segunda-feira, 28 de maio de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES

EXCESSO E VOCÊ
Cap. XIII – Item 10


Amigo, Espiritismo é caridade em movimento.
Não converta o próprio lar em museu.
Utensílio inútil em casa será utilidade na casa alheia.
O desapego começa das pequeninas coisas, e o objeto conservado, sem aplicação no recesso da moradia, explora os sentimentos do morador.
A verdadeira morte começa na estagnação.
Quem faz circular os empréstimos de Deus, renova o próprio
caminho.
Transfigure os apetrechos, que lhes sejam inúteis, em forças
vivas do bem.
Retirem da despensa os gêneros alimentícios, que descansam esquecidos, para a distribuição fraterna aos companheiros de estô-mago atormentado.
Reviste o guarda-roupa, libertando os cabides das vestes que você não usa, conduzindo-as aos viajores desnudos da estrada.
Estenda os pares de  sapatos, que lhes sobram, aos pés descalços que transitam em derredor.
Elimine do mobiliário as peças excedentes, aumentando a alegria das habitações menos felizes.
Revolva os guardados em gavetas ou porões, dando aplicação aos objetos parados de seu uso pessoal.
Transforme em patrimônio alheio os livros empoeirados que você não consulta, endereçando-os ao leitor sem recursos.
Examine a bolsa, dando um pouco mais que os simples compromissos da fraternidade, mostrando gratidão pelos acréscimos da Divina Misericórdia que você recebe.
Ofereça ao irmão comum alguma relíquia ou lembrança afetiva de parentes e amigos, ora na Pátria Espiritual, enviando aos que partiram maior contentamento com tal gesto.
Renovemos a vida constantemente, cada ano, cada mês, cada dia...
Previna-se hoje contra o remorso de amanhã.
O excesso de nossa vida cria a necessidade do semelhante.
Ajude a casa de assistência coletiva.
Divulgue o livro nobre.
Medique os enfermos.
Aplaque a fome alheia.
Enxugue lágrimas.
Socorra feridas.
Quando buscamos a intimidade do Senhor, os valores mumificados em nossas mãos ressurgem nas mãos dos outros, em exalta-ção de amor e luz para todas as criaturas de Deus.


André Luiz

sexta-feira, 25 de maio de 2012

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO - JULIANA SOLARE E MARIA J. SANCHES


Capítulo 8 

 Rematara  os  apontamentos  que  me  propunha  alinhar,  e,  reconhecendo  que  a paciente  chorava,  em  prostração,  visivelmente  distanciada  do  exame  que  me  fora permitido desenvolver, Neves perguntou se podíamos trocar entendimento rápido.
— Como não?
— André — inquiriu ele, sem ocultar a perplexidade —‘ que vem a ser isto, meu amigo?  Você  percebeu?  Meu  neto,  o moço  é  meu  neto!...  Onde  estamos?  Quatro criaturas  noveladas...  Mulher  entre  pai  e  filho,  um  rapaz  entre  duas  irmãs...  
Ignorava  o  que  vemos.  Há  dias,  tento  confortar  minha  pobre  Beatriz,  só  isso.  Não fazia  a  menor  idéia  das  perturbações  que  a  rodeiam...  Ah!  meu  amigo,  como  pai, estaria agora mais consolado se a visse agonizando numa casa de loucos!...
E apontando Marita:
— Esta moça disse a verdade toda?
— Neves — acentuei —, você não desconhece que determinado grupo familiar se  define  como  sendo um  engenho  constituído  de  peças  diferentes,  embora ajustadas entre si para a função que lhe cabe. Cada um daqueles que o integram é parte das realidades que se entrosam no conjunto. Marita foi sincera. Expôs o que sabe. Ela é um pedaço da verdade que procuramos.
Para descobrir o que você conceitua por verdade toda é inevitável consultar as pessoas que ela hospeda no mundo intimo.
O  amigo debuxou o leve sorriso de quem reüne compreensão e conformidade.
Arrojando-se,  porém,  ao  desconforto  com  que  supunha  reverenciar  a  justiça, lastimou-se, áspero:
— Imagine  você!  Gilberto!  Um  menino...  Se  o  pai  auxiliasse!...  Mas  Nemésio  é um caso de manicômio. Não tem jeito...
Olhou, compadecido, para a moça em pranto e salientou:
— Veja esta menina. Correta, fiel... Submeteu-se, confiante. Que culpa no vaso de  porcelana, violentamente  destampado  por  um  animal?  E  esse  animal  é  um garoto que eu amo tanto!... Ela poderia ser a esposa que idealiza, mãe digna, dona de  casa  para  um  homem  de  bem...  No  entanto,  lá  se  vai  Gilberto,  embeiçado  por uma pinóia. Marina e Marita... Incrível hajam crescido sob o mesmo teto! São irmãs adotivas, como acontece à serpente e à pomba...
Diante da pausa curta, não me fiz tardio nas ponderações.
Investi-me,  indebitamente,  na  posição  de  conselheiro  fortuito  e  roguei  ao companheiro asserenar-se.
Achávamo-nos  ali  para  emendar,  proteger,  realizar  o  melhor.  Certo,  o  bem suscetível  de  ser plantado,  naquele  grupo,  redundaria  em  socorro  a  Beatriz.
Colocássemos nela o pensamento. A irritação lhe avinagraria o ânimo e ele, Neves, de  sentimento azedado,  lançaria  sobre  a  filha  ingredientes  fluídicos  de  índole negativa, arruinando-lhe as forças.
Paciência e atividade fraterna servir-nos-iam de apoio.
Além  do  mais,  não  conseguiríamos  precisar  até  quando  perdurariam  os sofrimentos  físicos  da esposa  de  Nemésio.  E’  justo  prever,  calcular.  Entretanto.
poderiam ocorrer determinações superiores, recomendando lhe fosse prolongado o prazo  de  estada  na  Terra.  Nada  impossível  viesse  a  continuar  adstrita  ao  corpo carnal,  relativamente  melhorada,  por  meses,  anos  talvez,  conquanto  os prognósticos  nunciassem  a  desencarnação  para  breve.  Mas,  e  se  acontecesse  o inverso? Exasperação ou desânimo, de nosso lado, marcariam o término das possibilidades  de  cooperação.  Os  supervisores  que  nos  dirigiam,  não  obstante compassivos e prestimosos, removernos-iam da cabeceira da doente, sem a menor dificuldade. Contavam com recursos para localizar-nos em tarefas, até mesmo mais suaves e mais reconfortantes, em outra parte, como quem nos agaloava em serviço.
Agiriam,  assim,  em  proveito  da  própria  doente,  impedindo  os  prejuízos  que  lhe pudéssemos acarretar com qualquer carga de vibrações desconcertantes.
Neves tolerou o aviso com paciência.
Acabou rogando compreensão. Retirara-se do convívio familiar, por longo tempo —  justificou-se  —,  a  fim  de  adestrar-se  em  cordura  e  desprendimento.
Regressando,  no  entanto,  ao  abrigo  doméstico,  topava,  a  cada  instante,  em  si mesmo,  o  homem  que  fora.  Comodista,  agarrado  às  raízes  consanguíneas, absorvido no bem-estar dos que reputava como sendo flores no tronco do coração.
Sabia-se  em  prova  árdua.  Acusava-se  analisado,  esquadrinhado,  sopesado,  na própria  assimilação  dos  princípios  de  caridade  e  indulgência  que  passara  a ministrar, sob o influxo dos mentores sábios e amigos que lhe haviam descerrado a porta das escolas de aperfeiçoamento nas esferas superiores.

