segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

SEMANA - ESTUDO DO EVANGELHO CAPÍTULO 16 ÍTEM 4 - MARIA J. CAMPOS



FONTE BÁSICA

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.

NÃO SE PODE SERVIR A DEUS E A MAMON

Jesus em Casa de Zaqueu

1. Como podemos interpretar a excessiva curiosidade de Zaqueu em ver Jesus?
Sabendo da natureza dos ensinamentos de Jesus – baseados na justiça fazia de sua vida e de sua riqueza; e, desejoso de dar a ambas um novo sentido, buscava encontrar o Mestre.

A consciência de Zaqueu o acusava do mau uso da riqueza, e ele buscava em Jesus a força para redimir-se. A riqueza é a mais difícil das provas, porque favorece o desenvolvimento das paixões e bloqueia o sentimento da fraternidade, entravando o progresso das criaturas.

2. De que modo agiu Jesus em relação a Zaqueu?
Aproximou-se dele espontaneamente e pediu-lhe hospedagem em sua casa, facilitando assim o encontro com aquele que tanto desejava conhecê-lo.

Assim como se colocou diante de Zaqueu, Jesus também está permanentemente diante de nós, à espera de que o procuremos para dar novo sentido anosa vida.

3. Por que as pessoa que presenciaram o fato criticaram a decisão de Jesus de hospedar-se em casa de Zaqueu?
Porque Zaqueu, conforme foi visto antes sendo um publicano,era considerado pelos judeus como uma pessoa de má vida, indigno, portanto, de receber a visita do Mestre.

Jesus buscava a companhia dos errados, para auxiliá-los no caminho da própria salvação. “(...) O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido.”

4. Qual a atitude de Zaqueu, durante o encontro com Jesus?
Ele reconheceu que seus bens seriam de grande valia para os necessitados e arrependeu-se dos prejuízos que havia causado a outrem, dispondo-se a repará-los generosamente.

“Senhor, dou a metade dos meus bens aos pobres e, se causei dano a alguém, seja no que for, indenizo-o com quatro tantos”.

5. O que mudou na vida de Zaqueu, a partir do seu encontro com o Mestre?
O destino que ele passou a dar à sua própria vida, pois antes cuidava apenas dos próprios interesses e de acumular bens, passando depois a reparar as faltas cometidas e a dividir sua riqueza com os necessitados.

Quando alguém se encontra com o Mestre e lhe abre o coração aos sentimentos, não pode mais viver como vivia antes, mas torna-se um novo homem, no amor e na caridade.

6. Qual o sentido da palavra “salvação”, usada por Jesus?
Jesus referia-se ao esclarecimento que lograra alcançar o espírito de Zaqueu e à caminhada em direção ao Reino de Deus, através do auxilio ao próximo.

“Esta casa recebeu hoje a salvação, porque também este é filho de Abrão”.

7. O que nos ensina a lição de hoje?
Que a riqueza tanto pode ser causa de atraso como de elevação espiritual, conforme a destinação que lhe dermos.

A riqueza não constitui um mal em si mesma; é o uso que dela se faz que a torna motivo de queda ou oportunidade de elevação espiritual.

Conclusão:

A riqueza tanto pode ser motivo de atraso – quando seu detentor a utiliza apenas em proveito próprio -, como ocasião de progresso espiritual – quando é colocada a serviço do próximo.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 34 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



34 – Em Tarefa de Socorro

Na noite do dia seguinte, fomos inesperadamente visitados por Odila, que nos pedia socorro.
A preocupada amiga, agora ciente do drama escuro que se desenrolara no passado próximo para melhor entender as inquietudes do presente, compreendia as necessidades de Amaro e Júlio, aos quais amava por esposo e filho do coração, e rogava assistência para Zulmira, novamente acamada.
Atendendo a apelos de Evelina, tornara ao ambiente doméstico para soerguer o bom ânimo daquela que a sucedera na direção do lar e voltara, aflita.
Arrojara-se Zulmira a profundo abatimento.
Recusava remédio e alimentação.
Enfraquecia assustadoramente.
Sabia agora que a permanência dela no mundo e na carne se revestia de excepcional importância para o seu grupo familiar e, atenta a isso, continuava intercedendo.
A rápida informação da mensageira impressionava e comovia pelo tom de amorosa aflição em que era vazada.
Não nos delongamos na resposta.
Era mais de meia-noite, na cidade, quando atravessamos a porta acolhedora da casa do ferroviário que, desde muito, constituía para nós valioso ponto de ação.
A dona da casa, de pensamento fixo nas derradeiras cenas da morte do pequenino, jazia no leito em prostração deplorável.
Emagrecera de modo alarmante.
Fundas olheiras roxas contrastavam com a acentuada palidez do rosto desfigurado.
Recaíra na introversão em que a conhecêramos. Rememorava o afogamento do pequeno enteado e, longe de saber que o retivera nos braços como filho abençoado de sua ternura, sentia-se na condição de ré infortunada no banco da justiça.
Decerto – pensava, agoniada –, sofria a punição divina. Aquela morte do pequeno, quando tudo fazia crer que ele cresceria para a ventura do lar, correspondendo-lhe à expectativa, era dolorosa pena imposta ao seu maternal coração. Ah! devia ter sido pronunciada perante os juizes da Sabedoria Celeste. No mundo, ninguém lhe conhecia o remorso de guardiã invigilante e cruel, mas fora sem dúvida identificada pelos tribunais de mil olhos do Direito Incorruptível. Não amparara convenientemente o filhinho de Odila, relegando-o a intencional abandono... Agora, perdia inexplicavelmente o rebento que lhe definia a esperança no grande futuro. Valeria erguer-se e disputar aquilo que para ela representava a dor de viver? Reconhecia-se esmagada. O complexo de culpa retomara-lhe o cérebro e enfermara-lhe o coração.
Reparamos que diversos medicamentos se alinhavam à cabeceira, mas nosso instrutor examinou-os, auscultou a doente e informou:
– O remédio de Zulmira é daqueles que a farmácia não possui.
Virá dela mesma. Precisamos refazer-lhe a esperança e o gosto de viver. Descontrolou-se-lhe, de novo, a mente. Desinteressou-se da luta e a abstenção de alimentos acarreta-lhe a inanição progressiva.
– E o reencontro com o filhinho? – perguntou Hilário – não seria o melhor processo de restaurar-lhe o bom ânimo?
– É o que esperamos – concordou o Ministro –; todavia, Júlio, na fase que atravessa, requisita, pelo menos, uma semana de absoluto repouso e, até lá, é indispensável entreter-lhe as energias.
Em seguida, Clarêncio entrou em ação, aplicando-lhe recursos magnéticos, com o nosso humilde concurso.
A tensão nervosa de Zulmira, porém, atingira o apogeu e apenas conseguimos sossegá-la, de alguma sorte, sem conduzi-la ao sono reparador que seria de desejar.
Odila, fortalecida, tomava-a aos seus cuidados, quando fomos defrontados por imprevisto fenômeno.
Mário Silva, desligado do corpo denso, com a rapidez de um relâmpago, penetrou o quarto, de olhos esgazeados, à maneira de louco, contemplou a doente por alguns instantes e afastou-se.
Volvemos nossa indagadora atenção para o Ministro, que esclareceu, sem detença:
– É sabido que o criminoso habitualmente volta ao local do crime. O remorso é uma força que nos algema à retaguarda.
E porque nos inclinássemos à procura do visitante inesperado, o instrutor aquietou-nos, recomendando:
– Aguardemos. Mário voltará.
Com efeito, Silva, depois de alguns minutos, regressou ao aposento.
Com a mesma expressão de dementado, fixou a pobre enferma e, dessa vez, rojou-se de joelhos, exclamando:
– Perdão! perdão!... sou um assassino! um assassino!...
Levantamo-nos, instintivamente, com o propósito de socorre-lo, mas tocado de longe pela nossa influência magnética, qual se fora alcançado por um raio, o enfermeiro projetou-se para fora.
– Infortunado amigo! – falou o Ministro, contristado. – Sofre muito. Ajudemo-lo a soerguer-se.
Num átimo, ganhamos o domicílio de Mário. encontrando-o em pesadelo aflitivo, contido no leito à custa de poderosos anestésicos.
Com surpresa para nós, uma freira desencarnada rezava, junto dele.
Interrompeu as preces, a fim de saudar-nos, acolhendo-nos com simpatia.
– Estava certa – disse delicada e confiante – de que Nosso Senhor nos enviaria o socorro justo. Desde algumas horas, ocupo aqui o serviço de vigilância. A posição do nosso amigo – e indicou Mário estendido na cama – é francamente anormal e temo a intromissão de Espíritos diabólicos.
Clarêncio assumiu o aspecto de simples visitante, vulgarizando-se ao olhar da religiosa, que se sentia evidentemente encorajada com a nossa presença.
– É enfermeira? – perguntou nosso instrutor, cortês.
– Não sou propriamente do serviço de saúde replicou a interpelada –, mas colaboro no hospital onde Silva trabalha.
Fitou o moço semi-adormecido e aduziu, piedosa:
– É um cooperador devotado às crianças doentes e a cuja assiduidade e carinho muito passamos a dever.
E, numa linguagem genuinamente católica romana, rematou:
– Muitas almas benditas tem descido do Céu para testemunhar-lhe agradecimento. Isso tem acontecido tantas vezes que, com alguns médicos e assistentes, fez credor das melhores atenções de nossa Irmandade.
