quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 39 - ORADOR ALEXANDRE CAMARGO



39 – Ponderações

Decorrido um mês sobre os esponsais de Silva, certa noite, por solicitação de Odila, fomos em busca de Zulmira e Antonina para uma reunião íntima, no Lar da Bênção.
Ambas, alegres, revelavam-se enlevadas fora do corpo denso.
Enlaçadas e felizes, contemplavam a Terra e o Céu, tocadas de sublime esperança.
Reduzida assembléia de amigos aguardava-nos no domicílio de Blandina, em meio de cativantes manifestações de carinho e de apreço.
Dentre todas as afeições presentes, sobrelevava-se Irmã Clara, que viera igualmente ter conosco.
As duas excursionistas, ao contacto daquele ambiente de genuína fraternidade, rendiam-se ao êxtase da paz e da alegria.
Afigurava-se-lhes haver encontrado o paraíso, tão pura se lhes desenhava no semblante a exaltação interior.
No recinto amplo que Blandina adornara de flores, permutavam-se frases amigas e consoladoras impressões.
Multiplicadas notas de beleza enriqueciam a conversação, quando Antonina, mais lúcida que a companheira, indagou pela razão do favor de que se viam aquinhoadas.
O reconhecimento transbordava-lhes do coração, à maneira do perfume a evadir-se do frasco.
Clara afagou-a, de leve, e explicou, maternalmente:
– Filhas, em nossa romagem na vida, atravessamos épocas de sementeira e fases de colheita. Na missão da mulher, até agora, distância. Com a humildade e a fé, com o bom ânimo e o valor moral, venceram árduos conflitos que lhes fustigavam as melhores aspirações. Foram dias obscuros do pretérito refletidos no presente, contudo, agora, asserenou-se-lhes a estrada. A paciência a que se devotaram evitou a formação de nuvens da revolta e o céu se fez, de novo, claro e alentador. É como se o dia renascesse, resplendente de luz. O campo da existência exige mais trabalho e o tempo de semear ressurge alvissareiro.
A palestra em torno cessara de repente.
Os circunstantes buscavam ouvir a benfeitora, significando, com o silêncio, que nela se encarnava para nós a sabedoria.
Depois de ligeiro intervalo, nossa amiga continuou:
– “Agora, que a oportunidade favorece a renovação, é preciso saber reconstruir o destino.
“Não olvidemos. A vida reduz-se a triste montão de trevas, quando não se faz plena de trabalho. Fujamos à velha feira da lamentação, onde a inércia vende os seus frutos amargosos! Para levantar, porém, a escada de nossa ascensão, é imprescindível banhar o espírito, cada dia, na fonte viva do amor, do amor que recompensa a si mesmo com a alegria de dar! O Pai Celeste é onipresente, através do amor de que satura o Universo. O sentimento divino é a corrente invisível em que se equilibram os mundos e os seres. Do Trono Excelso nasce o eterno manancial que sustenta o anjo na altura e alimenta o verme no abismo. A mulher é uma taça em que o Todo-Sábio deita a água milagrosa do amor com mais intensidade, para que a vida se engrandeça. Irmãs, sejamos fiéis ao mandato recebido. Em muitas ocasiões, quando nos prendemos à lama do egoísmo ou ao visco do ódio, poluímos o líquido sagrado, transformando-o em veneno destruidor.
“Guardemos cautela, O preço da verdadeira paz reside no sacrifício de nossas existências. Não há sublimação sem renúncia no castelo da alma, como não há purificação no cadinho, sem o concurso do fogo que acrisola os metais!...”
Clara fitou Antonina, de modo particular, e aduziu:
– Filha, nossa Zulmira compreende hoje, sem necessidade de maior incursão no passado, o santo dever de asilar o pequeno Júlio no santuário materno...
Percebemos que a instrutora, registrando o imperativo do descanso mental para a segunda esposa do ferroviário, que vinha de terminar longas refregas na preservação da própria saúde, buscava poupar-lhe exercícios mnemônicos.
– Nossa amiga – prosseguiu, indicando Zulmira com o olhar – está consciente de que a maternidade a espera de novo, em tempo breve... E você?
Com a irradiante bondade que habitualmente lhe marcava a expressão fisionômica, acentuou:
– Recorda-se das experiências antigas e permanece atenta às razões que lhe inspiraram o segundo matrimônio?
Ante a surpresa que se estampou no semblante da interpelada, a orientadora, num gesto que nos era conhecido, nas operações magnéticas de Clarêncio, acariciou-lhe a fronte, de leve, e repetiu:
– Lembre-se! lembre-se!...