Ao  jeito  de  qualquer  pessoa  terrestre,  encerrando  consigo  méritos  e  falhas, declarou-se  disposto  a  dominar-se,  e,  impelindo-nos  a  recordar  antigos condiscípulos da fase juvenil, quando encorajados e vacilantes ao mesmo tempo na solução  dos  problemas  de  autocontrole,  solicitou-nos  colaboração  a  fim  de  que  se mantivesse calado, tanto quanto possível, na presença dos instrutores.
A submissão do companheiro dava para comover.
Acreditava-se  temporariamente  perturbado,  acentuou  humilde.  Partilhava  as agruras da filha.
Voltara  instintivamente  à  agressividade  e  à  extroversão  que  lhe  marcavam  o temperamento  no  passado;  entretanto,  comprometia-se  à  revisão  de  atitudes.
Apesar disso, que lhe relevássemos qualquer desabafo inconveniente, quando nos demorássemos  a sós. Sempre chegava o momento em que ele, por mais aplicado ao  burilamento  íntimo,  sentia  que  as  excitações,  longamente  acumuladas,  lhe  pesavam no espírito, qual nuvem de gases comburentes. Desinibia-se ou dementava-se, ao modo de alguém que carregasse bombas estourando no próprio peito.
Fi-lo  sossegar-se.  Não  precisava  vexar-se  daquela  maneira.  Entendia  tudo, perfeitamente.  De  nossa  parte,  não  apresentávamos  qualquer  traço  de superioridade. Também nós, criatura humana desencarnada, conhecíamos de sobra os lances da batalha interior, em que o adversário somos sempre nós mesmos, na arena das qualidades inferiores que nos tocam sublimar.
Desaconselhável, porém, prosseguir, conversando à margem do serviço.
A  frágil  menina  desoprimia-se,  em  pranto.  Choro  vozeado,  não  obstante discreto. Soluços.
Dispúnhamo-nos a intervir, quando sucedeu o inesperado.
Cláudio  batia,  de  leve,  à  porta,  decerto  incomodado  pelo  som  lastimoso daqueles gemidos que Marita, em vão, buscava reprimir.
Respiramos confortados.
Indubitavelmente,  o  inquieto  coração  paternal  vinha  ao  encontro  da  moça desfalecente,  ansiando  soerguer-lhe  as  energias,  e,  nós  próprios,  através  de estímulos magnéticos, insistimos com ela para que atendesse.
Empregando  vontade  e  forças  para  vencer  a  crise  de  lágrimas,  a  jovem  anuiu aos nossos apelos e cambaleou, desaferrolhando a passagem.
Cláudio  entrou,  mas  não  vinha  só.  Um  daqueles  dois  companheiros desencarnados que lhe alteraram a personalidade, justamente o que se abeirara dele, em primeiro lugar, para o trago de uis que, enrodilhava-se-lhe ao corpo.
O  verbo  enrodilhar-se,  na  linguagem  humana,  figura-se  o  mais  adequado  à definição  daquela  ocorrência  de  possessão  partilhada,  que  se  nos  apresentava  ao exame,  conquanto  não  exprima,  com  exatidão,  todo  o  processo  de  enrolamento fluídico,  em  que  se  imantavam.  E  afirmamos  “possessão  partilhada”,  porque, efetivamente,  ali,  um  aspirava  ardentemente  aos  objetivos  desonestos  do  outro, completando-se, euforicamente, na divisão da responsabilidade em quotas iguais.
Qual acontecera, no instante em que bebiam juntos, forneciam a impressão de dois seres num corpo só.
Em  determinados  momentos,  o  obsessor  afastava-se  do  companheiro,  a distância  de  centímetros;  contudo,  sempre  a  enlaçá-lo,  copiando  gestos  de  felino, interessado  em  não  perder  o  contacto  da  vitima.  Achavam-se,  entretanto, irrestritamente conjugados em vinculação recíproca.
Isso conferia ao semblante de Cláudio expressão diferente, o hipnotizador, cuja visão espiritual não nos atingia, senhoreava-lhe sentimentos e idéias, enquanto ele se deixava  prazerosamente  senhorear.  O  olhar  obediente  adquirira  a  turvação característica  dos  alucinados,  O  recém-chegado  transfigurara-se.  Estranho  sorriso franzia-lhe  a  boca.  Diante  das  percepções  limitadas  de  Marita,  era  ele  um  homem comum; no entanto, à nossa frente, valia por duas personalidades masculinas numa só  representação.  Dois  Espíritos  exteriorizando  impulsos  aviltados, complementando paixões idênticas na mesma tônica da afinidade total.
Neves  fitou-me,  espantado.  Mas,  não  era  só  ele,  menos  experiente, que  jazia transido, amarrotado. Nós também, acostumados, no plano espiritual, aos embates do sentimento, alimentávamos aflitivas apreensões.
Aquele  quarto,  dantes  povoado  pelos  devaneios  doridos  de  uma  criança, metamorfoseara-se  em  jaula,  onde  Cláudio  e  o  vampirizador,  singularmente brutalizados pelo desejo infeliz, constituíam juntos uma fera astuciosa, calculando o caminho mais fácil de alcançar a presa.
Um  clarividente  reencarnado  que  contemplasse  o  dono  da  casa,  naquela  hora, vê-lo-ia noutra máscara fisionômica. 
A  incorporação  medianímica,  espontânea  e  consciente,  positivava-se  em plenitude  selvagem.  O  fenômeno  da  comunhão  entre  duas  inteligências  —uma delas,  encarnada,  e  a  outra,  desencarnada  —,  levantava-se,  franco;  ainda  assim, desdobrava-se  tão  agreste  quanto  o  furacão  ou  a  maré,  que  se  expressam  por forças  ainda  desgovernadas  da  Natureza  terrestre,  não  obstante  a  ocorrência,  do ponto de vista humano, efetivar-se na suposta mudez do plano mental.
Para  nós,  porém,  não  se  instituíam  apenas  as  formas-pensamentos,  dando conta das intenções libertinas da dupla animalizada, com estruturas, cores, ruídos e movimentos  correlatos;  amedrontava-nos  igualmente  escutar  as  vozes  de  ambos, em diálogo, claramente perceptível.
As palavras escapavam do crânio de Cláudio, aparentemente silencioso para a filha adotiva, qual se a cabeça dele estivesse transfigurada numa caixa acústica de aparelho radiofônico.
Magnetizador e magnetizado denotavam sensualidade do mesmo nível.
Refletindo na corrida à garrafa, momentos antes, avaliávamos o perigo aberto à menina indefesa. A diferença, ali, é que Cláudio ainda encontrava recursos a fim de parlamentar, dentro da hipnose — hipnose que ele, aliás, amimalhava.
Discorria o obsessor, comovendo-o, no intuito patente de arruinar-lhe os restos do escrúpulo, através da emoção:
— Agora, agora sim!... O amor, Cláudio, é isto... Esperar, por vezes, anos a fio, para  dominar  a  felicidade  num  simples  minuto.  Existem  mulheres  aos  milhões; entretanto, esta é a única. A única que nos poderá, enfim, aplacar a sede. Pontos de apoio alongam-se em toda parte, mas o pássaro viaja, léguas e léguas, suspirando por descansar na penugem do próprio ninho... Na fome física, todo alimento serve, mas no amor... No amor, a felicidade é semelhante ao aro de que o homem possui a metade e a mulher detém a outra. Para que a euforia vibre perfeita no círculo, é imperioso que as metades sejam da mesma substância. Ninguém alcança a fusão de um  pedaço  de  ouro  com  um  pedaço  de  madeira.  Paganini  tocou  numa  corda  só; entretanto, a corda se harmonizava com ele. Jamais arrancaria no mundo o menor sinal do próprio gênio, se apenas dispusesse para o violino das cordas de cânhamo, ainda mesmo que essas cordas o desafiassem a toneladas. Cada homem, Cláudio, para  realizar-se  nos  domínios  da  vitalidade  e  da  alegria,  há  de  encontrar  a  mulher magnética  que  lhe  corresponde,  companheira  na  afinidade  absoluta,  capaz  de  lhe oferecer a plenitude interior, que transcenda convenções e formas ... (3)
Pausava-se  a  voz,  por  segundos,  para  continuar,  suplicante,  proclamando sofismas arguciosos:

— Vamos!  Marita  é  nossa,  nossa!...  Somos  homens  sequiosos,  sofredores...
Apiedamo-nos  de  enfermos  abandonados,  administrando-lhes  remédio  seguro; somos o apoio certo de mendigos que tropeçam às  tontas...  Acaso,  mereceremos  simpatia  menor?  Os  que  enlouquecem, esfaimados  de  ternura,  serão  piores  do  que  os  infelizes, a se estirarem na rua por falta de pão?  Você,  Cláudio,  tem  amargado  angustiosa  carência.  Um  pedinte  na praça  não  tem  leve  pitada  de  suas  aflições.  De  que  valem  vencimentos  fartos  e experiências de lupanar, quando o amor verdadeiro grita insatisfeito na carne? Você vive no lar, à moda de cão na sarjeta. Escoiceado, ferido... Marita é a compensação.
       O cultivador, porventura, não tem direito ao fruto que amadurece? Você abrigou esta  menina  nos  braços,  embalou-a  no  peito;  viu-lhe  o  crescimento,  como  quem acompanha  a  evolução  da  flor  que  desabrocha,  e  acabou  descobrindo  nela  o  seu tipo.  Não  estará  você  cansado  de  vê-la  e  desejá-la,  ardentemente,  todos  os  dias, resignando-se ao suplício da distância, vivendo tão perto?
— Criei-a,  no  entanto,  como  sendo  minha  própria  filha...  —  suspirou  Cláudio, crendo falar para si mesmo.
— Filha? — insistiu o sedutor. — Mero artifício social. Apenas mulher. E quem assegurará que ela também não espera por seu beijo com a sede da corça, presa ao pé da fonte? Você não é nenhum neófito; sabe que toda mulher estima render-se, em trabalhosa porfia.
Conjeturando-se  dividido  mentalmente  em  duas  personalidades  distintas,  a  de pai e a de enamorado, Cláudio argumentou, desencorajando-se.
Não  desconhecia  que  a  moça  já  se  revelara.  Elegera  Gilberto,  o  rapaz  com   quem  se  dava  a  passeios  freqüentes.  Era  impossível  que  o  amasse,  a  ele, Cláudio,  em  segredo.  Não  alentava  dúvidas.  Ciumento,  acompanhara-os, discretamente,  em  excursões  domingueiras,  sem  que  lhe  desconfiassem  da presença ou do zelo ofendido. Nunca lhes ouvira as palavras; entretanto, apanhara-lhes,  às  ocultas,  os  gestos  equívocos.  Admitia-se  com  razão  para  convidar  o estouvado  a  compromisso.  Calculara,  calculara.  Todavia,  quando  se  inclinava  a pedir  conselho  de  autoridades  policiais,  chocara-se  com  o  imprevisto.  Homem  de prolongada vida noturna, passou a esbarrar com a filha, em recantos de prazer, não apenas  na  companhia  de  Nemésio  Torres,  o  cavalheiro  que  desempenhava,  junto dela,  a  função  de  chefe,  mas  igualmente  com  Gilberto,  o  filho,  em  posição comprometedora.  Os  desregramentos  de  Marina,  desde  muito,  se  haviam  tomado para  ele  em  calamidades  inevitáveis.  A  principio,  atormentara-se.  Pai  contundido pela licenciosidade em família.
Contudo,  Márcia,  a  esposa,  ditava  os  figurinos.  Nos  primeiros  tempos  do consórcio,  emergira  entre  ambos  a  muralha  da  discórdia,  da  discórdia  que  lhes emanava do âmago, em ondas torvelinhantes de aversão instintiva, cuja existência não haviam sequer pressentido, de leve, antes do casamento.
De  começo,  rixas  e  discussões.  Depois,  a  indiferença,  o  cansaço  total  um  do outro. Aventuras unilaterais. Cada qual em seu caminho.
Marina, evidentemente, seguira a trilha materna. Desligara-se dele. Classificava a filha, em seu juízo de homem, por mulher livre; contudo, tolerável no lar, enquanto exercesse  a  profissão  que  lhe  assegurava  sustento  às  fantasias.  Em  casa, habitualmente reuniam-se à mesa, a esposa, Marina e ele, à feição de três animais inteligentes, dissimulando o desprezo recíproco, através da convenção ou do chiste.
No  conceito  dele,  porém,  Marita  definia-se  à parte.  Flor  no  ramo  espinhoso daqueles antagonismos flagelantes.
Afastara-a, intencionalmente, na direção do serviço. Inventara meios de obrigá-la  a  tomar  refeições  em  Copacabana,  para  que  as  picuinhas  do  círculo  doméstico, no Flamengo, não lhe torturassem o espírito.
Espiava-lhe os passos, ouvia-lhe os chefes.
Uma vez instalada no exercício da nova condição, ele mesmo, quanto possível, manter-lhe-ia a independência.
Amando-a com entranhado carinho mesclado de egoísmo tirânico, feriam-lhe as humilhações que a esposa e a filha não regateavam a ela, no trato mais íntimo.
Queria-a para ele, com a ternura de um pombo e com a brutalidade de um lobo.
Não concordava lhe dessem a beber afronta ou sarcasmo. Tais atitudes acabaram  revestindo-a  de  liberdade  mais  ampla,  que  Marita  utilizava  no  culto  afetivo  a  Gilberto, de vez que, por vocação, se distanciava de festas. Márcia e Marina, sempre mais  absorvidas  nas  extravagâncias  em  que  se  inculcavam  por  duas  irmãs doidivanas, nem deram por isso. A ausência dela como que as aliviava de um peso.
Certificando-se  de  que  não  lhe  dobrariam  o  caráter,  acusavam-se  felizes  por  não serem induzidas a suportar-lhe a fiscalização.
Embrenhado nos raciocínios que lhe derivavam, rápidos, do ligeiro auto-exame, sob o controle do vampirizador que o influenciava, recordava-se Cláudio de que há muitos dias concluíra que Gilberto não hesitava embair as duas moças, e, depois de refletir maduramente, resolvera silenciar.
Não  seria  conveniente  sopesar  as  próprias  vantagens?  Denunciar  Marita  por jovem  ultrajada  redundaria  em  arredar-lhe  a  confiança.  Apontar  Marina  no  páreo significava insultar a filha adotiva, aplicando-lhe temíveis lesões de ordem moral. Ardiloso,  deixava  o  tempo  correr,  achando  preferível,  a  seu  ver,  fosse  Marita machucada  pelas  circunstâncias.  Quando  se  voltasse  para  ele,  fatigada  e
desiludida, convertê-la-ia, talvez sem dificuldade, na amante a que aspirava.
Engodado  pelo  interlocutor  que  lhe  era  invisível,  enfileirou  as  reflexões apressadas que lhe vinham à mente; no entanto, assoprado agora por ele, deixava-se  iludir  por  imaginosa  expectativa,  formulando-se  outra  espécie  de  inquirições.
Envolvido  nas  sutilezas  do  obsessor,  esmerilhava  o  próprio  íntimo,  tentando  saber se estava sendo inspirado com segurança naquela hora. Andaria enganado? Acaso, Marita  entregar-se-ia  a  Gilberto,  pensando  nele,  Cláudio,  de  quem  se  afastava  por escrúpulos  de  consciência?  Semanas  havia,  fizera-se  a  jovem  mais  esquiva.
Estranhara.  Darse-ia  o  fato  de  recolher-lhe telepaticamente as apreensões ou deliberara  fugir-lhe,  de  propósito,  a  fim  de  ocultar  a  simpatia  amorosa  que, possivelmente, lhe impelia o coração de mulher a querê-lo?