Usando o tato que lhe era característico, nosso orientador indagou:
– Como soube a irmã que o nosso amigo se achava assim tão conturbado?
– Não recebemos qualquer notificação direta, contudo, ele não compareceu hoje às tarefas habituais e isso foi suficiente para indicar-nos que algo de grave estava acontecendo. Nossa superiora designou-me para verificar o que havia. Desde então, estou presa, de vez que não supunha a existência de tantos Espíritos das trevas na vizinhança.
A palavra da freira saturava-se de tanta bondade espontânea e evidenciava uma fé pura tão encantadoramente ingênua, que a curiosidade me espicaçou o íntimo. A tentação de pesquisar o fascinante problema daquele caridoso esforço assistencial me constrangia a interferir no assunto, mas um olhar de Clarêncio bastou para que Hilário e eu nos mantivéssemos em respeitoso silêncio.
– É comovente pensar na sublimidade de sua missão, depois de ausentar-se do corpo terrestre – falou o Ministro, bondoso, talvez provocando alguma elucidação direta, capaz de satisfazernos.
– Sim, trabalhamos sob a direção de Madre Paula – informou a interlocutora, sincera –, que nos explica ser a enfermagem nas casas públicas de tratamento uma forma de purgatório benigno, até que possamos merecer novas bênçãos de Deus.
– Mas, irmã, vê-se de pronto que o seu coração está comungando a paz do Senhor.
Ela baixou humildemente os olhos e ponderou:
– Não penso assim. Sou uma pobre religiosa, em trabalho para resgatar os próprios pecados.
No leito, Mário gemia inquieto.
O Ministro pareceu despreocupar-se da palestra de ordem pessoal e passou a afagar a fronte do enfermo, dando-nos a idéia de que só ele devia atrair-nos o interesse.
A freira acercou-se respeitosamente de nosso instrutor e disse, calma:
– Irmão, Madre Paula costuma dizer-nos que os ouvidos de Deus vivem no coração das grandes almas. Estou certa de que escutastes minhas rogativas. Tenho-vos por emissários da Corte Celeste. Acredito que, desse modo, me compete a obrigação de confiar-vos nosso doente.
Clarêncio agradeceu o carinho que transparecia daquelas palavras e expôs que a nossa passagem por ali era rápida, o bastante para ministrar o socorro preciso.
A interlocutora encareceu a necessidade de comunicar-se com o hospital, quanto ao cooperador em agitada prostração, e, prometendo voltar em breves minutos, ausentou-se à pressa.
A sós conosco, o orientador, embora de atenção ligada ao enfermeiro, explicou, atenciosamente:
– Nossa irmã pertence à organização espiritual de servidores católicos, dedicados à caridade evangélica. Temos diversas instituições dessa natureza, em cujos quadros de serviço inúmeras entidades se preparam gradualmente para o conhecimento superior.
– Sob a direção de autoridades ainda ligadas à Igreja Católica?
– perguntou Hilário, admirado.
– Como não? Todas as escolas religiosas dispõem de grandes valores na vida espiritual. Como acontece à personalidade humana, as crenças possuem uma região clara e luminosa e uma outra ainda obscura. Em nossa alma, a zona lúcida vive alimentada pelos nossos melhores sentimentos, enquanto que, no mundo sombrio de nossas experiências inferiores, habitam as inclinações e os impulsos que ainda nos encadeiam à animalidade. Nas religiões, o campo da sublimação está povoado pelos espíritos generosos e liberais, conscientes de nossa suprema destinação para o bem, ao passo que, nas linhas escuras da ignorância, ainda enxameiam as almas pesadas de ódio e egoísmo.
E, sorrindo, o Ministro acentuou:
– Achamo-nos em evolução e cada um de nós respira no degrau em que se colocou.
– Ela, porém, terá penetrado a verdade com que fomos surpreendidos, depois da morte? – perguntei, intrigado.
– Cada Inteligência – respondeu o orientador, enigmático – só recebe da verdade a porção que pode reter.
Silva, no leito, dava inequívocos sinais de enorme angústia.
Não ignorava que o meu dever de assisti-lo era trabalho inadiável, todavia o encanto espiritual da religiosa singularmente arraigada aos hábitos terrestres me excitava de tal maneira a curiosidade que não pude conter a indagação espontânea.
– Mas essa freira sabe que deixou o mundo, sabe que desencarnou e prossegue, assim mesmo, como se via antes?
– Sim – confirmou o instrutor imperturbável.
– E estará informada de que a vida se estende a outras esferas, a outros domínios e a outros mundos? Perceberá que o céu ou o inferno começam de nós mesmos?
O orientador meneou a cabeça, dando mostras de negativa e acrescentou:
– Isso não. Ela não oferece a impressão de quem se libertou do círculo das próprias idéias para caminhar ao encontro das surpresas de que o Universo transborda. Mentalmente, revela-se adstrita às concepções que elegeu na Terra, como sendo as mais convenientes à própria felicidade.
– E ninguém a incomoda aqui por viver assim distante do conhecimento real do caminho?
O orientador assumiu feição mais carinhosamente paternal para comigo e ajuntou:
– Antes de tudo, deve nossa irmã merecer-nos a maior veneração pelo bem que pratica e, quanto ao modo de interpretar a vida, não podemos esquecer que Deus é Nosso Pai. Com a mesma tolerância, dentro da qual Ele tem esperado por nossa mais elevada compreensão, aguardará um melhor entendimento de nossa amiga. Cada Espírito tem uma senda diversa a percorrer, assim como cada mundo tem a rota que lhe é peculiar.
E, fixando-me com particular atenção, observou:
– A maior lição aqui, André, é a da sementeira que produz, inevitável. Mário Silva, na posição de enfermeiro, não obstante a ruinosa impulsividade em que se caracteriza, tem sido prestimoso e humano, tornando-se credor do carinho alheio. Segundo vemos, não é um homem devotado às lides religiosas. É irritável e agressivo.
De ontem para hoje, chega a sentir-se criminoso... Entretanto, é correto cumpridor dos deveres que abraçou na vida e sabe ser paciente e caridoso, no desempenho das próprias obrigações. Com isso, granjeou a simpatia de muitos e encontramo-lo fraternalmente guardado por uma freira reconhecida...
O ensinamento era efetivamente comovedor. Dispunha-me a prosseguir no comentário, contudo Silva começou a gemer e o Ministro, inclinando-se para ele, demorou-se longo tempo a auscultá-lo.
Em seguida, Clarêncio reergueu-se e falou:
– Pobre amigo! permanece impressionado com a morte de Júlio, conservando aflitivo complexo de culpa. Tem o pensamento ligado ao pequenino morto, à maneira de imagem fixada na chapa fotográfica. Passou o dia acamado, sob extrema perturbação.
Observo que não foi à casa de Antonina, conforme previa. Sentiu se vencido, envergonhado... Entretanto, somente nossa irmã possui para ele o remédio indispensável...
Depois de pausa ligeira, indagamos se não nos seria possível socorrê-lo, de modo mais positivo, através de passes, ao que Clarêncio respondeu, seguro de si:
– O auxílio dessa natureza ampara-lhe as forças, mas não resolve o problema. Silva deve ser atingido na mente, a fim de melhorar-se. Requisita idéias renovadoras e, no momento, Antonina é a única pessoa capaz de reerguê-lo com mais segurança.
Recordei instintivamente o drama que se desenrolara ao tempo da Guerra do Paraguai, parecendo-me ouvir, de novo, a narração do velho Leonardo Pires.
Assinalando-me o pensamento, o Ministro ponderou:
– Tudo na vida tem a sua razão de ser. Noutra época, Silva, na personalidade de Esteves, aliou-se a Antonina, então na experiência de Lola Ibarruri, para se afogarem no prazer pecaminoso, com esquecimento das melhores obrigações da vida. Atualmente, estarão reunidos na recuperação justa. Os que se associam na leviandade, à frente da Lei, acabam esposando enormes compromissos para o reajustamento necessário. Ninguém confunde os princípios que regem a existência.
Decidia-me a desfechar novas interrogações, mas Clarêncio, pousando afetuosamente o indicador sobre os meus lábios, recomendou:
– Cessa a curiosidade, André! Quando passamos a explanar sobre a Lei, nossa conversação adquire o sabor de eternidade, e a imposição de serviço nos condiciona ao minuto que passa.
E, indicando o enfermeiro excitado, anunciou:
– Na tarde de amanhã, voltaremos para conduzi-lo à residência de nossa irmã. Por intermédio de Antonina, habilitar-se-á para o indispensável reerguimento. Por agora, não podemos fazer mais.
Decorridos alguns instantes, a freira regressou à nossa presença, assistida por outra irmã, que nos cumprimentou com atenciosa reserva.
Ambas haviam sido designadas para a tarefa de auxílio ao cooperador doente. A congregação encarregar-se-ia de todos os trabalhos de vigilância e enfermagem espiritual, enquanto Silva assim permanecesse.
Depois de breve diálogo, saudamo-las com respeitosa cordialidade e nos retiramos, com a promessa de voltar no dia seguinte.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO NOSSO LAR - CAPÍTULO 50 - JULIANA SOLARE



