair-se em sangue, nela identifiquei Lina Flores... Por dois dias lutou contra a morte...
A infeliz reconheceu-me, relacionou as desditas que atravessara, desde que se viu sozinha no Paraguai, esclareceu que viera ao Rio à minha procura e emocionou-me com a narração do drama angustioso em que vivia, tentando a recuperação da felicidade
que perdera para sempre... Morreu revoltada e sofredora, amaldiçoando o mundo e as criaturas...
Amaro interrompeu-se, titubeante.
Mário Silva, estupefato, fixava-o, entre o desespero e o pavor.
Notava-se que o ferroviário esforçava-se, em vão, para reaver novas faixas da memória.
Nosso instrutor, contudo, afagou-lhe a fronte, envolvendo-o em renovadas forças magnéticas, e perguntou:
– Onde voltaste a vê-la?
O interpelado esboçou o sorriso de quem recolhera a resposta em si mesmo e informou:
– Ah! sim... reencontrei-a na vida espiritual. Achava-se unida a Júlio em aflitivas condições de sofrimento depurador... Compreendi a extensão de meu débito e prometi ressarci-lo... Ampará-losia...
Auxiliaria os dois na senda terrestre... Lutaríamos, lado a lado, para conquistar a coroa de redenção... Sim, sim, o destino!...
É preciso solver os compromissos do passado, conquistando o futuro!...
Calou-se o esposo de Zulmira, visivelmente fatigado, mas o enfermeiro, não obstante contido pela força paternal de Clarêncio, começou a chamar por Júlio emitindo brados terríveis.