Ele mesmo fornecia ao perseguidor a argumentação com que se lhe arruinava a  resistência.
Até  ali,  trancara,  bem  ou  mal,  diante  da  jovem,  os  sentimentos  que  lhe transbordavam do peito. Não chegara, porém, aos limites do enigma? Caber-lhe-ia sofrear-se até à loucura?
O hipnotizador, em cujo semblante se podia ler a desmesurada sede de volúpia, sorriu, satisfeito, e sussurrou, mentalmente, ganhando preponderância:
— Cláudio, compreenda. Iniciativa, em assunto de amor, não é passo feminino.
Velho rifão: «laranja à beira de estrada não tem preço». Disse um filósofo: «prazer sem conquista é bife sem sal.
Adiante, adiante!
Esquadrinhando o imo do companheiro, à caça de recursos com que o próprio Cláudio lhe pudesse fortificar a posse magnética, o obsessor, por segundos, cravou nele o olhar  penetrante.  E,  decerto,  exumando-lhe  as  desrespeitosas  ilusões  em matéria  de  ligação  afetiva,  que  ele,  Cláudio,  embutira  na  cabeça,  desde  menino, começou a martelar:
— Cigarro!  Lembre-se  do  cigarro  e  da  boca!  Manita  é  mulher  igual  às  outras...
Cigarro,  cigarro  na  vitrina...  Cigarro,  cigarreira,  piteira  e  charuto  não  escolhem comprador... A carne é flor desabrochada na terra do espírito, só isso. O cultivador não sabe o que seja a formação essencial do canteiro, tanto quanto desconhece o que  está  no  fundo  da  planta.  Proclamava  Salomão  que  «tudo  é  vaidade»; acrescentamos que tudo é ignorância. Entretanto, na superfície das situações e das coisas,  é  possível  enxergar  claramente.  Flor  que  ninguém  colhe  é  perfume  que  se perde.  Hora  de  amor  desaproveitada  vem  a  ser  pétala  no  estrume.  Rosa  murcha, adorno para o chão. Carne sem viço, adubo para a erva. Aproveite, aproveite...
Percebíamos  que  o  desencarnado  não  era  simples  dipsomaníaco,  que o álcool apenas lhe constituía porta de escape, de vez que as palavras que selecionava para aliciar influência e o jeito astucioso de sensibilizar o parceiro, antes de empalmar-lhe o  raciocínio,  demonstravam  técnicas  de  exploradores  consumados  das  paixões humanas.
Aquele perseguidor não era vagabundo acidental.
O  anseio  incontido  com  que  impelia  Cláudio  para  a  jovem  e  a  expressão  com que a fitava, apaixonadamente, pareciam chegar de muito longe. Mas a ocasião não comportava  investigações  de  retaguarda.  O  momento  reclamava  atenção.
Necessário  contornar  obstáculos,  improvisar  medidas  socorristas  que  protegessem a triste menina desarmada.
O excêntrico dueto prosseguiu entre os dois amigos que se entendiam, sem o concurso da boca.
O magnetizador pressionava, o magnetizado resistia.
Por fim, Cláudio avançou dois passos, quase vencido.
Idéias,  contradições,  estímulos  e  arrebatamentos  abalroavam-se-lhe, violentamente,  no  espaço  estreito  do  crânio.  A  terrível  batalha  interior  de  alguns instantes esmorecia. A natureza animal ampliara domínio. O sedutor desencarnado rematava a obra.
Não  mais  a  gritaria  de  Espírito.  Não  mais  o  entrechoque  das  mudas ponderações entrecortadas a esmo.
Sim  —  deduzia,  transtornado  —.  ele  era  homem,  homem...  Marita, incontestavelmente  mais  jovem,  não  passava  de  mulher.  Não  lhe  cabia,  portanto, diminuir-se. Ela chorava, ele podia acalentá-la, aquecer-lhe o coração.
Alucinado  de  lascívia,  envolveu-a  em  longo olhar,  inferindo  que,  não  fossem  o temor  de  vê-la  fugir  em  definitivo  e  o  receio  de  verificar-se  por  ela  própria desonrado,  tomar-lhe-ia  o  colo  entre  os  braços,  qual  guri  destemeroso,  buscando desentranhar-lhe a ternura.
Entanto, os derradeiros arrazoados esmaeciam. Esbarrondara-se, dentro dele, a última  trincheira  que  lhe  cerceava  os  impulsos.  Sujeitou-se  de  todo  à  direção  do vampirizador que o comandava. Colaram-se, fundiram-se, enfim.
Marita  ergueu  para  ele  os  olhos  súplices,  imitando  as  atitudes  da  ave perseguida,  para  quem  não  resta  outra  alternativa  que  não  seja  esperar  pela piedade do atirador.
Jungido  ao  companheiro  infeliz,  Cláudio  adiantou-se,  acomodando-se, assumindo  ares  de  protetor,  resolvido  a  ultrapassar  os  limites  da  afeição  pura  e simples.