Cidadão de "NOSSO LAR"

Na segunda noite, sentia-me cansadíssimo. Começava a compreender o valor do alimento espiritual, através do amor e do entendimento recíprocos. Em "Nosso Lar", atravessava dias vários de serviço ativo, sem alimentação comum, no treinamento de elevação a que muitos de nós se consagravam. Bastava-me a presença dos amigos queridos, as manifestações de afeto, a absorção de elementos puros através do ar e da água mas ali não encontrava senão escuro campo de batalha, onde os entes amados se convertiam em verdugos. As meditações preciosas que a palavra de Clarêncio me sugerira, davam-me certa calma ao coração. Compreendia, finalmente, as necessidades humanas. Não era proprietário de Zélia, mas seu irmão e amigo. Não era dono de meus filhos e, sim, companheiros de luta e realização.
Recordei que a senhora Laura, certa feita, me afirmara que toda criatura, no testemunho, deve proceder como a abelha, acercando-se das flores da vida, que são as almas nobres, no campo das lembranças, extraindo de cada uma a substância dos bons exemplos, para adquirir o mel da sabedoria. Apliquei ao meu caso o proveitoso conselho e comecei recordando minha mãe. Não se sacrificara ela por meu pai, a ponto de adotar mulheres infelizes como filhas do coração? "Nosso Lar" estava repleto de exemplos edificantes. A Ministra Veneranda trabalhava séculos sucessivos pelo grupo espiritual que lhe estava mais particularmente ligado ao coração. Narcisa sacrificava-se nas câmaras para obter endosso espiritual, de regresso ao mundo, em tarefa de auxílio. A senhora Hilda vencera o dragão do ciúme inferior. E a expressão de fraternidade dos demais amigos da colônia?
Clarêncio me acolhera com devotamento de pai, a mãe de Lísias me recebera como filho, Tobias como irmão. Cada companheiro de minhas novas lutas me oferecia algo de útil à construção mental diferente, que se erguia, célere, no meu espírito.
Procurei abstrair-me das considerações aparentemente ingratas que ouvia no ambiente doméstico e deliberei colocar acima de tudo o amor divino, e, acima de todos os meus sentimentos pessoais, as justas necessidades dos meus semelhantes.
No meu cansaço, procurei o apartamento do enfermo, cujo estado se agravava de momento a momento. Zélia amparava-lhe a fronte e dizia, banhada em lágrimas:
- Ernesto, Ernesto, tem pena de mim, querido! Não me deixes só! Que será de mim se me faltares?
O doente acariciava-lhe as mãos e respondia com imenso afeto, apesar da forte dispnéia.
Roguei ao Senhor energias necessárias para manter a compreensão imprescindível e passei a interpretar os cônjuges como se fossem meus irmãos.
Reconheci que Zélia e Ernesto se amavam intensamente. E, se de fato me sentia companheiro fraternal de ambos, devia auxiliá-los com os recursos ao meu alcance. Iniciei o trabalho procurando esclarecer os espíritos infelizes que se mantinham em estreita ligação com o enfermo. Minhas dificuldades, porém, eram enormes.
Sentia-me abatidíssimo.
Nessa emergência, lembrei certa lição de Tobias, quando me dissera: - "aqui, em 'Nosso Lar', nem todos necessitam do aeróbus para se locomoverem, porque os habitantes mais elevados da colônia dispõem do poder de volitação; e nem todos precisam de aparelhos de comunicação para conversar a distância, por se manterem, entre si, num plano de perfeita sintonia de pensamentos. Os que se encontrem afinados desse modo, podem dispor, à vontade, do processo de conversação mental, apesar da distância".
Lembrei quanto me seria útil a colaboração de Narcisa e experimentei.
Concentrei-me em fervorosa oração ao Pai e, nas vibrações da prece, dirigime a Narcisa encarecendo socorro. Contava-lhe, em pensamento, minha experiência dolorosa, comunicava-lhe meus propósitos de auxílio e insistia para que me não desamparasse.
Aconteceu, então, o que não poderia esperar.
Passados vinte minutos, mais ou menos, quando ainda não havia retirado a mente da rogativa, alguém me tocou de leve no ombro.
Era Narcisa que atendia, sorrindo:
- Ouvi seu apelo, meu amigo, e vim ao seu encontro.
Não cabia em mim de contentamento.
A mensageira do bem fixou o quadro, compreendeu a gravidade do momento e acrescentou:
- Não temos tempo a perder.
Antes de tudo, aplicou passes de reconforto ao doente, isolando-o das formas escuras, que se afastaram como por encanto. Em seguida, convidoume com decisão:
- Vamos à Natureza.
Acompanhei-a sem hesitação, e ela, notando-me a estranheza, acentuou:
- Não só o homem pode receber fluidos e emiti-los. As forças naturais fazem o mesmo, nos reinos diversos em que se subdividem. Para o caso do nosso enfermo, precisamos das árvores. Elas nos auxiliarão eficazmente.
Admirado da lição nova, segui-a, silencioso. Chegados a local onde se alinhavam enormes frondes, Narcisa chamou alguém, com expressões que eu não podia compreender.
Daí a momentos, oito entidades espirituais atendiam-lhe ao apelo. Imensamente surpreendido, via indagar da existência de mangueiras e eucaliptos. Devidamente informada pelos amigos, que me eram totalmente estranhos, a enfermeira explicou:
- São servidores comuns do reino vegetal, os irmãos que nos atenderam.
E, à vista da minha surpresa, rematou:
- Como vê, nada existe de inútil na Casa de Nosso Pai. Em toda parte, se há quem necessite aprender, há quem ensine; e onde aparece a dificuldade, surge a Providência. O único desventurado, na obra divina, é o espírito imprevidente, que se condenou às trevas da maldade.
Narcisa manipulou, em poucos instantes, certa substância com as emanações do eucalipto e da mangueira e, durante toda a noite, aplicamos o remédio ao enfermo, através da respiração comum e da absorção pelos poros.
O enfermo experimentou melhoras sensíveis. Pela manhã, cedo, o médico observou, extremamente surpreendido:
- Verificou-se esta noite extraordinária reação! Verdadeiro milagre da Natureza!
Zélia estava radiante. Encheu-se a casa de alegria nova. Por minha vez, experimentava grande júbilo n`alma. Profundo alento e belas esperanças revigoravam-me o ser. Reconhecia, eu mesmo, que vigorosos laços de inferioridade se haviam rompido dentro de mim, para sempre.
Nesse dia, voltei a "Nosso Lar" em companhia de Narcisa e, pela primeira vez, experimentei a capacidade de volitação. Num momento, ganhávamos grandes distâncias. A bandeira da alegria desfraldara-se em meu íntimo. Comunicando à enfermeira generosa minha impressão de leveza, ouvi-a esclarecer:
- Em "Nosso Lar", grande parte dos companheiros poderia dispensar o aeróbus e transportar-se, à vontade, nas áreas de nosso domínio vibratório; mas, visto a maioria não ter adquirido essa faculdade, todos se abstêm de exercê-la em nossas vias públicas. Essa abstenção, todavia, não impede que utilizemos o processo longe da cidade, quando é preciso ganhar distância e tempo.
Nova compreensão e novos júbilos me enriqueciam o espírito.
Instruído por Narcisa, ia da casa terrestre à cidade espiritual e vice-versa, sem dificuldade de vulto, intensificando o tratamento de Ernesto, cujas melhoras se firmaram, francas e rápidas. Clarêncio visitava-me, diariamente, mostrando-se satisfeito com o meu trabalho.
Ao fim da semana, chegara ao termo de minha primeira licença nos serviços das Câmaras de Retificação. A alegria tornara aos cônjuges, que passei a estimar como irmãos.
Era preciso, pois, regressar aos deveres justos.
A luz dormente e cariciosa do crepúsculo, tomei o caminho de "Nosso Lar", totalmente modificado. Naqueles rápidos sete dias, aprendera preciosas lições práticas no culto vivo da compreensão e da fraternidade legítimas. A tarde sublime enchia-me de magnos pensamentos.
Como é grande a Providência Divina! - dizia, a monologar intimamente.
Com que sabedoria dispõe o Senhor todos os trabalhos e situações da vida!
Com que amor atende a toda a Criação!
Algo, porém, me arrancou da meditação a que me recolhera. Mais de duzentos companheiros vinham ao meu encontro.
Todos me saudavam, generosos e acolhedores, Lísias, Lascínia, Narcisa, Silveira, Tobias, Salústio e numerosos cooperadores das Câmaras ali estavam. Não sabia que atitude assumir, colhido, assim, de surpresa. Foi, então, que o Ministro Clarêncio, surgindo à frente de todos, adiantou-se, estendeu-me a destra e falou:
- Até hoje, André, você era meu pupilo na cidade; mas, doravante, em nome da Governadoria, declaro-o cidadão de "Nosso Lar".
Por que tamanha magnanimidade se meu triunfo era tão pequenino?
Não conseguia reter as lágrimas de emoção que me embargavam a voz. E, considerando a grandeza da Bondade Divina, atirei-me aos braços paternais de Clarêncio, a chorar de gratidão e de alegria.

FIM

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

SEMANA - ESTUDO DO EVANGELHO CAPÍTULO 16 ÍTENS 1 e 2 - MARIA J. CAMPOS



FONTE BÁSICA

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.

FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO

Salvação dos Ricos

1. O que podemos entender com a frase de Jesus: “Ninguém pode servir a dois senhores”?
Que não podemos viver, simultaneamente, fascinados pelas coisas materiais e comprometidos com a salvação do espírito, pois é impossível conciliar dois princípios tão opostos entre si.

“Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará a outro, ou se prenderá a um e desprezará a outro”.

2. Qual o sentido da palavra “Mamon”?
O império das coisas materiais, dos prazeres desequilibrados, que obliteram os sentimentos de espiritualidade, únicos capazes de conduzir o homem à verdadeira felicidade.

“Jesus referia-se a tudo que nos prende à matéria e nos impede o avanço espiritual”.

3. Qual foi a primeira recomendação de Jesus ao moço que desejava adquirir a vida eterna?
A observância dos mandamentos: “Não matarás; não cometerás adultério; não furtarás; não darás testemunho falso. Honra a teu pai e a tua mãe e ama a teu próximo como a ti mesmo”.

A estrada da perfeição é longa e árdua. Para percorrê-la é necessário, inicialmente, a prática de pequenos gestos, que nos permitirão o exercício de grandes virtudes.

4. E a segunda recomendação feita por Jesus ao moço, qual foi?
Que se desfizesse dos bens materiais, os doasse aos pobres e o seguisse.

“Se queres ser perfeito, vai vende tudo o que tens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”.

5. Por que Jesus recomendou ao moço que se desfizesse da sua fortuna?
Certamente porque esta fortuna, utilizada apenas em proveito próprio, aprisionava-o, impedindo-o de praticar a caridade e afastado-o do único caminho que conduz á salvação.

A fortuna daquele jovem constituía-se em empecilho para o seu progresso espiritual;por isso, Jesus o aconselhou a desfazer-se dela. A verdadeira riqueza é a do espírito.

6. Então, não basta somente observar os mandamentos, para se obter a vida eterna?
A observância dos mandamentos é importante, mas quem já os cumpre – como era o caso do moço – necessita exercitar outras virtudes, para promover o aperfeiçoamento do espírito.

Não é Deus que exige do espírito a prática desta ou daquela virtude: é o próprio espírito que, movido pela lei do progresso, anseia por outras práticas que o levem á perfeição.

7. Nesta passagem, Jesus nos ensina a despojarmo-nos do que possuímos para obtermos a salvação?
Não. Jesus ensina o desapego dos bens materiais, mostrando-nos que nada na vida é mais importante que a busca das coisas espirituais. Os bens materiais são meios que nos são concedidos para esse fim, porém não podem constituir obstáculos para nosso avanço espiritual.

Os bens materiais são concessões passageiras que Deus nos permite, a fim de que os administremos em favor do próximo.

8. Por que é tão difícil ao rico entrar no reino dos céus?
Porque ele sofre, com maior intensidade, o apelo das tentações do mundo e dos gozos materiais, que se opõem aos anseios do espírito e o afastam de Deus.

“É mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha, do que entrar um rico no reino dos céus”.

Conclusão:

A riqueza não é condenável em si mesma. O emprego que lhe damos é que torna empecilho ou poderoso auxilio para o nosso progresso espiritual.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO LIBERTAÇÃO - CAPÍTULO 5 - JULIANA SOLARE