Bafejada pelo poder de Irmã Clara, em determinados centros da memória, Antonina fez pálida e exclamou, controlando a própria emoção:
– Sim, sou eu a cantora! Revejo, dentro de mim, os quadros que se foram!... Os conflitos no Paraguai!... Uma chácara em Luque!... a família ao abandono!... José Esteves, hoje Mário...
Sim, percebo o sentido de minhas segundas núpcias!...
Denotando aflição no olhar, acrescentou:
– E Leonardo? onde está Leonardo, o infeliz?
– Não precisa dilatar reminiscências – disse Clara, bondosa –; não nos achamos num gabinete de experimentos e sim numa reunião fraternal.
Fitando-a significativamente, ajuntou:
– Basta que você se recorde.
Em seguida, repartindo a atenção entre as duas, prosseguiu:
– “Brevemente, vocês serão chamadas a novo esforço, no apostolado materno. Zulmira recolherá o nosso Júlio na concha do coração e você, Antonina, restituirá a Leonardo Pires, seu avô e associado de destino, o tesouro do corpo terrestre. No santuário doméstico, as afeições transviadas se recompõem, a fim de que possamos demandar o futuro, ao clarão da felicidade.
“Filhas, ninguém avança sem saldar as próprias contas com o passado. Paguemos, desse modo, os débitos que nos aprisionam aos círculos inferiores da vida, aproveitando o tempo de detenção no resgate, em maior aprimoramento de nós mesmas. Amemos, aperfeiçoando-nos!
“Identifiquemos no lar humano o caminho de nossa regeneração!
A família consangüínea na Terra é o microcosmo de obrigações salvadoras em que nos habilitamos para o serviço à família maior que se constitui da Humanidade inteira. O parente necessitado de tolerância e carinho representa o ponto difícil que nos cabe vencer, valendo-nos dele para melhorar-nos em humildade e compreensão. Um pai incompreensivo, um esposo áspero ou um filho de condução inquietante, simbolizam linhas de luta benéfica, em que podemos exercitar a paciência, a doçura e o devotamento até ao sacrifício!... Especialmente, no tocante aos filhos, não nos esqueçamos de que pertencem a Deus e à vida, acima de tudo!...
Na esfera carnal, a Providência Divina nos sela a memória, no favor do renascimento, envolvendo-nos com o sopro renovador de abençoada esperança! Por isso mesmo, não nos cabe olvidar que os filhos são sempre laços preciosos da existência, requisitando-nos quilíbrio e discernimento em todas as decisões... Para desobrigar-nos da grande tarefa que a maternidade nos impõe, é imprescindível entender-lhes o psiquismo diferente do nosso, a exigir, muitas vezes um tipo de felicidade que não se harmoniza com o nosso modo de ser. Saibamos, assim, prepará-los, sem egoísmo, para o destino que lhes compete! O carinho escravizante assemelha-se a um mel envenenado, enredando-nos na sombra.
Conservemos nosso espírito arejado pela justiça, para que a nossa afetividade seja uma bênção com a possibilidade de educar os que nos cercam, na escola do trabalho salutar!...”
Na pausa que surgiu, espontânea, Zulmira indagou com simplicidade:
– Abnegada benfeitora, como agir para solucionar os problemas com segurança?
– Vocês superaram dias alarmantes de crise espiritual – informou a orientadora, prestimosa – e conquistaram o ensejo de reestruturação do próprio destino. Agora, repitamos, é tempo de semear. Valorizemos a oportunidade de reaproximação. São vocês dois núcleos de força, suscetíveis de operar valiosas transformações nos grupos domésticos a que se ajustam. Façamos da amizade o entendimento fraterno que tudo compreende e tolera, movimenta e ajuda, na extensão do Sumo Bem. A vizinhança e a convivência, no fundo, são dons que o Senhor nos concede a benefício de nosso próprio reajuste.
Porque Zulmira e Antonina ensaiassem perguntas novas, Clara acentuou:
– Não temam. A prece é o fio invisível de nossa comunhão com o Plano Divino e, à luz da oração, viveremos todos juntos.
Em todas as dúvidas, prefiramos para nós a renunciação construtiva. Situar a responsabilidade de nosso lado é facilitar a solução dos problemas.
Sorridente, rematou:
– Não nos esqueçamos do privilégio de servir.
Logo após, o pequeno Júlio foi trazido ao recinto por vasto cortejo de gárrulas crianças.
Risos e lágrimas se misturaram no louvor à Bondade Divina.
Depois de algumas horas consagradas ao reconforto, escoltamos, de novo, as duas mães, reconduzindo-as ao campo físico para o sublime labor no lar terrestre.