—  Pelo  que  vejo,  esse  pilantra  do  Gilberto  vem  abusando...  —  sussurrou, adocicando a voz.
Em  seguida,  tomou-lhe  a  destra  pequena  entre  as  suas  mãos  nervosas,  mal disfarçando a lubricidade duplicada que o possuía.
A  jovem  registrou  o  impacto  das  forças  aviltadas  a  lhe  requisitarem  adesão, calando a repulsa.
Escutara  o  apontamento,  num  misto  de estranheza e revolta, mas, reprimindo-se,  passou  a  responder,  esforçando-se  por  desculpar  o  rapaz  e  atribuindo  a  si  o desmantelo emotivo; entretanto, à medida que o pai adotivo dilatava a liberdade das atitudes, apagava-se-lhe a energia para a conversação, até que silenciou, como se o interesse, ao redor do problema, houvesse desaparecido de chofre. E, num átimo,
realinhou na mente as impressôes amargas dos tempos últimos...
Assinalara,  havia  meses,  a  reservada  mudança  do  trato  paterno.  Desconcertava-se  ao  perceber  que  Cláudio  demorava  sobre  ela  o  olhar  insistente.
Amedrontara-se. Reagira, porém, energicamente, contra si mesma. Consagrava-lhe o  respeitoso  amor  de  filha  reconhecida  e  não  lhe  cabia  conspurcar  sentimentos sem ore mantidos imáculos, desde a intimidade da infância. Opusera-se à suspeita.
Lutara, não queria aceitar-se visada por ele, sob a inspiração de qualquer propósito menos digno.
Ainda  assim,  por  mais  brandisse  argumentos  contra  si  própria,  inexplicável sensação  advertia-lhe  o  espírito,  exortando-a  a  policiar  as  maneiras  com  que Cláudio  agora  a  cercava.  Pelos  motivos  mais  fúteis,  exagerava  cuidados, multiplicando frases de dúbio sentido.
Torturada  pela  dúvida,  afirmava  a  sua  desconfiança  e  desdizia-se, intimamente.
Naquele  instante,  porém,  o  instinto  de  defesa  sentenciava  prudência, segredava-lhe vigilância.
Pressentindo,  em  espírito,  a  presença  do  «outro»,  arregimentou,  sem  querer, todas as suas forças na posição de alarma.
O contacto de Cláudio comunicava-lhe insegurança.
Batia-lhe  o  coração  desritmado,  ao  senti-lo  ensaiando  meios  de  enlaçar-se  a ela, ávido de carinho.
—  Não  negue,  filha  —  entaramelou-se  o  pai,  um  tanto  trêmulo  —,  não  desejo contrariá-la,  mas  venho  analisando,  analisando...  Você  não  nasceu  para  esse meninão  caprichoso.  Compreendo  você...  Não  sou  apenas  seu  pai  pelo  coração, sou também seu amigo... Esse rapaz...
Marita cobrou ânimo e, antecipando-se-lhe às ilações reticenciosas, explicou ingenuamente que amava a Gilberto, que lhe hipotecava confiança, que o pai estivesse tranqüilo, e acentuou, sorrindo quase, que as lágrimas daqueles minutos não se reportavam a qualquer desgosto e sim a indisposição orgânica indefinível.
Deduziu, de relance, que seria justo desvelar-lhe mais ampla zona da alma, anulando mal entendidos no nascedouro, e, intencionalmente, prosseguiu confidenciando, a expor-lhe, com lealdade, a expectativa com que aguardava o anel esponsalício, determinada a medir as reações de Cláudio, a fim de orientar, sem
tergiversações, a própria conduta.
Atrapalhava-se,  todavia,  ao  consignar-lhe  a  indignação  pintada  no  rosto.  Na meia-luz do quarto, podia ver-lhe a face congesta, nos esgares da ira.
Compreendeu que a borrasca naquele espírito voluntarioso se mostrava prestes a estalar; no entanto, continuou apresentando razões para colher reações.
E a explosão do interlocutor não se fez demorar.
Cerrando os punhos, Cláudio cortou-lhe a conversa, exclamando, irritado:
— Percebo, percebo, mas não precisa maçar-me... Estimo, porém, que você me conheça melhor o devotamento.
Avançando  na  intimidade,  qual  se  aspirasse  a  enredá-la  no  próprio  hálito, continuou — agindo por si e pelo «outro» — na queixa primorosamente lavrada:
— Filha, é necessário que você me ouça, que me entenda...
E, assaltando-lhe a emotividade para esbater-lhe a resistência:
-  Você  não  desconhece  o  que  sofro.  Imagine  a  tragédia  de  um  homem  que morre, a pouco e pouco, desolado, sozinho... de um homem que dá tudo, sem nada receber... Você cresceu, vendo isso... Infelicidade, solidão. É impossível que não se condoa.  Esta  casa  é  meu  deserto.  Chego  esfalfado,  diariamente,  sem  achar  mão amiga.  Márcia,  embora  quarentona,  vive  de  jogatinas  e  festas...  Você  está  moça, inexperiente,  mas  deve  saber.  Desculpe-me  o  desabafo,  mas  os  próprios  amigosme  lastimam  o  drama...  Estará  você  em  condições  de  avaliar  os  conflitos  de  um pobre  diabo  algemado  a  companheira  de  vida  irregular?  Ela,  porém,  não  me  fere com isso. No começo, o corte sangrava, mas coração calejado não sente. Habituei-me  a  detestá-la.  Dar-lhe  o  dinheiro  que  exige,  para  que  suma  depressa,  é  hoje  o que me consola... Por outro lado, Marina, cujo afeto poderia proporcionar-me algum reconforto, faz empenho de humilhar-me com a própria devassidão! Sou um homem
falido. Dias surgem, nos quais me reconheço o palhaço mais desditoso da Terra...
Nesse  ponto,  sob  o  governo  do  obsessor,  a  voz  de  Cláudio  entravara-se  na garganta.
Alterara-se de todo, comovido na aparência.
Com isso, amolgara-se a jovem, sinceramente compadecida, e, concluindo que atingira o alvo a que se propunha, acrescentou, exaltado:
—  Só  você,  somente  você  me  prende  ao  lar  infeliz.  Ainda  agora,  o  Banco  me propôs excelente comissão em Mato Grosso; entretanto, pensei em você e desisti...
Por você, filha, tolero os insultos de Márcia, as ingratidões de Marina, os dissabores da profissão, os aborrecimentos cotidianos. Conseguirá você compreender-me?
A  moça  suspirou,  diligenciando  expulsar  de  si  as  vibrações  de  sensualidade com que a “dupla” lhe envolvia a cabeça, e falou, calma:
— Sim, papai, entendo as dificuldades que são nossas...
— Nossas! — repetiu ele, ganhando novas energias para chegar à meta —, sim, minha filha, as dificuldades são nossas, mas é preciso que você saiba que nossas também devem ser as esperanças e as alegrias. Anseio pelo instante em que você me veja não exclusivamente por pai...
Atentando  no  olhar  da  infortunada  menina  que  se  tocara  de  imenso  espanto, acentuou num supremo esforço por revelar-se:
— Marita, pareço um velho, mas você me faz jovem... O coração é seu, seu...
O obsessor, com trejeitos de lascívia, prelibava o lance final.
Marita,  no  entanto,  percebendo  a  intenção  inequívoca  do  homem  apaixonado, que arrojava o rosto maduro e bem tratado sobre o dela, intentou recuar.
— Não, não! — gemeu, suplicante, ao sentir-lhe o hálito.
Cláudio, porém, cujas forças jaziam somadas à valentia do «outro», enlaçava-lhe o busto, copiando o procedimento de um jovem mal comportado.
Qual se houvéramos combinado previamente a defesa. Neves e eu saltamos na direção  dela,  ofertando-lhe  as  mãos,  para  que  pudesse  arrancar-se,  e  a  vitima, crendo  apoiar-se  nos  próprios  recursos,  conseguiu  levantar-se  num  prodígio  de ligeireza,  estacando,  à  frente  dele,  que  a  fitava,  agora,  com  a  expressão desconfiada de um animal repentinamente ferido.
— Papai, não me faça mais infeliz... Poupe-me a humilhação!...
O dono da casa, ao impacto da recusa imprevista, pareceu desligar-se do amigo desencarnado,  lembrando  a  fera  que  se  desvencilhasse,  de  inopino,  do encantamento  mantido  pelo  domador;  entretanto,  o  parceiro  trazia  uma  carga  de paixão  vigorosa  demais  para  desistir  facilmente.  Retomou,  impetuoso,  o  próprio domínio, a ponto de antepor a máscara fisionômica ao semblante de Cláudio. Cerra-va  os  punhos,  despedia  cólera  letal.  Estabelecia-se  pavoroso  conflito  na  mente  de cada um. Num deles, o desapontamento e o desespero, no outro, a malignidade e a agressão.
O pai  adotivo,  carregando  o  estranho  fardo  de  angústia,  mesclada  de  revolta, incapaz de compreender os sentimentos contraditórios que o faziam avizinhar-se da loucura, passou a clamar, inconsiderado:
— Isto é a explosão de muitos sofrimentos acumulados. Fiz tudo para esquecer e não pude...
Que fazer com esta inclinação que me arrasta? Sou palha no vento, minha filha!
Desde que a vi menina, carrego esta idéia fixa... Se eu fosse religioso, diria que um demônio mora dentro de mim.
Um demônio que me atira constantemente sobre você. Em sua presença, quero pensar em você, como sendo minha filha, crescida em meus braços e não posso...
Li muitos livros de Ciência para saber o que se passa, mas o enigma continua. Quis procurar um médico; entretanto, senti vergonha de mim próprio... É só você que eu vejo em tudo! Odeio Márcia, desprezo Marina...
Tenho  acalentado  a  esperança  de  uma  viuvez  que  nunca  chega,  a  fim  de oferecer-me a você, sem condições... Tenho ciúmes, ciúmes que me afogam a alma em labaredas... Detesto esse rapaz leviano, inconsciente...
A  voz  de  Cláudio  amaciara-se,  adquirindo  tom  lacrimoso.  Identificava-se-lhe  o abalo sentimental. O perseguidor duplicou em desprezo tudo o que ele exprimia em emotividade,  provocando  inesperada  reviravolta.  O  pai  enternecido  deu  lugar  ao enamorado violento.
Avinagrara-se  a  ternura,  semelhando  calda  azedada.  Revelando  súbito  transtorno,  deitou  à  filha  adotiva  um  olhar  de  escárnio,  traumatizando-a  de  horror,  a esbravejar, dementado:
—  Não,  não  posso  humilhar-me  assim.  Você  sabe  que  não  sou  nenhum  tonto.
Há  quinze  dias,  acompanhei  vocês  dois  a  Paquetá,  sem  que  me  vissem...  Segui-lhes  o  passo  descuidado  e  feliz,  como  se  eu  fosse  um  cão  escoiceado  pelo destino... Ao cair da noite, vi quando vocês dois se enlaçaram, trocando promessas e falando bobagens, na Ribeira... Arrastei-me no matagal e vi tudo... Desde então, enlouqueci...  Pelo  jeito,  vocês  andam  acanalhados,  há  muito  tempo...  Você!  você, que eu supunha intangível, entregue a um menino doido!... Ingênua! Julga que não tenho motivos para expulsá-la! Você imagina que me falta coragem para chamar às contas esse filho de papai rico»?
Alterando o tratamento paternal de que se valia, rugiu, brutalizado:
—  Marita,  fique  sabendo  que  você  agora  não  é  mais  criança!  Você  é  apenas mulher, não passa de mulher, mulher...
A  jovem  soluçava.  Reconhecendo-se  descoberta  nas  mais  íntimas  nuanças  da conduta impensada, não ousava erguer a fronte.
Neves, incapaz de remover o próprio assombro, abeirou-se de mim, rezingando:
— Você está vendo? Este homem será louco ou desbriado?
Temendo-lhe a impulsividade, fi-lo recordar as atitudes ponderosas e cristãs do irmão Félix,  informando,  discretamente,  que  me  achava  em  oração,  a  exorar  o auxílio  da  esfera  superior,  porqüanto,  ali,  não  dispúnhamos  de  maiores  recursos para impedir um assalto passional de penosas conseqüências.
—  Oração?  —  chasqueou  o  companheiro,  positivamente  desencantado  —  não creio que os anjos se ocupem de casos como este. Aqui, meu amigo, e em outros lugares onde tenho visto muito bicho velho fantasiado de gente, só a polícia...
Efetivamente,  os  anjos  pessoalmente  não  nos  atenderam  às  rogativas silenciosas, enunciadas desde o início da cena desagradável; no entanto, o socorro apareceu.
Ouviu-se  barulho  de  ferrolho  em  ação  e  alguém  penetrou  em  casa, ruidosamente.
Sobreveio o choque providencial.
Cláudio, em sobressalto, desligou-se do hipnotizador, que se lhe postou de lado, um tanto desenxabido.
— Que é que há?
Marita  cobrou  energias,  regressando  ao  leito,  enquanto  o  chefe  do  lar  se recompunha à pressa.
Espantados, notamos, porém, a surpreendente capacidade de fabulação da qual Nogueira dava mostras. Ele próprio, sem qualquer ingerência do obsessor, começou a tramar em pensamento a desculpa com que se justificaria.
Agindo  quase  que  mecanicamente,  libertou  a  porta  que  havia  prendido, perspicaz, abriu janela próxima e, de imediato, esbelta senhora surgiu, indagando, apreensiva:
— Que é que há?
Tratava-se da esposa que voltara, de imprevisto.
Dona  Márcia  alegava  susto,  asseverando  ter  ouvido  um  vozeirão  ao  chegar.
Cláudio,  no  entanto,  repondo  a  máscara  das  conveniências,  entornou  pela  boca  a versão que inventara, ali, naquele momento, diante de nós.
Fixou a moça, de modo significativo, e tranqüilizou a senhora, dizendo-lhe, com a  maior  sem cerimônia,  que  chegara  a  casa,  momentos  antes,  encontrando  o  gás do fogão a volatilizar-se.
Fechara  as  saídas  que  a  cozinheira  deixara  abertas  e  exortou  a  que  se  lhe chamasse  a  atenção,  no  dia  seguinte.  Dona  Justa,  a  companheira  do  serviço doméstico,  devia  examinar  os  aparelhos  da  casa,  minuciosamente,  antes  de  se retirar.  Acentuou  que,  atemorizado,  descerrara  as  janelas,  arejando  o  ambiente.
Quando envergava o pijama, aduziu com absoluta seriedade a lhe transparecer do semblante,  ouvira  gemidos  agoniados.  Correu  ao  aposento  das  meninas, surpreendendo Marita a gritar, inconsciente. Sonâmbula, sonâmbula como sempre...
Acordara-a, atarantado, averiguando, porém, que tudo estava em ordem.
A jovem, mergulhada na penumbra, cobriu o rosto com o lenço para ocultar as lágrimas,  abandonando-se  à  inércia,  como  se  transferisse  a  cabeça  de  um  sono para outro.
A recém-chegada riu-se, sem suspeitar, de leve, do vulcão que faceava, e, qual se desejasse compensar-lhe a indiferença, Cláudlo, de volta ao salão, esboçou um aceno gentil, convidando Márcia a descansar.