Operações Seletivas

Transcorridas longas horas em compartimento escuro, aproveitadas em meditações e preces, sem entendimentos verbais, fomos conduzidos, na noite imediata, a um edifício de grandes e curiosas pro­porções.
O esquisito palácio guardava a forma de enor­me hexágono, alongando-se para cima em torres pardacentas, e reunia muitos salões consagrados a estranhos serviços. fluminado externa e interiormente pela claridade de volumosos tocheiros, apre­sentava o aspecto desagradável de uma casa incendiada.
Sob a custódia de quatro guardas da residên­cia de Gregório, que nos comunicaram a necessidade de exame antes de qualquer contacto direto com o aludido sacerdote, penetramos o recinto de largas dimensões, no qual se congregavam algu­mas dezenas de entidades em deploráveis condições.
Moços e velhos, homens e mulheres, aí se mis­turavam em relativo silêncio.
Alguns gemiam e choravam.
Reparei que a multidão se constituía, em sua quase totalidade, de almas doentes. Muitos pade­ciam desequilíbrios mentais visíveis.
Observei-lhes, impressionado, o aspecto enfer­miço.
O perispírito de todos os que aí se enclausura­vam, pacientes e expectadores, mostrava a mesma opacidade do corpo físico.
Os estigmas da velhice, da moléstia e do desencanto, que perseguem a ex­periência humana, ali triunfavam, perfeitos...
O medo controlava os mais desesperados, por­que o silêncio caía, abafante, embora a inquietação que transparecia de todos os rostos.
Alguns servidores da casa, em trajes caracte­risticos, separavam, por grupos vários, as pessoas desencarnadas que entrariam, naquele momento, em seleção para julgamento oportuno.
Discretamente, o Instrutor elucidou-nos:
— Presenciamos uma cerimônia semanal dos juizes implacáveis que vivem sediados aqui. A ope­ração seletiva realiza-se com base nas irradiações de cada um. Os guardas que vemos em trabalho de escolha, compondo grupos diversos, são técni­cos especializados na identificação de males nume­rosos, através das cores que caracterizam o halo dos Espíritos Ignorantes, perversos e desequilibra­dos. A divisão para facilitar o serviço judiciário é, por isto mesmo, das mais completas.
A essa altura, o pessoal de Gregório nos dera tréguas, afastando-se de nós, de algum modo, não obstante vigiar-nos das galerias repletas de gente.
Respeitado o nosso trio pelos selecionadores que não nos alteraram a união, situávamo-nos, agora, no campo das vítimas.
Atento à explicação ouvida, indaguei, curioso:
— Todas estas entidades vieram constrangi­das, conforme sucedeu conosco? Há espíritos satâ­nicos, recordando as oleografias religiosas da Cros­ta, disputando as almas no leito de morte?
O orientador obtemperou, muito calmo:
— Sim. André, cada mente vive na companhia que elege.
Semelhante princípio prevalece para quem respira no corpo denso ou fora dele. É im­perioso reconhecer, porém, que a maioria das almas asiladas neste sítio vieram ter aqui, obedecendo a forças de atração. Incapazes de perceber a pre­sença dos benfeitores espirituais que militam entre os homens encarnados, em tarefas de renunciação e benevolência, em vista do baixo teor vibratório em que se precipitaram, através de delitos reiterados, da ociosidade inipenitente ou da deliberada cristalização no erro, não encontraram senão o manto de sombras em que se envolveram e, des­vairadas, sozinhas, procuraram as criaturas desen­carnadas que com elas se afinam, agregando-se naturalmente a este imenso cortiço, com toda a bagagem de paixões destruidoras que lhes marcam a estrada. Aportando aqui, sofrem, porém, a vigi­lância de inteligências poderosas e endurecidas que imperam ditatorialmente nestas regiões, onde os frutos amargos da maldade e da indiferença enchem o celeiro dos corações desprevenidos e maliciosos.
— Oh! — exclamei em voz sussurrante — por que motivo confere o Senhor atribuições de julga­dores a Espíritos despóticos? porque estará a jus­tiça, nesta cidade estranha, em mãos de príncipes diabólicos?
Gúbio estampou na fisionomia significativa ex­pressão e ajuntou:
— Quem se atreveria a nomear um anjo de amor para exercer o papel de carrasco? Ao demais, como acontece na Crosta Planetária, cada posição, além da morte, é ocupada por aquele que a deseja e procura.
Vagueei o olhar, em derredor, e confrangeu­-se-me toda a alma. Na comunidade das vitimas, arrebanhadas aos magotes, como se fôssem animais raros para uma festa, predominavam a humildade e a aflição; mas, entre as sentinelas que nos no­deavam, a peçonha da ironia transbordava.
Palavrões eram desferidos, desrespeitosamente, a esmo.
A frente de vasta tribuna vazia e sob as ga­lerias laterais abarrotadas de povo, compacta multidão se amontoava, irreverente.
Alguns minutos decorreram, desagradáveis e pesados, quando absorvente vozento se fêz ouvido:
— Os magistrados! os magistrados! Lugar! lugar para os sacerdotes da justiça!
Procurei a paisagem exterior, curiosamente, tanto quanto me era possível, e vi que funcionários rigorosamente trajados à moda dos lictores da Roma antiga, carregando a simbólica machadinha (fasces) ao ombro, avançavam, ladeados por ser­vidores que sobraçavam grandes tochas a lhes clarearem o caminho. Penetraram o átrio em passos rítmicos e, depois deles, sete andores, susten­tados por dignitários diversos daquela corte brutali­zada, traziam os juizes, esquisitamente ataviados.
Que solenidade religiosa era aquela? As pol­tronas suspensas eram, em tudo, idênticas à “sédia gestatória” das cerimônias papalinas.
Varando, agora, o recinto, os lictores passaram o instrumento simbólico às mãos e alinharam-se, corretos, perante a tribuna espaçosa, sobre a qual resplandecia alarmante facho de luz.
Os julgadores, por sua vez, desceram, pompo­sos, dos tronos içados e tomaram assento numa espécie de nicho a salientar-se de cima, inspirando silêncio e temor, porque a turba inconsciente, em redor, calou-se de súbito.
Tambores variados rufaram, como se estivés­semos numa parada militar em grande estilo, e uma composição musical semi-selvagem acompa­nhou-lhes o ritmo, torturando-nos a sensibilidade.
Terminado aquele ruído, um dos julgadores se levantou e dirigiu-se à massa, aproximadamente nestes termos:
— “Nem lágrimas, nem lamentos.
Nem sentença condenatória, nem absolvição gratuita.
Esta casa não pune, nem recompensa.
A morte é caminho para a justiça.
Escusado qualquer recurso à compaixão, entre criminosos.
Não somos distribuidores de sofrimento, e, sim, mordomos do Governo do Mundo.
Nossa função é a de selecionar delinqüentes, a fim de que as penas lavradas pela vontade de cada um sejam devidamente aplicadas em lugar e tempo justos.
Quem abriu a boca para vilipendiar e ferir, prepare-se a receber, de retorno, as forças tremen­das que desencadeou através da palavra envene­nada.
Quem abrigou a calúnia, suportará os gênios infelizes aos quais confiou os ouvidos.
Quem desviou a visão para o ódio e para a desordem, descubra novas energias para contemplar os resultados do desequilíbrio a que se consagrou, espontaneamente.
Quem utilizou as mãos em sementeiras de ma­lícia, discórdia, inveja, ciúme e perturbação deliberada, organize resistência para a colheita de es­pinhos.
Quem centralizou os sentidos no abuso de fa­culdades sagradas espere, doravante, necessidades enlouquecedoras, porque as paixões envilecentes, mantidas pela alma no corpo físico, explodem aqui, dolorosas e arrasadoras. A represa por longo tem­po guarda micróbios e monstros, segregados a dis­tância do curso tranquilo das águas; todavia, chega um momento em que a tempestade ou a decadência surpreendem a obra vigorosa de alvenaria e as for­mas repelentes, libertadas, se espalhem e crescem em toda a extensão da corrente.
Seguidores do vício e do crime, tremei!
Condenados por vós mesmos, conservais a men­te prisioneira das mais baixas forças da vida, à maneira do batráquio encarcerado no visco do pân­tano, ao qual se habituou no transcurso dos sé­culos!.
Nesse ponto, o orador fêz pausa e reparei os circunstantes.
Olhos esgazeados pelo pavor jaziam abertos em todas as máscaras fisionômicas.
O juiz, por sua vez, não parecia respeitar o menor resquício de misericórdia. Mostrava-se inte­ressado em criar ambiente negativo a qualquer es­pécie de soerguimento moral, estabelecendo nos ouvintes angustioso temor.
Prolongando-se o intervalo, enderecei com o olhar silenciosa interrogação ao nosso orientador, que me falou quase em segredo:
— O julgador conhece à saciedade as leis mag­néticas, nas esferas inferiores, e procura hipnotizar as vítimas em sentido destrutivo, não obstante usar, como vemos, a verdade contundente.
— Não vale acusar a edilidade desta colônia — prosseguiu a voz trovejante —, porque ninguém escapará aos resultados das próprias obras, quanto o fruto não foge às propriedades da árvore que o produziu.
Amaldiçoados sejam pelo Governo do Mundo quem nos desrespeite as deliberações, baseadas, aliás, nos arquivos mentais de cada um.
Assinalando, intuitivamente, a queixa mental dos ouvintes, bradou, terrificante:
— Quem nos acusa de crueldade? Não será benfeitor do espírito coletivo o homem que se con­sagra à vigilância de uma penitenciária? e quem sois vós, senão rebotalho humano? Não viestes, até aqui, conduzidos pelos próprios ídolos que ado­rastes?
Nesse momento, convulsivo choro invadiu a muitos.
Gritos atormentados, rogativas de compaixão se fizeram ouvir. Muitos se prosternaram de joelhos.
Imensa dor generalizara-se.
Gúbio trazia a destra sobre o peito, como se contivesse o coração, mas, vendo por minha vez aquele grande grupo de espíritos rebelados e hu­milhados, orgulhosos e vencidos, lastimando amargamente as oportunidades perdidas, recordei meus velhos caminhos de ilusão e — porque não dizer? — ajoelhei-me também, compungido, implorando pie­dade em silêncio.
Exasperado, o julgador bradou, colérico:
— Perdão? Quando desculpastes sinceramente os companheiros da estrada? onde está o juiz reto que possa exercer, impune, a misericórdia?
E incidindo toda a força magnética que lhe era peculiar, através das mãos, sobre uma pobre mulher que o fixava, estarrecida, ordenou-lhe com voz soturna:
— Venha! venha!
Com expressão de sonâmbula, a infeliz obe­deceu à ordem, destacando-se da multidão e colocando-se, em baixo, sob os raios positivos da aten­ção dele.
— Confesse! confesse! — determinou o desa­piedado julgador, conhecendo a organização frágil e passiva a que se dirigia.
A desventurada senhora bateu no peito, dan­do-nos a impressão de que rezava o “confiteor” e gritou, lacrimosa:
— Perdoai-me! perdoai-me, ó Deus meu!
E como se estivesse sob a ação de droga mis­teriosa que a obrigasse a desnudar o íntimo, diante de nós, falou, em voz alta e pausada:
— Matei quatro filhinhos inocentes e ten­ros... e combinei o assassínio de meu intolerável esposo... O crime, porém, é um monstro vivo. Perseguiu-me, enquanto me demorei no corpo... Tentei fugir-lhe através de todos os recursos, em vão... e por mais buscasse afogar o infortúnio em “bebidas de prazer”, mais me chafurdei no charco de mim mesma...
De repente, parecendo sofrer a interferência de lembranças menos dignas, clamou:
— Quero vinho! vinho! prazer!...
Em vigorosa demonstração de poder, afirmou, triunfante, o magistrado:
— Como libertar semelhante fera humana ao preço de rogativas e lágrimas?
Em seguida, fixando sobre ela as irradiações que lhe emanavam do temível olhar, asseverou, peremptório:
— A sentença foi lavrada por si mesma! não passa de uma loba, de uma loba...
A medida que repetia a afirmação, qual se procurasse persuadi-la a sentir-se na condição do irracional mencionado, notei que a mulher, pro­fundamente influenciável, modificava a expressão fisionômica. Entortou-se-lhe a boca, a cerviz cur­vou-se, espontânea, para a frente, os olhos alteraram-se, dentro das órbitas. Simiesca expressão revestiu-lhe o rosto.
Via-se, patente, naquela exibição de poder, o efeito do hipnotismo sobre o corpo perispirítico.
Em voz baixa, procurei recolher o ensinamento de Gúbio, que me esclareceu num cicio:
— O remorso é uma bênção, sem dúvida, por levar-nos à corrigenda, mas também é uma bre­cha, através da qual o credor se insinua, cobrando pagamento. A dureza coagula-nos a sensibilidade durante certo tempo; todavia, sempre chega um minuto em que o remorso nos descerra a vida men­tal aos choques de retorno das nossas próprias emissões.
E acentuando, de modo singular, a voz quase imperceptível, acrescentou:
— Temos aqui a gênese dos fenômenos de li­cantropia, inextricáveis, ainda, para a investigação dos médicos encarnados. Lembras-te de Nabuco­donosor, o rei poderoso, a que se refere a Bíblia? Conta-nos o Livro Sagrado que ele viveu, sentin­do-se animal, durante sete anos. O hipnotismo é tão velho quanto o mundo e é recurso empregado pelos bons e pelos maus, tomando-se por base, acima de tudo, os elementos plásticos do peris­pírito.
Notando, porém, que a mulher infeliz prosse­guia guardando estranhos caracteres no semblante perguntei:
— Esta irmã infortunada permanecerá dora­vante em tal aviltamento da forma?
Finda longa pausa, o Instrutor informou, com tristeza:
— Ela não passaria por esta humilhação se não a merecesse. Além disso, se se adaptou às energias positivas do juiz cruel, em cujas mãos veio a cair, pode também esforçar-se intimamente, renovar a vida mental para o bem supremo e afei­çoar-se à influenciação de benfeitores que nunca escasseiam na senda redentora. Tudo, André, em casos como este, se resume a problema de sintonia. Onde colocamos o pensamento, aí se nos desenvol­verá a própria vida.
O orientador não conseguiu continuar.
Ao redor de nós, as lamentações se fizeram estridentes.
Interjeições de espanto e dor eram proferidas sem rumo.
O magistrado, que detinha a palavra, deter­minou silêncio e exprobrou, asperamente, a atitude dos queixosos. Logo após, notificou que os Espí­ritos Seletores se materializariam, em breves minutos, e que os interessados poderiam solicitar deles as explicações que desejassem.
Concomitantemente, ergueu as mãos em mímica reverencial e, fazendo-nos sentir que presidia ao estranho cenáculo, fez uma invocação em alta voz, denunciando, nos ges­tos, a condição de respeitável hierofante, em grande solenidade.
Terminada que foi a alocução, vasto lençol nebuloso, semelhante a uma nuvem móvel, apareceu na tribuna que se mantinha, até então, des­povoada.
E pouco a pouco, diante de nossos olhos as­sombrados, três entidades tomaram forma perfeitamente humana, apresentando uma delas, a que no porte guardava maior autoridade hierárquica, pequeno instrumento cristalino nas mãos.
Trajavam túnicas de curiosa e indefinível subs­tância em amarelo vivo e revestiam-se de halo afogueado, não brilhante. Essa auréola, mais acen­tuadamente viva em volta da fronte, desferia radia­ções perturbadoras, que recordavam a esbraseada expressão do ferro incandescido.
Ambos os acólitos da personalidade central do trio tomaram folhas de apontamento num cofre vizinho e, ladeando-a, desceram até nós, em si­lencio.
Inesperada quietação tomou a turba, dantes agitada.
Ainda não sei de que recôndita organização provinham tais funcionários espirituais; no entan­to, reparei que o chefe da expedição tríplice mos­trava infinita melancolia na tela fisionômica.
Alçou ele o instrumento cristalino, à frente do primeiro grupo, formado de catorze homens e mulheres de vários tipos. Efetuou observações que não pude acompanhar e disse algo aos companhei­ros que se dispuseram à anotação imediata. Antes, porém, que se retirasse, dois membros do conjunto avançaram implorando socorro:
— Justiça! justiça! — suplicou o primeiro — estou punido sem culpa... Fui homem de pensamento e de letras, entre as criaturas encarnadas... Porque deverei suportar a companhia dos ava­rentos?
Fitando o seletor, angustiadamente, reclamou:
— Se escolheis com equidade, livrai-me do la­birinto em que me vejo!
Não terminara, e o segundo interferiu, ajun­tando:
— Magistrado venerável, por quem sois!... não pertenço à classe dos sovinas. Imantaram-me a seres sórdidos e desprezíveis! Minha vida trans­correu entre livros, não entre moedas.. - A Ciência fascinou-me, os estudos eram meu tema predi­leto... Pode, assim, o intelectual equiparar-se ao usurário?
O dirigente da seleção mostrou reservada pie­dade no semblante calmo e elucidou, firme:
— Clamais debalde, porque desagradável vi­bração de egoísmo cristalizante vos caracteriza a todos. Que fizestes do tesouro cultural recebido? Vosso “tom vibratório” demonstra avareza sarcástica. O homem que ajunta letras e livros, teorias e valores científicos, sem distribuí-los a benefício dos outros, é irmão infortunado daquele que amon­toa moedas e apólices, títulos e objetos preciosos, sem ajudar a ninguém. O mesmo prato lhes serve na balança da vida.
— Por amor de Deus! — suplicou um dos cir­cunstantes, comovedoramente.
— Esta casa é de justiça, em nome do Governo do Mundo! — afiançou o explicador sem alterar-se.
E impassível, embora visivelmente amargura­do, pôs-se em marcha.
Auscultava uma formação de oito pessoas; todavia, enquanto se comunicava com os assessores, acerca das observações recolhidas, um cava­lheiro de faces macilentas salientóu-se e exclamou, estadeando enorme fúria:
— Que ocorre neste recinto misterioso? estou entre caluniadores confessos, quando desempenhei o papel de homem honrado... Criei numerosa fa­mília, nunca trai as obrigações sociais, fui cor­reto e digno e, não obstante aposentado desde cedo, cumpri todos os deveres que o mundo me assi­nalou...
Com acento colérico, aduzia, aflito:
— Quem me acusa?... quem me acusa?...
O selecionador elucidou, sereno:
— A condenação transparece de vós mesmo. Caluniastes vosso próprio corpo, inventando para ele impedimentos e enfermidades que só existiam em vossa imaginação, interessada na fuga ao tra­balho benéfico e salvador. Debitastes aos órgãos robustos deficiências e moléstias deploráveis, tão somente no propósito de conquistardes repouso prematuro. Conseguistes quanto pretendi eis. Empe­nhastes amigos, subornastes consciências delituosas e obtivestes o descanso remunerado, durante qua­renta anos de experiência terrestre em que outra ação não desenvolvestes senão dormir e conversar sem proveito. Agora, é razoável que o vosso círculo vital se identifique ao de quantos se mergulharam no pântano da calúnia criminosa.
O infeliz não teve forças para a tréplica. Sub­meteu-se, em lágrimas, à argumentação ouvida e retomou o lugar que lhe competia.
Alcançando o terceiro grupo, constituído de mulheres diversas, mal havia aplicado o singular instrumento ao campo vibratório que lhes dizia respeito, foi o mensageiro abordado por uma senhora, pavorosamente desfigurada, que lhe lançou em rosto atrozes queixas.
— Porque tamanha humilhação? — inquiriu em pranto copioso — fui dona de uma casa que me encheu de trabalho, voltei para cá rodeada de especiais considerações, naturalmente devidas ao meu estado social e arrebanham-me entre mulheres sem pudor? Que autoridades são estas que impõem a mim, dama de nobre procedência, o convívio de meretrizes?
Forte crise de soluços embargou-lhe a voz.
O selecionador, no entanto, dentro de uma calma que mais se avizinhava da frieza, declarou sem rebuços:
— Estamos numa esfera onde o equívoco se faz mais difícil. Consultai a própria consciência. Teríeis sido, realmente, a padroeira de um lar respeitável, como julgais? O teor vibratório asse­vera que as vossas energias santificantes de mu­lher, em maior parte, foram desprezadas.
Vossos arquivos mentais se reportam a desregramentos emotivos em cuja extinção gastareis longo tempo. Ao que parece, o altar doméstico não foi bem o vosso lugar.
A senhora gritou, gesticulou, protestou, mas os selecionadores prosseguiram na tarefa a que se impunham.
Ao nosso lado, aplicou o instrumento, em que se salientavam pequeninos espelhos e falou para os auxiliares, definindo-nos a posição:
— Entidades neutras.
Fixou-nos com penetrante fulguração de olhar, como se nos surpreendesse, mudo, as intenções mais profundas e passou adiante.
Instado por mim, Gúbio esclareceu:
— Não fomos acusados. Ser-nos-á possível o engajamento no serviço desejado.
— Que aparelho vem a ser esse? — indagou Elói, antecipando-me a curiosidade.
O orientador não se fêz rogado e elucidou:
— Trata-se de um captador de ondas men­tais.
A seleção individual exigiria longas horas. As autoridades que dominam nestas regiões pre­ferem a apreciação em grupo, o que se faz pos­sível pelas cores e vibrações do círculo vital que nos rodeia a cada um.
— Porque nos considerou neutros? — inter­roguei por minha vez.
— O instrumento não é suscetível de marcar a posição das mentes que já se transferiram para a nossa esfera. É recurso para a identificação de perispíritos desequilibrados e não atinge a zona superior.
— Mas — perguntei, ainda —, porque se fala nesta casa em nome do Governo do Mundo?
O Instrutor endereçou-me expressivo gesto e ajuntou:
— André, não te esqueças de que nos encon­tramos num plano de matéria algum tanto densa e não nos círculos de gloriosa santidade. Não olvides a palavra “evolução” e recorda que os maiores crimes das civilizações terrestres foram cometidos em nome da Divindade. Quanta vez, no corpo físico, notamos sentenças cruéis, emitidas por espíritos ignorantes, em nome de Deus?
Pouco a pouco, a cerimônia terminou com a mesma imponência de culto externo em que se havia iniciado e, sob a vigilância das sentinelas, tornamos ao ponto de origem, guardando inesperadas meditações e profundos pensamentos.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 33 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



33 – Aprendizado

Amaro e a família, coadjuvados por alguns vizinhos, amortalhavam a forma hirta do menino, quando rumamos de volta ao Lar da Bênção.
Notei que Júlio, asilado nos braços de Odila, se mostrava aliviado e tranqüilo, como nunca o vira até então.
Enquanto as nossas irmãs permutavam idéias, com respeito ao futuro, indaguei do orientador, acerca da serenidade que felicitava agora o pequenino.
Clarêncio informou, prestimoso:
– Júlio reajustou-se para a continuação regular da luta evolutiva que lhe compete. O renascimento malogrado não teve para ele tão somente a significação expiatória, necessária ao Espírito que deserta do aprendizado, mas também o efeito de um remédio curativo. A permanência no campo físico funcionou como recurso de eliminação da ferida que trazia nos delicados tecidos da alma.
A carne, em muitos casos, é assim como um filtro que retém as impurezas do corpo perispiritual, liberando-o de certos males nela adquiridos.
– Isso quer dizer...
O Ministro, porém, cortou-me a palavra, acentuando:
– Isso quer dizer que Júlio doravante poderá exteriorizar-se num corpo sadio, conquistando merecimento para obter uma reencarnação devidamente planejada, com elevados objetivos de serviço.
Terá, por alguns meses conosco, desenvolvimento natural, regressando à Terra, em elogiáveis condições de harmonia consigo mesmo.
– Mas voltará, assim, em tão pouco tempo? – perguntei, admirado.
– Esperamos que assim seja. Deve atender ao crescimento de qualidades nobres para a vida eterna que somente o retorno à escola da carne poderá facilitar. Além disso, precisa conviver com Amaro, Zulmira e Silva, de maneira a confraternizar-se realmente com eles, segundo o amor puro que o Cristo nos ensinou.
– Essas anotações – ponderei – lançam nova claridade em nosso estudo da vida.
Compreendemos, assim, que as moléstias complicadas e longas guardam função específica.
Os aleijões de nascença, o mongolismo, a paralisia...
– Sim – confirmou o orientador –, por vezes é tão grande a incursão da alma nas regiões de desequilíbrio, que mais extensa se faz para ela a viagem de volta à normalidade.
Sorrindo, acrescentou:
– O tempo de inferno restaurador corresponde ao tempo de culpa deliberada. Em muitas fases de nossa evolução somos imantados às teias da carne, que sempre nos reflete a individualidade intrínseca, assim como a argila é conduzida ao calor da cerâmica ou como o metal impuro é arrojado ao cadinho fervente. A depuração exige esforço, sacrifício, paciência.
Ante nosso olhar deslumbrado, tingira-se o horizonte de cores variegadas, anunciando o Sol que parecia nascer num mar de luz e ouro.
Muito longe, esmaeciam as estrelas e, perto de nós, nuvens leves caminhavam apressadas, tangidas pelo vento.
Contemplando a imensidão, Clarêncio considerou:
– Quando nosso espírito apreende alguma nesga da glória universal, desperta para as mais sublimes esperanças. Sonha com o acesso às esferas divinas, suspira pelo reencontro com amores santificados que o esperam em vanguardas distantes, aceitando, então, duros trabalhos de reajuste. Que representam, em verdade, para nós, alguns decênios de renunciação na Terra, em confronto com a excelsitude dos séculos de felicidade em mundos de sabedoria e trabalho enaltecedor!...
– Ah! se os homens percebessem !... – obtemperei, lembrando a rebelião que tantas vezes nos prejudica no mundo.
– Entenderão algum dia – objetou Clarêncio, otimista –; todos os seres progridem e avançam para Deus. O homem terrestre crescerá para o grande entendimento e louvará, feliz, o concurso da dor. O embrião do jequitibá, com os anos, se converte em tronco vetusto, rico de beleza e utilidade, e o espírito, com os milênios, transforma-se em gênio soberano, coroado de amor e sabedoria.
Depois de um minuto de silenciosa adoração à Natureza, o instrutor continuou:
– Volvendo ao caso de Júlio, não podemos olvidar que milhares de Inteligências, entre o berço e o túmulo, estão procurando a própria recuperação. À medida que se nos aclara a consciência e se nos engrandece a noção de responsabilidade, reconhecemos que a nossa dignificação espiritual é serviço intransferível. Devemos
a nós mesmos quanto nos sucede em matéria de bem ou de mal.
– Importante observar – disse Hilário, pensativo – como a vida reclama, no refazimento da paz, a conjugação daqueles que entraram em guerra uns com os outros... No passado, Júlio arrojou-se ao despenhadeiro do suicídio sob a influência de Amaro, e Zulmira, após indispor-se com Silva...
– E, agora – completou Clarêncio –, reabilita-se com o auxílio de Zulmira e Amaro, de modo a rearmonizar-se com o enfermeiro.
É natural seja assim.
– Mas Júlio, antes de tornar ao mundo, através do nosso amigo ferroviário – indaguei, onde estaria?
– Depois de haver eliminado o próprio corpo, satisfazendo a simples capricho pessoal, sofreu por muitos anos as tristes conseqüências do ato deliberado, amargando nos círculos vizinhos da Terra as torturas do envenenamento a se lhe repetirem no campo mental. A morte prematura, quando traduz indisciplina diante das
leis infinitamente compassivas que nos governam, constrange o Espírito que a provoca a dilatada purgação na paisagem espiritual.
Não podemos trair o tempo e a existência planificada subordinase a determinada quota de tempo, que nos compete esgotar em trabalho justo. Quando esses recursos não são suficientemente aproveitados, arcamos com tremendos desequilíbrios na organização que nos é própria.
– Sofreria, porém, a sós?
– Nem sempre – informou o instrutor –; quando não se achava em martirizada solidão, via-se, como é lógico, onde se lhe mantinha preso o pensamento.
Ante a nossa curiosidade indagadora, acrescentou:
– Os pensamentos dele se alimentavam na atmosfera psíquica de Zulmira, Amaro e Silva, que lhe serviam de pontos básicos ao ódio. Ensinava Jesus que o homem terá o seu tesouro onde guarde o coração e, efetivamente, todos nos imantamos, em espírito, às pessoas, lugares e objetos, aos quais se liguem os nossos sentimentos.
– Mas Júlio estava em contacto com eles nas esferas espirituais ou nas experiências do mundo físico?
– Partilhava-lhes a vida simplesmente, e a vida, em qualquer setor de luta, é invariável. Entretanto, por detestar Amaro mais profundamente, pesava com mais intensidade sobre ele. O ferroviário, na existência do Espaço, conheceu-lhe a perseguição acérrima, ouvindo-lhe as acusações e as queixas, nas regiões purgatoriais
e, ao se reencarnar, na atual condição, foi seguido de perto por Júlio, que lhe afligia a mente, dele exigindo o necessário concurso à formação do novo corpo. Em razão da leviandade de Amaro, quando na personalidade de Armando, caminhara para o suicídio. Por isso mesmo, a Lei permitia-lhe a união com o amigo transformado em desafeto, companheiro esse do qual reclamava a renovação da oportunidade perdida.
Clarêncio fitou-nos, de modo especial, e aduziu:
– Entre o credor e o devedor há sempre o fio espiritual do compromisso.
– Amaro teria tido, dessa forma, uma juventude algo conturbada – ponderei com objetivo de estudo.
– Sim, como acontece à maioria dos moços de ambos os sexos, na luta vulgar, muito cedo acordou para o ideal da paternidade.
Em sonhos, fora do corpo denso, encontrava-se com o adversário que lhe pedia o retorno ao mundo e, ansioso de reconciliação, pensava no casamento com extremado desassossego, desejoso de saldar a conta que reconhecia dever. Muito jovem ainda, encontrou Odila que o aguardava, consoante o acordo por ambos levado a efeito, na vida espiritual; no entanto, as vibrações de Júlio eram efetivamente tão incômodas que a primeira esposa do nosso amigo não conseguiu acolhê-lo, de imediato, recebendo Evelina, em primeiro lugar, de vez que a ligação do casal com ela se baseia em doces afinidades. Somente depois da primogênita é que se ambientou para a incorporação do suicida em sofrimento...
– Este ponto de nossa conversação – lembrei, respeitoso – faz-me recordar os conflitos interiores de muitos rapazes e de muitas moças na Terra. Às vezes se arrojam ao casamento com absoluta inaptidão para as grandes responsabilidades, qual se estivessem impulsionadas por molas invisíveis, sem qualquer consideração para com os impositivos da prudência. Como se fossem atacados por subitânea loucura, desatendem a todos os conselhos do lar ou dos amigos, para despertarem, depois, com problemas de enorme gravidade, quando não acordam sob a neblina de imensas desilusões. Agora compreendo... Na base dos sonhos juvenis, quase sempre moram dívidas angustiosas a que não se pode fugir...
– Sim – confirmou o Ministro –, grande número de paixões afetivas no mundo correspondem a autênticas obsessões ou psicoses, que só a realidade consegue tratar com êxito. Em muitas ocasiões, por trás do anseio de união conjugal, vibra o passado, através de requisições dos amigos ou inimigos desencarnados, aos quais devemos colaboração efetiva para a reconquista do veículo carnal. A inquietação afetiva pode expressar escuros labirintos da retaguarda...
Refletindo nas lutas da alma, atirada às experiências da vida com tantos enigmas a solver, acudiu-me à lembrança antiga questão que habitualmente me vinha à cabeça.
– E os anjos de guarda? – inquiri.
Diante da surpresa que assomou ao semblante do nosso orientador, acentuei, reverente:
– Perdoe-me, mas ainda sou estudante incipiente da vida espiritual.
Os anjos de guarda estão em nossa esfera?
Clarêncio encarou-me, admirado, e sentenciou:
– Os Espíritos tutelares encontram-se em todas as esferas, contudo é indispensável tecer algumas considerações sobre o assunto. Os anjos da sublime vigilância, analisados em sua excelsitude divina, seguem-nos a longa estrada evolutiva. Desvelam-se por nós, dentro das Leis que nos regem, todavia não podemos esquecer que nos movimentamos todos em círculos multidimensionais.
A cadeia de ascensão do espírito vai da intimidade do abismo à suprema glória celeste.
Ligeira pausa trouxe paternal sorriso aos lábios do instrutor, que prosseguiu:
– Será justo lembrar que estamos plasmando nossa individualidade imperecível no espaço e no tempo, ao preço de continuadas e difíceis experiências. A idéia de um ente divinizado e perfeito, invariavelmente ao nosso lado, ao dispor de nossos caprichos ou ao sabor de nossas dívidas, não concorda com a justiça.
Que governo terrestre destacaria um de seus ministros mais sábios e especializados na garantia do bem de todos para colar-se, indefinidamente, ao destino de um só homem, quase sempre renitente cultor de complicados enigmas e necessitado, por isso mesmo, das mais severas lições da vida? Porque haveria de obrigar-se um arcanjo a descer da Luz Eterna para seguir, passo a passo, um homem deliberadamente egoísta ou preguiçoso? Tudo exige lógica, bom senso.
– Com semelhante apontamento, quer dizer que os anjos de guarda não vivem conosco?
– Não digo isso – asseverou o benfeitor.
E, com graça, aduziu:
– O Sol está com o verme, amparando-o na furna, a milhões e milhões de quilômetros, sem que o verme esteja com o Sol.
As irmãs que seguiam conosco, lado a lado, embevecidas na contemplação do céu, comentavam carinhosamente o porvir de Júlio, psiquicamente distanciadas de nossa conversação.
O apontamento de nosso orientador impunha-nos graves reflexões e, talvez por esse motivo, o silêncio tentou apossar-se do grupo, mas Clarêncio, reconhecendo que o assunto demandava elucidação mais ampla, continuou:
– “Anjo, segundo a acepção justa do termo, é mensageiro.
Ora, há mensageiros de todas as condições e de todas as procedências e, por isso, a antigüidade sempre admitiu a existência de anjos bons e anjos maus. Anjo de guarda, desde as concepções religiosas mais antigas, é uma expressão que define o Espírito celeste que vigia a criatura em nome de Deus ou pessoa que se devota infinitamente a outra, ajudando-a e defendendo-a. Em qualquer região, convivem conosco os Espíritos familiares de nossa vida e de nossa luta. Dos seres mais embrutecidos aos mais sublimados, temos a corrente de amor, cujos elos podemos simbolizar nas almas que se querem ou que se afinam umas com as outras, dentro da infinita gradação do progresso.
“A família espiritual é uma constelação de Inteligências, cujos membros estão na Terra e nos Céus. Aquele que já pode ver mais um pouco auxilia a visão daquele que ainda se encontra em luta por desvencilhar-se da própria cegueira. Todos nós, por mais baixo nos revelemos na escala da evolução, possuímos, não longe de nós, alguém que nos ama a impelir-nos para a elevação. Isso podemos verificar nos círculos da matéria mais densa. Temos constantemente corações que nos devotam estima e se consagram ao nosso bem. De todas as afeições terrestres, salientemos, para exemplificar, a devoção das mães. O espírito maternal é uma espécie de anjo ou mensageiro, embora muita vez circunscrito ao cárcere de férreo egoísmo, na custódia dos filhos. Além das mães, cujo amor padece muitas deficiências, quando confrontado com os princípios essenciais da fraternidade e da justiça, temos afetos e simpatias dos mais envolventes, capazes dos mais altos sacrifícios por nós, não obstante condicionados a objetivos por vezes egoísticos.
Não podemos olvidar, porém, que o admirável altruísmo de amanhã começa na afetividade estreita de hoje, como a árvore parte do embrião.
“Todas as criaturas, individualmente, contam com louváveis devotamentos de entidades afins que se lhes afeiçoam. A orfandade real não existe. Em nome do Amor, todas as almas recebem assistência onde quer que se encontrem. Irmãos mais velhos ajudam os mais novos. Mestres inspiram discípulos. Pais socorrem os filhos. Amigos ligam-se a amigos. Companheiros auxiliam companheiros. Isso ocorre em todos os planos da Natureza e, fatalmente, na Terra, entre os que ainda vivem na carne e os que já atravessaram o escuro passadiço da morte. Os gregos sabiam disso e recorriam aos seus gênios invisíveis. Os romanos compreendiam essa verdade e cultuavam os numes domésticos. O gênio guardião será sempre um Espírito benfazejo para o protegido, mas
é imperioso anotar que os laços afetivos, em torno de nós, ainda se encontram em marcha ascendente para mais altos níveis da vida.
“Com toda a veneração que lhes devemos, importa reconhecer, nos Espíritos familiares que nos protegem, grandes e respeitáveis heróis do bem, mas ainda singularmente distanciados da angelitude eterna. Naturalmente, avançam em linhas enobrecidas, em planos elevados, todavia, ainda sentem inclinações e paixões particulares, no rumo da universalização de sentimentos. Por esse motivo, com muita propriedade, nas diversas escolas religiosas, escutamos a intuição popular asseverando: – “nossos anjos de guarda não combinam entre si”, ou, ainda, “façamos uma oração aos anjos de guarda”, reconhecendo-se, instintivamente, que os gênios familiares de nossa intimidade ainda se encontram no campo de afinidades específicas e precisam, por vezes, de apelos à natureza superior para atenderem a esse ou àquele gênero de serviço.”
Chegávamos ao Lar da Bênção e os esclarecimentos do instrutor represavam-se em nossa alma, por inesquecível preleção, compelindo-nos a grande silêncio.
Blandina, porém, veio até nós e perguntou ao orientador, sensibilizada:
– Generoso amigo, podemos estar realmente convictos de que Júlio devia desencarnar, agora?
– Perfeitamente. A Lei funcionou, exata. Não há lugar para qualquer dúvida.
– E aqueles jatos de pensamento escuro que partiram do enfermeiro, como que envenenando o nosso doentinho?
– Se não estivéssemos junto dele – disse o Ministro –, teriam efetivamente abreviado a morte da criança e, ainda assim, a Lei ter-se-ia cumprido; entretanto, aqueles pensamentos escuros de Mário voltaram para ele mesmo. Emitiu-os, com o evidente propósito de matar e, em razão disso, experimenta o remorso de um autêntico assassino.
A graciosa residência de Blandina, para onde nos encaminhávamos, estava agora à nossa vista.
Clarêncio afagou-a, bondoso, e concluiu:
– Permaneçamos convencidos, minha filha, de que, em qualquer lugar e em qualquer tempo, receberemos da vida, de acordo com as nossas próprias obras.