(3)  Compreendemos  o  caráter  negativo  da  linguagem  do  Espírito desencarnado,  quando  em  deploráveis  condições  de  ignorância,  mas acreditamos seja nossa obrigação consigná-la, nestas páginas, ainda mesmo esbatida qual se encontra, prevenindo criaturas senalveis e afetuosas, que, às vezes,  abdicam  impensadamente  do  próprio  raciocínio,  arrojando-se  em profundo sofrimento moral, em nome do coração. (Nota do Autor espiritual.) 

segunda-feira, 21 de maio de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES

Em teu nome, Senhor!...
Mestre!
Estudando a mensagem libertadora de Allan Kardec, em O E-vangelho segundo o Espiritismo,1 nós, os companheiros desencar-nados de quantos se encontram ainda em rudes lições na escola física, escrevemos este livro,2 em teu nome.
Nele se refletem os pensamentos daqueles servos menores de teus Servos Maiores, aos quais confiaste, em círculos mais estreitos de ação, a sublime tarefa de reviver o espírito da verdade, nos tempos calamitosos de transição que o Planeta atravessa.
Oferecemo-lo a todos os irmãos, cujos ombros jazem vergados ao peso de rijas obrigações, nesta hora em que a família humana desfalece à míngua de amor; aos que, por náufragos da existência, viram quebradas, ante os furacões do materialismo destruidor, as embarcações religiosas em que se  lhes erguia a fé; aos que levan-tam a voz para redizer-te a palavra de esperança e de luz, deslocan-do, à custa de sacrifício, os empeços das trevas; aos que, sobrecar-regados de graves deveres, procuram preencher os lugares dos que desertaram do serviço,  tentando debalde esquecer os fins da vida; e, acima de tudo, aos que, por agora, não encontram para si mes-mos senão a herança das lágrimas em que se lhes dissolve o coração.
                                             
Com todos eles, Senhor, rumo à Era Nova, nós – gotas peque-ninas de inteligência no oceano da Infinita Sabedoria de Deus – partilhamos os lances aflitivos da Terra traumatizada por angústias apocalípticas, em busca de paz  e renovação, trabalhando pelo mundo melhor, na certeza de que  permaneces conosco e de que, como outrora, diante da tempestade, repetirás aos nossos ouvidos, tomados de inquietação:
 

– ”Tende bom ânimo! Sou eu, não temais.”
(Uberaba, 9 de outubro de 1961)
Eurípedes Barsanulfo
Bezerra de Menezes
Cairbar Schutel
Anália Franco
Hilário Silva
André Luiz
Emmanuel
Meimei
 e outros. 

 *****

PROBLEMAS DOS MUNDO
Cap. VI – Item 5 

O mundo está repleto de ouro.
Ouro no solo. Ouro no mar. Ouro nos cofres.
Mas o ouro não resolve o problema da miséria.
O mundo está repleto de espaço.
Espaço nos continentes. Espaço nas cidades. Espaço nos campos.
Mas o espaço não resolve o problema da cobiça.
O mundo está repleto de cultura.
Cultura no ensino. Cultura na técnica. Cultura na opinião.
Mas a cultura da inteligência  não resolve o problema do egoísmo.
O mundo está repleto de teorias.
Teorias na ciência. Teorias nas escolas filosóficas. Teorias nas
religiões.
Mas as teorias não resolvem o problema do desespero.
O mundo está repleto de organizações.
Organizações administrativas. Organizações econômicas. Organizações sociais.
Mas as organizações não resolvem o problema do crime. 


Francisco Cândido Xavier / Waldo Vieira – O Espírito da Verdade

Para extinguir a chaga da ignorância, que acalenta a miséria; para dissipar a sombra da cobiça, que gera a ilusão; para exterminar o monstro do egoísmo, que promove a guerra; para anular o
verme do desespero, que promove  a loucura, e para remover o charco do crime, que carreia o infortúnio, o único remédio eficiente é o Evangelho de Jesus no coração humano.
Sejamos, assim, valorosos, estendendo a Doutrina Espírita que o desentranha da letra, na construção da Humanidade Nova, irradiando a influência e a inspiração do Divino Mestre, pela emoção e pela idéia, pela diretriz e pela conduta, pela palavra e pelo exemplo e, parafraseando o conceito inolvidável de Allan Kardec, em torno da caridade, proclamemos aos problemas do mundo: “Fora do Cristo não há solução.” 


Bezerra de Menezes







quarta-feira, 16 de maio de 2012

ESTUDO DO LIVRO LIBERTAÇÃO - CAPÍTULO 19 - JULIANA SOLARE



Precioso Entendimento

Certo, acreditando haver transmitido a nós outros os ensinamentos que podíamos receber, a nobre mensageira recomendou a Elói trouxesse Margarida àquele plenário amoroso, deixando perceber que pretendia consolidar-lhe o equilíbrio e fortalecer-lhe a resistência.
Transcorridos alguns minutos, a  esposa de Gabriel, que se
convertera em objeto de nossas melhores atenções naqueles dias, desligada do envoltório denso, compareceu no cenáculo. Mostrava passo vacilante e estranho alheamento no olhar, revelando a semi-inconsciência em que se demorava.
Ao que me pareceu, a luz reinante não lhe afetou o olhar. Caracterizava-se, naquela hora, pelos movimentos impulsivos, caminhando, em nosso meio, qual se fora sonâmbula vulgar.
Maquinalmente se asilou nos braços maternos que Matilde lhe oferecia e, tão depressa se acolheu no regaço da benfeitora que a envolvia em doce ternura, reagiu, favoravelmente, contemplando-nos, então, assustadiça. Parecia acordar, pouco a pouco...
A protetora, interessada em despertar-lhe alguns centros importantes da vida mental, começou a aplicar-lhe passes ao longo do cérebro, operações que não pude compreender tão bem quanto desejava. Reparei, contudo, que  Matilde lhe aplicava recursos magnéticos sobre os condutores nervosos do órgão de manifestação do pensamento, tanto quanto ao longo de toda a região do simpático, esclarecendo-me o instrutor, mais tarde, que o estado natural da alma encarnada pode ser comparado, em maior ou menor grau, à hipnose profunda ou à anestesia temporária, a que desce a mente da criatura através de vibrações mais lentas, peculiares aos planos inferiores, para fins de evolução, aprimoramento e redenção, no espaço e no tempo.
Fenômenos de metabolismo, na organização perispirítica, fizeram-se patentes à nossa observação, porque Margarida expelia, através do tórax e das mãos, fluidos cinzento-escuros, em forma de vapor tenuíssimo, a desfazer-se no vasto oceano de oxigênio comum. Logo após semelhante “operação de limpeza”, as zonas do sistema endocrínico emitiam radiações diamantinas, figurando-se uma constelação de caprichosos contornos a  brilhar nas sombras do perispírito, até ali opaco e vulgar.
Do peito de Matilde ondas luminosas partiam ininterruptas e tudo nos fazia crer que a tutelada de Gúbio se  achava, naquela hora, num banho autêntico de essências divinas.
A certa altura do singular processo de despertamento, a jovem senhora abriu desmedidamente os olhos, qual criança espantada, e fixou-nos com expressão de assombro, ensaiando movimentos de recuo e pavor. Mas, em se voltando para o semblante doce e iluminado da benfeitora, aquietou-se, brandamente, como que magnetizada por indefinível amor.
Matilde osculou-a, enternecida, e, ao contacto daqueles lábios sublimes, Margarida, mostrando-se tocada nos recessos do ser, abraçou-lhe o busto, evidenciando ânsia suprema de integração espiritual. Parecendo desvairada  de repentino júbilo, bradou, em lágrimas comoventes:
– Mãe! Querida mãezinha!
– Sim, minha filha, sou eu – disse a interlocutora, afagando-a com extremado afeto –; o amor  jamais desaparece! A união das almas vence o tempo e a morte.
– Porque me abandonaste? – inquiriu a esposa de Gabriel, colando-se-lhe ao coração, num transporte de inexprimível ventura.
– Nunca te esqueci – elucidou a benfeitora, acolhendo-a com mais intensa ternura. – O país da “neblina carnal” muitas vezes parece distanciar-nos uns dos outros; entretanto, sombra alguma conseguirá separar-nos. Nossas  aspirações e esperanças se confundem, quais pontos de luz, nas trevas da separação, assim como as estrelas se assemelham a balizas brilhantes no nevoeiro noturno, recordando-nos o infinito e a eternidade.

Ao som caricioso daquelas palavras, a ex-obsidiada parecia acordar cada vez mais largamente em nosso plano.
De olhos ansiosos, fixos na protetora, como que magnetizada por incomensurável afeto, ponderou, entre lágrimas:
– Mãezinha querida, estou cansada e infeliz!
– Quando a boa luta apenas  começa? – perguntou Matilde, sorrindo.
– Sinto-me cercada de inimigos sem entranhas. Devo ser atormentada dia e noite. Noto invencível antagonismo entre meus sentimentos e a realidade humana, o próprio matrimônio, em que eu depositava os mais caros sonhos, não me foi senão escuro livro de desenganos cruéis. Trago meu coração extenuado e oprimido.
Frustração e ruína espiritual seguem-me de perto... Por isto, sou um fardo pesado ao esposo dedicado e digno de melhor sorte...
Soluços violentos impediram-na de continuar.
A veneranda emissária enxugou-lhe o pranto e falou, bondosa:
– Margarida, viver no corpo terrestre, entendendo os deveres divinos que nos cabem, não é tão fácil, ante a glória infinita que em companhia dele podemos recolher. Todos possuímos culposo pretérito a redimir. É imperioso  reconhecer, todavia, que, se a experiência humana pode ser doloroso curso de renunciação pessoal, é também abençoada escola em que o Espírito de boa vontade pode alcançar culminâncias. Para isto, no entanto, é indispensável se abra o coração ao clima interior da bondade e do entendimento. Somos diamantes brutos, revestidos pelo duro cascalho de nossas milenárias  imperfeições, localizados pela magnanimidade do Senhor na ourivesaria da Terra. A dor, o obstáculo e o conflito são bem-aventuradas ferramentas de melhoria, funcionando em nosso favor. 

Que dizer da pedra preciosa que fugisse às mãos do lapidário, do barro que  repelisse a  influência do oleiro? Modifica as mais íntimas disposições, com referência aos adversários. O inimigo nem sempre é uma consciência agindo deliberadamente no mal. Na maioria das vezes, atende à incompreensão quanto qualquer de nós; procede em determinada linha de pensamento, porque se acredita em roteiro infalível aos próprios olhos,  nos lances do trabalho a que se empenhou nos círculos da vida; enfrenta, qual ocorre a nós mesmos, problemas de visão que só o tempo, aliado ao esforço pessoal na execução do bem, conseguirá decidir. O batráquio e a ave caracterizam-se por impulsos diferentes, não obstante filhos do mesmo mundo. É necessário, Margarida, sabermos utilizar o inimigo, nele situando nossa lição benfeitora. A rigor,  em vista da nossa posição de inferioridade, seremos adversários naturais da obra dos Anjos, na esfera menos elevada que atravessamos presentemente; todavia, as Potências Angélicas não nos punem a incapacidade temporária de compreensão ante os serviços divinos que lhes cabem na economia do Universo. Ao invés de condenar-nos, identificam-nos as deficiências compadecidamente e  estendem-nos braços fraternos, através de mil recursos invisíveis e indiretos, a fim de que aprendamos a escalar o monte da sublimação, em marcha para os cumes celestes.

Verificando-se pequena pausa  nas observações maternais, a jovem senhora obtemperou, enlevada:
– Amada Mãezinha! Pudessem meus ouvidos guardar sempre a doce música de tuas palavras!  Tristemente, antevejo o torvelinho das dificuldades terrenas a  que devo retornar. Tudo agora é consolação e esperança; todavia,  amanhã serei novamente prisioneira no cárcere físico e caminharei de memória anestesiada, em conflito incessante com os monstros que me assediam!
– Este, filha – acrescentou Matilde, afetuosa –, é o imperativo da tarefa que te compete realizar. Entretanto, não percas os tesouros do tempo em considerações inúteis. Enche as tuas horas de trabalho salutar com a possível harmonia, fonte de toda a beleza.
A inteligência que, de algum modo, já se evadiu das limitações da animalidade, encontra-se no corpo de carne, à maneira do lidador num estádio de provas benfeitoras. Lá dentro, na arena das possibilidades sublimes que  a região do nevoeiro oferece, há quem se encaminhe para cima e há quem se dirija para baixo. Não fujas ao óbice valioso na corrida de aperfeiçoamento, nem sorvas o mentiroso elixir da ilusão, apaixonadamente usado por todos os que se deixaram vencer pelas tentações do desânimo, incapazes de aceitar o desafio que o mundo lhes endereça. A vida, para toda alma que triunfa no carreiro áspero, é serviço, movimento, ascensão. E à rajada de luta que te conduzirá ao píncaro luminoso, não te suponhas sozinha na jornada áspera. Outras, aos milhares, suam e sangram, em silêncio. Passam  na cena do mundo, sem o afeto de um esposo e sem a bênção de um lar. 

Não conhecem, como tu, a dádiva de um corpo normal,  nem podem guardar os mínimos sonhos que arregimentas no coração feminil. São homens esquecidos e mulheres desamparadas que passam despercebidos e humilhados, do berço ao túmulo. Respiram em regime de tortura moral e seguem, estrada afora, desprotegidos e dilacerados, aos olhos do mundo, abafando os próprios soluços que, se ouvidos, lhes acarretariam implacável punição. Entretanto, apesar do espesso véu de lágrimas que lhes dificulta a marcha, continuam caminhando impávidos, contando com um amanhã, cada vez mais impreciso e distante, que parece ocultar-se, indefinido, nos horizontes sem fim.

Margarida, que assinalava enternecidamente a argumentação, rogou, súplice:
– Mãezinha querida, ensina-me a  continuar. Desejo honrar a bendita oportunidade que recebi!
– “Não procures ser atendida em todos os teus desejos – falou a benfeitora, suavemente –, mas procura servir, fraternalmente, a quantos te reclamem arrimo e braço forte.
“Ajuda, antes de procurares auxílio.
“Compreende, sem exigir compreensão imediata.
“Desculpa os outros, sem desculpar a ti mesma.
“Ampara, sem a intenção de ser amparada.
“Dá, sem o propósito de receber.
“Não persigas o respeito humano que te faça aparecer melhor que és, mas busca, em todo tempo e lugar, a bênção divina na aprovação da própria consciência.
“Não procures destacada posição, diante dos outros; antes detudo, aperfeiçoa os teus sentimentos, cada vez mais, sem propaganda de tuas virtudes vacilantes e problemáticas.
“Age corretamente e esquece as frases vazias ou venenosas da maledicência contumaz.
“Em te socorrendo das diretrizes alheias, desconfia das palavras que te lisonjeiem a fantasiosa superioridade pessoal ou que te inclinem à dureza de coração.
“Diante da fartura ou da escassez, recorda o serviço que o Senhor te convocou a realizar e produze o bem em seu nome, onde estiveres.
“Lembra-te de que a experiência na carne é demasiadamente breve e que a tua cabeça deve permanecer tão cheia de ideais santificantes, quanto as mãos repletas de trabalho salutar.
“Para que atendas, porém, a semelhante programa, é imprescindível que abras o coração ao sol renovador do Sumo Bem.
“De alma cerrada ao interesse pela felicidade do próximo, jamais encontrarás a própria felicidade.
“A alegria que improvisares em torno dos pés alheios te fará mais rica de júbilo.
“Na paz que semeares encontrarás a colheita da paz que desejas.
“Estes, são princípios da vida radiante.
“No insulamento, ninguém recolherá a suprema alegria.
“Para a sabedoria divina, tão infortunado é o pastor que perdeu o rebanho, quanto a ovelha que perdeu o pastor. A desistência de ajudar é tão escura quanto o relaxamento de extraviar-se.
“O egoísmo conseguirá criar um oásis, mas nunca edificará um continente.
“É indispensável, Margarida, aprenderes a sair de ti mesma, auscultando a necessidade e a dor daqueles que te cercam.” 