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 32 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



32 – Recaptulação

De volta ao hospital, o enfermeiro não encontrou pessoalmente o chefe, que se ausentara, constrangido por serviço urgente, mas recebeu das mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções.
O rapaz leu a ficha, atenciosamente.
Um menino, perfeitamente caracterizado nas indicações, atacado de crupe, exigia socorro imediato.
De posse do endereço e munindo-se do material imprescindível ao tratamento, Silva rodou num ônibus para a casa de Amaro.
Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto.
Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia gentileza e contentamento na saudação, tartamudeava alguns monossílabos, desapontado, espantadiço...
Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez do rosto.
Então – refletia, acabrunhado – era aquela casa que lhe cabia atender? Se soubesse de antemão, teria solicitado um substituto.
Não pretendia reaproximar-se dos desafetos dos quais se havia distanciado... Abominava o homem que lhe furtara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem observar-se tocado de insólita aversão... Muita vez, rememorando o passado, calculava quanto ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência... Porque lhe competia
revê-la? Porque salvar-lhe o filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe a casa?
Entretanto, algo interferia em suas reflexões. Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental.
Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher valorosa, repetindo-lhe ao coração:

“As mãos que curam não podem ferir...”
“Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos...”
“A vida não termina neste mundo...”
“Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem...”


Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colocá-lo à vontade, Amaro solicitou em voz súplice:
– Entre, Mário! conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo...
E, indicando o quarto próximo, acrescentou:
– Zulmira está lá dentro com o nosso filhinho. Já me entendi com o médico pelo telefone e sei que o crupe foi positivado.
O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinalmente.
Varou a câmara, perturbado, lívido.
Quando viu a mulher que amara apaixonadamente, trazendo o pequenino ao colo, registrou súbita vertigem de revolta.
Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha aflição lhe oprimia o peito.
A volúpia da vingança enceguecia-o...
Zulmira pagar-lhe-ia, caro, a deserção – pensava de olhos fixos na maternidade dolorosa que ali se exteriorizava em mortificante padecimento.
Contemplou a criancinha que a dispnéia agitava e deu curso a incontida animosidade. Tinha a impressão de odiá-la, de longa data. Ele próprio se surpreendia, sobressaltado... Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência? Mas, acreditando justificar a terrível disposição de espírito com a circunstância
de achar-se, ali, o fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não procurou analisar-se. A idéia de que Amaro e a esposa sofreriam irreparavelmente, com a morte do petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço. A felicidade daquele templo doméstico dependia, naquela hora, de sua atuação. E se cooperasse com a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a desaparecer? A pergunta criminosa traspassou-lhe o pensamento como um estilete de treva.
Contudo, a lembrança do culto de oração, no lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça.
As consoladoras afirmações da mãezinha de Lisbela regressavam-lhe aos ouvidos:

“Vale sempre mais o acordo pacífico...”
“Não devemos nutrir qualquer espécie de aversão...”
“Quem ajuda é ajudado...”
“Ninguém se eleva aos mais altos níveis da vida com o endurecimento espiritual...”
“Nunca sabemos realmente até que ponto somos ofendidos ou ofensores...”
“O perdão é vitória da luz...”


Os retalhos da palestra edificante afiguravam-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expansão dos malignos desejos.
Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe na consciência em breve minuto...
Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva torturada, que o reconheceu de pronto, tentando cumprimentá-lo.
Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispondo-se ao serviço.
– Mário! – implorou a pobre senhora, agoniada – compadeçase de nós! ajude-nos! Esperei meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios... Será crível deva agora vê-lo morrer?
Lágrimas copiosas seguiam-lhe os soluços que lhe emudeceram a garganta.
Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca lhe impunha inquietação, mas naquele instante soberana indiferença enrijecia-lhe o espírito. Que lhe importava a dor da mulher que o abandonara?
Zulmira rira-se dele, anos antes... não lhe cabia rir-se agora?
De semblante rude, recomendou fosse a criança restituída ao leito e, logo após, tateou-lhe a sensibilidade.
De pensamento martelado pelas idéias recolhidas no estudo evangélico da noite e contido pela suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.
Ainda assim, como se carregasse um gênio infernal na própria mente, assinalou as criminosas sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfogueado.
A ministração de medicamento impróprio, decerto, favoreceria a rápida extinção do enfermo. Júlio encontrava-se à beira da sepultura... apenas o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga...
Todavia, o semblante de Antonina dominava-lhe a memória, exaltando o perdão.
Se viesse àquela casa na véspera – considerou consigo mesmo –, teria exterminado o petiz sem piedade... Recorreria à eutanásia para justificar-se intimamente.
Naquela hora, porém, os princípios evangélicos da fraternidade e da conciliação, como pensamentos intrusos, atenazavam-lhe a consciência.
Esperou, silencioso, a reação do menino ofegante e, embora assinalasse graves complicações que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com o médico responsável, fez a aplicação do soro antidiftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se em veneno destruidor.
Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças.
Ante o assombro com que observávamos a exteriorização daquele visco enegrecido, nosso instrutor elucidou de boa vontade:
– São fluidos deletérios do ódio com que Silva, inconscientemente, procura envolver a infeliz criança, contudo as nossas defesas estão funcionando.
Odila, que chamara Blandina e Mariana até nós, acompanhava a medicação, ansiosamente.
– Abnegado amigo – dirigiu-se, inquieta, ao nosso orientador –, acredita que Júlio possa recuperar-se?
Clarêncio, que estabelecera extensa faixa magnética em torno do doentinho, preservando-o contra a influência do visitante, meneou a cabeça e falou, paternal:
– Odila, é tempo de penetrares a verdade. O menino deixará o corpo talvez em breves horas. O futuro dele exige a frustração do presente. Fortalece-te, contudo... A Vontade Divina, expressa na Lei que nos rege, faz sempre o melhor.
E talvez porque nossa irmã decepcionada ensaiasse nova perquirição, o devotado condutor pediu-lhe, calmo:
– Não indagues agora. Saberás mais tarde. Júlio reclama assistência, vigilância, carinho.
A interlocutora recompôs a expressão fisionômica, denunciando humildade e disciplina.
O enfermeiro fitava o pequeno, qual se estivesse a hipnotizálo para a morte, observando-lhe as contrações faciais.
Os genitores fixavam igualmente a criança, em tremenda expectativa.
Em dado instante, Júlio estremeceu, empalidecendo.
Descontrolara-se-lhe o coração.
Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, procurou os olhos de Amaro, aflito, e solicitou em voz menos dura:
– Convém a presença imediata do nosso facultativo. Receio um choque anafilático de conseqüências fatais.
Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o ferroviário se despejava porta a fora, em busca do pediatra.
Minutos longos de espera foram vividos no quarto estreito.
Uma hora escoou, vagarosa e terrível...
Preocupado, o médico auscultou a criança e, logo após, convidou o pai desolado a entendimento mais íntimo, anunciando:
– Surgiu o colapso irremediável. Infelizmente é o fim. Se o senhor tem fé religiosa, confiemos o caso a Deus. Agora, somente a concessão divina...
Amaro, consternado, baixou a cabeça e nada respondeu.
O pediatra trocou idéias com Silva, que se fizera muito pálido, e deu-lhe instruções, recomendando-lhe, ao despedir-se, permanecesse com o pequenino, por mais algumas horas.
Um sedativo administrado em Zulmira compeliu-a ao repouso.
Júlio, em coma, respirava dificilmente.
Enquanto isso, a noite avançava... A madrugada, agora lavada pelo vento leve, permitia ver o céu povoado de cintilantes constelações.
Reparando que a mulher e a filha descansavam, Amaro encaminhou-se para a janela próxima, como quem procurava consolo, no seio agasalhante da noite, e começou a chorar em silêncio.
Ao lado da criancinha agonizante, o enfermeiro observava-lhe a atitude sofredora e humilde, reconhecendo-se tocado no imo d'alma.
Porque lutara contra semelhante inimigo? – pensava, ensimesmado.
– Amaro assemelhava-se a uma estátua de martírio silencioso. Estava ali, cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era um homem de bem, devotado à retidão. Decerto, já havia amargado muito. O rosto, sulcado de rugas precoces, que lhe detinham o pranto, falava da cruz de experiências difíceis que lhe pesava nos ombros. Quantos problemas inquietantes teria defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo rigor da sorte? Como pudera ele, Mário Silva, ser ali tão cruel? Rememorou as passagens
da hora de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evangelho estribava-se nas melhores razões.
Mais valia conciliar-se depressa com o adversário que enterrar um espinho de remorso no próprio peito, e ele notava, triste, que o remorso como lâmina acerada lhe retalhava o coração...
Amaro e a esposa, indiscutivelmente, poderiam ter manifestado desconfiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, entretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços abertos... Se o haviam ferido, noutro tempo, não se achavam agora sob o guante de terrível flagelação? Rendia graças a Deus por não haver injetado
substâncias tóxicas no doentinho agora moribundo, mas não teria, acaso, concorrido para abreviar-lhe a morte? Experimentava o desejo de abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, mas sentia vergonha de si mesmo...
Durante quase duas horas permaneceram ali, os dois, calados e impassíveis.
A aurora começava a refletir-se no firmamento em largas riscas rubras, quando o ferroviário abandonou a meditação, aproximando-se do filhinho quase morto.
Num gesto comovente de fé, retirou da parede velho crucifixo de madeira e colocou-o à cabeceira do agonizante. Em seguida, sentou-se no leito e acomodou o menino ao colo com especial ternura. Amparado espiritualmente por Odila, que o enlaçava,
demorou o olhar sobre a imagem do Cristo Crucificado e orou em alta voz:
– Divino Jesus, compadece-te de nossas fraquezas !... Tenho meu espírito frágil para lidar com a morte! Dá-nos força e compreensão...
Nossos filhos te pertencem, mas como nos dói restituilos, quando a tua vontade no-los reclama de volta!...
O pranto embargava-lhe a voz, mas o pai sofredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade de oração, prosseguiu:
– Se é de teu desígnio que o nosso filhinho parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor e luz! Concede-nos, porém, a precisa coragem para suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade e dor!... Dá-nos resignação, fé, esperança!... Auxilia-nos
a entender-te os propósitos e que a tua vontade se cumpra hoje e sempre!...
Jatos de safirina claridade escapavam-lhe do peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco, adormeceu.
Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigando-se nos braços de Odila, à maneira de um órfão que busca tépido ninho de carícias.
Tocado nas fibras mais recônditas do ser e percebendo que a morte ali estendera as suas grandes asas, Silva experimentou violenta comoção a constringir-lhe a alma. Convulsivo choro agitou-lhe o peito, enquanto uma voz inarticulada, que parecia
nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe na consciência:
– Assassino! Assassino!...
Desorientado e inseguro, o moço correu para a via pública, achando-se, atormentado, no seio da sombra fria, soluçando...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