Nesse ínterim, calou-se a voz da protetora e, sentindo-se banhada na infinita luz daqueles momentos inesquecíveis, a esposa de Gabriel indagou, embriagada de ventura:
– Ó Deus! Pai Misericordioso,  a que devo atribuir a graça inolvidável desta hora?
Matilde, pretendendo talvez imprimir ampla familiaridade à cena a que assistíamos, levantou-se, abraçada à filha espiritual, e, caminhando ao nosso encontro, apresentou-nos a ela, por particulares amigos.
Confraternizadora palestra estabeleceu-se, extinguindo-se a onda de lágrimas que nos visitava, indistintamente, ante a conversação comovedora e inesquecível.
Chegou, entretanto, o momento em que a benfeitora se revelou interessada em despedir-se. Antes, porém, cravou o olhar muito lúcido na ex-obsidiada e falou-lhe, resoluta:
– Margarida, agora que reténs,  tanto quanto possível, regular consciência de ti mesma em nossa esfera de ação, ouve o apelo que te endereçamos. Não suponhas que te visito pelo simples prazer de consolar-te, o que seria talvez induzir-te ao caminho da despreocupação irresponsável que nunca nos dirige à verdadeira paz. A finalidade divina há de ser, em tudo, a alma de nossa ação.
O lavrador que amanha o solo e o socorre com irrigação confortadora, algo espera da sementeira que lhe reclama o esforço diário.
O amparo do Alto, direto ou indireto, reservado ou ostensivo, não é apenas mera exibição de poder celestial. Os moradores dos círculos mais elevados não se arriscariam a descer, sem objetivos de ordem superior, ao domicílio da mente encarnada, assim como os artistas da inteligência não se animariam a movimentar espetáculos de cultura intelectual, sem fins educativos, junto aos irmãos de raciocínios e sentimentos ainda rudimentares ou inferiores. O tempo é valioso, minha filha,  e não podemos menoscabá-lo, sem grave prejuízo para nós mesmos.

Ante a expressão de surpresa que a tutelada de Gúbio estampava no semblante inquieto, Matilde continuou:
– Em breves anos, voltarei também ao círculo de lutas em que te debates.
– Tu? – gritou Margarida, apalermada, ante a perspectiva de renascimento carnal para o ser iluminado que se mantinha à nossa vista – porque te seria imposta semelhante pena?
– Não te guardes em tamanha incompreensão da lei do trabalho – ajuntou a mensageira, sorrindo –; a reencarnação nem sempre é simples processo regenerativo, embora, na maioria das vezes, constitua recurso corretivo de Espíritos renitentes na desordem e no crime. A Crosta da Terra é comparável a imenso mar onde a alma operosa encontra valores eternos aceitando os imperativos de serviço que a Bondade Divina nos oferece. Além disso, todos temos doces laços do coração, que se demoram, por muitos séculos, retidos ao fundo do abismo. É indispensável buscar as pérolas perdidas para que o paraíso não permaneça vazio de beleza ao nosso olhar. Depois de Deus, o amor é a força gloriosa que alimenta a vida e move os mundos.
A benfeitora fitou a jovem senhora, enlevada, fez pequena pausa e aduziu:
– “Em razão disto, espero não desconheças  a santidade do ministério maternal, na orientação dos Espíritos renascentes.
Nossas melhores possibilidades se perdem na ‘esfera do recomeço’, por falta de braços decididos e conscientes que nos guiem através dos labirintos do mundo.
“Carinho, quase sempre, não falta no santuário familiar, onde a alma se habilita à recapitulação de valiosa aventura; entretanto, a ternura absoluta é tão nociva quanto a absoluta aspereza. Não ignoras, filha amada, que a entidade mais enobrecida, em retomando o veículo de carne, é compelida a sofrer-lhe os regulamentos. As leis fisiológicas, que dominam na Crosta, não fazem exceção. Impõem-se sobre os justos com o mesmo rigor dentro do qual funcionam para os pecadores. O anjo que desça ao fundo da mina de carvão continuará naturalmente a ser um anjo na vida íntima; entretanto, não escapará ao clima deprimente do sub-solo. O esquecimento temporário me acompanhará, nos abafadores das células físicas, mas o êxito desejável somente me felicitará se eu puder contar com a tua orientação robusta e vigilante.
“Bem sei que, depois, regressando por tua vez  ao envoltório que te liga ao círculo comum da luta terrestre, olvidarás, igualmente, a nossa  conversação desta hora.  No entanto, a saúde e a harmonia que te inundarão a estrada doravante, aliadas ao otimismo e à esperança que persistirão em teu espírito por recordações indeléveis e vagas destes instantes divinos, não te deixarão esquecer de todo.
“Defende o teu corpo, como quem preserva um recipiente sagrado para o serviço do Senhor e espera-me em tempo breve.
“Viveremos mais juntas, na peregrinação meritória.
“Nos abençoados elos do sangue seremos mãe e filha, de maneira a aprendermos, mais intensamente, a ciência da fraternidade universal.
“Realmente, Margarida, o meu retorno ser-te-ás sacrifício doloroso ao corpo frágil e delicado; todavia, ajuda-me na sementeira renovada para que eu te seja útil na colheita infalível.
“Não me recebas, nos braços, por boneca mimosa e impassível. Adornos externos nunca trazem felicidade legítima ao coração e, sim, o caráter edificado e cristalino, base segura de que se expande a boa consciência. A estufa pode alimentar as flores mais lindas da Terra, mas não produz  os melhores frutos. A árvore benfeitora não prescindirá do carinho e da assistência constante do pomicultor. É imperioso reconhecer, porém, que somente se fortalecerá sob a temperatura atormentadora da canícula, debaixo de aguaceiros salutares ou aos golpes da ventania forte. A luta e o atrito são bênçãos sublimes, através das quais realizamos a superação de nossos velhos obstáculos. É necessário não menosprezá-los, identificando neles o ensejo bendito de elevação.
“Compreende-me as necessidades para que eu te possa entender no momento justo. As conveniências humanas são respeitáveis, mas as conveniências espirituais são divinas. Auxilia-me a conquistar equilíbrio nas primeiras, a fim de atender aos imperativos celestiais do espírito eterno.
“Logo que me sintas nos braços, não me relegues à garridice e à inutilidade, a pretexto de guardar-me em maternal proteção.
Não é com enfeites exteriores que ajudaremos o vegetal precioso a crescer e frutificar, mas, sim, com o esforço perseverante da enxada, com a vigilância na defesa, com o  adubo estimulante e com a poda benfeitora. Não me percas de vista, para que o amor e a gratidão a Deus perdurem para sempre em minha memória frágil. Socorre-me em tempo para que eu seja útil, no momento oportuno.”
Edificados com a lição indireta que se nos administrava, reparamos que Margarida, em copioso pranto, prometia tudo quanto lhe era solicitado.
A doce palestra interessava-nos a todos e, por nossa vontade, seria indefinidamente  alongada no tempo;  porém, Matilde agora revelava no olhar a preocupação de ausentar-se.
Dirigiu, ainda, brandas frases de reconforto à filha querida, envolveu-a em operações magnéticas, reajustando-lhe os centros perispiríticos, carinhosamente, e rogou o auxílio de Elói para que a esposa de Gabriel regressasse ao envoltório carnal.
Despedindo-se em definitivo, a grande mentora acrescentou algumas recomendações de adeus.
– Margarida – disse, bondosa  –, não te esqueças do reino de beleza que podes improvisar no santuário doméstico. Foge, resoluta, dos perigosos fantasmas do ciúme e da discórdia. Aprende a renunciar, nas questões pequeninas, para recolheres com facilidade a luz que emana do sacrifício. Não comprometas, por bagatelas, o êxito espiritual que a experiência te pode oferecer. Estás livre dos males exteriores, mas ainda te não libertaste dos males próprios. Confia no Divino Poder e não desfaleças, ainda mesmo quando a tempestade te açoite as fibras mais íntimas do coração.
Mãe e filha permutaram um abraço cheio de indefinível ternura e, encaminhando-se para Gúbio, a este explicou Matilde, discreta, o trabalho que planejara para as horas seguintes, asseverando que nos esperaria em paisagem próxima.
Logo após, agradeceu-nos com extrema gentileza, não nos oferecendo oportunidade de exprimir-lhe o reconhecimento e o júbilo que nos possuíam a alma.
Em seguida, ausentou-se, restituindo, naturalmente, ao nosso orientador as forças que lhe subtraíra, em caráter temporário.
Gúbio, então, retomou as rédeas do trabalho, notificando que, exceção feita a quatro companheiros que montariam guarda fraterna junto ao lar de  Gabriel, deveríamos partir todos, na direção dos círculos mais altos com escala em um dos “campos de saída” da esfera carnal.