ESTUDO DO LIVRO NOSSO LAR - CAPÍTULO 49 - JULIANA SOLARE



Regressando a Casa


Imitando a criança que se conduz pelos passos dos benfeitores, cheguei à minha cidade, com a sensação indescritível do viajante que torna ao berço natal depois de longa ausência.
Sim, a paisagem não se modificara de maneira sensível. As velhas árvores do bairro, o mar, o mesmo céu, o mesmo perfume errante.
Embriagado de alegria, não mais notei a expressão fisionômica da senhora Laura, que denunciava extrema preocupação, e despedi-me da pequena caravana, que seguiria adiante.
Clarêncio abraçou-me e falou:
- Você tem uma semana ao seu dispor. Passarei aqui diariamente para revê-lo, atento aos cuidados que devo consagrar aos problemas da reencarnação de nossa irmã. Se quiser ir a "Nosso Lar", aproveitará minha companhia. Passe bem, André!
Último adeus à dedicada mãe de Lísias e me vi só, respirando o ar de outros tempos, a longos haustos.
Não me demorei a examinar pormenores. Atravessei celeremente algumas ruas, a caminho de casa. O coração me batia descompassado, à medida que me aproximava do grande portão de entrada. O vento, como outrora, sussurrava carícias no arvoredo do pequeno parque. Desabrochavam azáleas e rosas, saudando a luz primaveril. Em frente ao pórtico, ostentava-se, garbosa, a palmeira que, com Zélia, eu havia plantado no primeiro aniversário de casamento.
Ébrio de felicidade, avancei para o interior. Tudo, porém, denotava diferenças enormes. Onde estariam os velhos móveis de jacarandá? E o grande retrato onde, com a esposa e os filhinhos, formávamos gracioso grupo? Alguma coisa me oprimia ansiosamente. Que teria acontecido?
Comecei a cambalear de emoção. Dirigi-me à sala de jantar, onde vi a filhinha mais nova, transformada em jovem casadoura. E, quase no mesmo instante, vi Zélia que saía do quarto, acompanhando um cavalheiro que me pareceu médico, à primeira vista.
Gritei minha alegria com toda a força dos pulmões, mas as palavras pareciam reboar pela casa sem atingir os ouvidos dos circunstantes.
Compreendi a situação e calei-me, desapontado. Abracei-me à companheira, com o carinho da minha saudade imensa, mas Zélia parecia totalmente insensível ao meu gesto de amor. Muito atenta, perguntou ao cavalheiro alguma coisa que não pude compreender de pronto. O interlocutor, baixando a voz, respondeu, respeitoso:
- Só amanhã poderei diagnosticar seguramente, porque a pneumonia se apresenta muito complicada, em virtude da hipertensão. Todo o cuidado é pouco, o Dr. Ernesto reclama absoluto repouso.
Quem seria aquele Dr. Ernesto? Perdia-me num mar de indagações, quando ouvi minha esposa suplicar, ansiosa:
- Mas, doutor, salve-o, por caridade! Peço-lhe! Oh! não suportaria uma segunda viuvez.
Zélia chorava e torcia as mãos, demonstrando imensa angústia.
Um corisco não me fulminaria com tamanha violência. Outro homem se apossara do meu lar. A esposa me esquecera. A casa não mais me pertencia. Valia a pena de ter esperado tanto para colher semelhantes desilusões?
Corri ao meu quarto, verificando que outro mobiliário existia na alcova espaçosa. No leito, estava um homem de idade madura, evidenciando melindroso estado de saúde. Ao lado dele, três figuras negras iam e vinham, mostrando-se interessadas em lhe agravar os padecimentos.
De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças, mas já não era eu o mesmo homem de outros tempos. O Senhor me havia chamado aos ensinamentos do amor, da fraternidade e do perdão. Verifiquei que o doente estava cercado de entidades inferiores, devotadas ao mal; entretanto, não consegui auxiliá-lo imediatamente.
Assentei-me, decepcionado e acabrunhado, vendo Zélia entrar no aposento e dele sair, varias vezes, acariciando o enfermo com a ternura que me coubera noutros tempos, e, depois de algumas horas de amarga observação e meditação, voltei, cambaleante, à sala de jantar, onde encontrei as filhas conversando. Sucediam-se as surpresas. A mais velha casara-se e tinha ao colo o filhinho. E meu filho? Onde estaria ele?
Zélia instruiu convenientemente uma velha enfermeira e veio palestrar, mais calmamente, com as filhas.
- Vim vê-los, mamãe - exclamou a primogênita -, não só para colher notícias do Dr. Ernesto, como também porque, hoje, singulares saudades do papai me atormentam o coração. Desde cedo, não sei por que penso tanto nele. É uma coisa que não sei bem definir...
Não terminou. Lágrimas abundantes borbotavam-lhe dos olhos.
Zélia, com imensa surpresa para mim, dirigiu-se à filha autoritariamente:
- Ora essa! Era o que nos faltava!... Aflitíssima como estou, tolerar as suas perturbações. Que passadismo é esse, minha filha? Já proibi a vocês, terminantemente, qualquer alusão, nesta casa, a seu pai. Não sabe que isso desgosta o Ernesto? Já vendi tudo quanto nos recordava aqui o passado morto; modifiquei o aspecto das próprias paredes, e você não me pode ajudar nisso?
A filha mais jovem interveio, acrescentando:
- Desde que a pobre mana começou a se interessar pelo maldito Espiritismo, vive com essas tolices na cachola. Onde já se viu tal disparate?
Essa história dos mortos voltarem é o cúmulo dos absurdos.
A outra, embora continuasse chorando, falou com dificuldade:
- Não estou traduzindo convicções religiosas. Então é crime sentir saudades de papai? Vocês também não amam, não têm sentimento? Se papai estivesse conosco, seu único filho varão não andaria, mamãe, a praticar por aí tantas loucuras.
- Ora, ora - tornou Zélia, nervosa e enfadada -, cada qual tem a sorte que Deus lhe dá. Não se esqueça de que André está morto. Não me venha com lamúrias e lágrimas pelo passado irremediável.
Aproximei-me da filha chorosa e estanquei-lhe o pranto, murmurando palavras de encorajamento e consolação, que ela não registrou auditiva, mas subjetivamente, sob a feição de pensamentos confortadores.
Afinal, via-me em face de singular conjuntura! Compreendia, agora, o motivo pelo qual meus verdadeiros amigos haviam procrastinado, tanto, o meu retorno ao lar terreno.
Angústias e decepções sucediam-se de tropel. Minha casa pareceu-me, então, um patrimônio que os ladrões e os vermes haviam transformado.
Nem haveres, nem títulos, nem afetos! Somente uma filha ali estava de sentinela ao meu velho e sincero amor.
Nem os longos anos de sofrimento, nos primeiros dias de alémtúmulo, me haviam proporcionado lágrimas tão amargas. Chegou a noite e voltou o dia, encontrando-me na mesma situação de perplexidade, a ouvir conceitos e a surpreender atitudes que nunca poderia ter suspeitado.
À tardinha, Clarêncio passou, oferecendo-me o cordial da sua palavra amiga e reta. Percebendo meu abatimento, disse, solícito:
- Compreendo suas mágoas e rejubilo-me pela ótima oportunidade deste testemunho. Não tenho diretrizes novas. Qualquer conselho de minha parte, portanto, seria intempestivo. Apenas, meu caro, não posso esquecer que aquela recomendação de Jesus para que amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, opera sempre, quando seguida, verdadeiros milagres de felicidade e compreensão, em nossos caminhos.
Agradeci, sensibilizado, e pedi que me não desamparasse com o necessário auxílio.
Clarêncio sorriu e despediu-se.
Então, em face da realidade, absolutamente só no testemunho, comecei a ponderar o alcance da recomendação evangélica e refleti com mais serenidade. Afinal de contas, por que condenar o procedimento de Zélia? E se fosse eu o viúvo na Terra? Teria, acaso, suportado a prolongada solidão? Não teria recorrido a mil pretextos para justificar novo consórcio? E o pobre enfermo? Como e por que odiá-lo? Não era também meu irmão na Casa de Nosso Pai? Não estaria o lar, talvez, em piores condições, se Zélia não lhe houvesse aceitado a aliança afetiva? Preciso era, pois, lutar contra o egoísmo feroz. Jesus conduzira-me a outras fontes. Não podia proceder como homem da Terra.
Minha família não era, apenas, uma esposa e três filhos na Terra. Era, sim, constituída de centenas de enfermos nas Câmaras de Retificação e estendiase, agora, à comunidade universal. Dominado de novos pensamentos, senti que a linfa do verdadeiro amor começava a brotar das feridas benéficas que a realidade me abrira no coração.