quarta-feira, 27 de junho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " LIBERTAÇÃO " - MARIA J. SANCHES
A noite ia avançada, mas o nosso
Instrutor, vagueando o olhar em torno, parecia consultar a paisagem externa,
ensimesmado, pensativo...
Logo após, fitou, enternecido, a
filha espiritual que passara a
convalescer em brando e defendido repouso. Orou, longamente, junto dela, na
câmara íntima e, em seguida, veio anunciar-nos o instante da partida.
Aves tornando ao ninho de
esperança e de paz, deveríamos, agora,transportar conosco outros
pássaros de asas semimutiladas que atormentadaspaixões ameaçava. Todos os
corações, ali socorridos, demandariam, junto denós, outros campos de ação
regenerativa e redentora.
Aquelas entidades sofredoras e
amigas, ainda mesmo as que se
conservavam nas mediações da
loucura pelos desequilíbrios do sentimento aque se haviam confiado, tinham
lágrimas de alegria e reconhecimento nosolhos. Em cada uma palpitava o
anseio de retificação e devida nova. Por istomesmo, talvez, cravavam o olhar
inquieto e jubiloso em nossoorientador, comoque a lhe devorarem as palavras.
— Todos os companheiros
incorporados à nossa missão destes dias —avisava Gúbio, paternal desde que
se mantenham perseverantes no propósitode auto-restauração, seguem ao
nosso lado, com acesso aos círculos detrabalho condigno, onde
estudantes do bem e da luz lhes
acolherão, comsimpatia, as aspirações de vida
superior. Espero, contudo, que não aguardemmilagres na esfera próxima. O
trabalho de reajustamento próprio é artigo de leiirrevogável, em todos os ângulos
do Universo. Ninguém suplique protecionismoa que não fêz jus, nem flores de
mel às sementes amargas que semeou emoutro tempo. Somos livros vivos
de quanto pensamos e praticamos e os olhoscristalinos da Justiça Divina nos
lêem, em toda parte. Se há um ministério humano, na Crosta da Terra,
determinando sobre as vidas inferiores
da gleba
planetária, temos, em nossas
linhas de ação, o ministério dos anjos,dominando em nossos caminhos
evolutivos. Ninguém trai os princípios estabelecidos. Possuímos agora o que
ajuntamos no dia de ontem e possuiremosamanhã o que estejamos buscando
no dia de hoje. E como emendar é sempre mais difícil que fazer, não
podemos contar com o favoritismo, na obra laboriosa do aprimoramento individual, nem
provocar solução pacíficae imediata para problemas que gastamos longos
anos a entretecer - A prece ajuda, a
espe-rança balsamiza, a fé sustenta, o entusiasmo revigora, o ideal ilumina,
mas o esforço próprio na direção do bem
é a alma da realizaçãoesperada. Em razão disso, ainda aqui, a bênção do
minuto, a dádiva da horae o tesouro das oportunidades de cada dia hão de
ser convenientemente aproveitados se pretendemos santificadora
ascensão. Felicidade, paz, alegria, não se improvisam. Representam
conquistas da alma no serviço incessante de renovar-se para a execução dos
Desígnios Divinos. Felizmente,desde agora
estamos abrigados no santuário da
boa vontade e, ainda neste instante, cabe-nos não esquecer a promessa evangélica:
“quem perseverar atéao fim, será salvo. A Graça Celestial, sem
dúvida, é um sol permanente e sublime.
Urge, porém, a criação de qualidades
superiores em nós, para fixar-lhe os raios e
recebê-los.
Doce intervalo mostrou-nos o
júbilo reinante.
Salutar otimismo transbordava de
todos os rostos.
Saldanha, de olhos fitos em nosso
dirigente, confundia-nos pelo pranto de contrição purificadora, a
correr-lhe, abundante, dos olhos.
Antes que o nosso Instrutor
pudesse retomar o fio da palavra encorajadora e vigilante, algumas irmãs
entoaram formoso hino de louvor à bondade do Cristo, com visível desassombro
no olhar firme, dantes ansiosoe dorido, enchendo-nos o coração de
intraduzível bem-estar.
Raios de safirina luz
derramaram-se profusamente sobre nós, enquanto as vozes harmoniosas e singelas se
espalhavam, em derredor, tangendo-nos as fibras mais recônditas, nos
recessos do ser.
Terminado o cântico melodioso e
tocante que nos recordava os pensamentos sublimes de
inolvidável Salmo de David (1), o Instrutor retomou a palavra e informou que, não
obstante as santificadas alegrias daquela hora, a batalha não estava finda.
Faltava-nos o epílogo, esclareceu
com inflexão mais grave na voz.
Matilde antecipara-se, de modo a
esperar-nos em região intermediária, em cujo clima vibracional lhe seria
possível materializar-se, denovo, aos olhos de todos, realizando o sonhado
reencontro espiritual com o filho de outras eras que, a breve tempo, nos
procuraria na condição de vingador.
Evidenciando manifesta
preocupação no olhar muito lúcido,o nosso orientador prosseguiu
esclarecendo que Gregório, ciente das novidades havidas no drama de Margarida e
informado acerca da renovação de muitos
companheiros e colaboradores dele, agora francamente
inclinados ao bem, entediados da ignorância e do
ódio, da perversidade e da
insensatez, se revoltara contra ele Gúbio, dispondo-se a buscá-lo para um
ajuste de que se julgava credor. Explicou, emocionado, que num duelo espiritual, como
aquele a esboçar-se, esperava de todos nós o auxilio eficiente da prece e das
emissões mentais de amor puro. Não deve-ríamos receber os doestos e insultos de
Gregório por ofensas pessoais, nem
levar suas atitudes à conta de
maldade ou grosseria. Competia-nos observar-lhe nos gestos de incompreensão a
dor que se lhe cristalizara no Espírito oprimido e inconformado,
vendo-lhe nas palavras, não a maldade deliberada, mas, sim, a eclosão de uma
revolta doentia e infeliz que não poderia prejudicar
e ferir senão a ele próprio. O
pensamento é uma força vigorosa, comandando os mínimos impulsos da alma e, se
nos entregássemos à reação espiritual, armada de ódio ou desarmonia,
pactuaríamos com a violência, impedindo, não só a manifestação providencial de
Matilde, a benfeitora,mas também a renovação de Gregório, que
guardava a inteligência centralizada no mal.
Emissões de mágoa ou revide
colocar-nos-iam em trabalho contraproducente.
As vibrações de amor fraternal,
quais as que o Cristo nos legou, são as verdadeiras energias dissolventes
da vingança, da perseguição,da indisciplina, da vaidade e do egoísmo que
atormentam a experiência humana. Além disso, tornou o Instrutor bondoso,
cumpria-nos considerar que aquela mente transviada do trilho divino se
caracterizava muito mais pelamoléstia do orgulho ferido e impenitente, que pela
perversidade. Gregórioera tão sômente um infeliz, quanto nós mesmos em
passado próximo ou remoto, acicatado por
rebeliões e remorsos interiores a
lhe desajustarem os sentimentos. Merecia, por isso mesmo, nossa dedicação
carinhosa e confortadora, ainda mesmo que nos visitasse com aparências de
celerado ou de louco. Nossa conduta, aliás, nada apresentava de
surpreendente, em semelhante capítulo, porque não fora
para ensinar-nos outras lições
que o Cristo trabalhara embenefício de todos e padecera na cruz, sem ninguém.
Notificou-nos, ainda, que o
sacerdote das sombras se faria
acompanhar, em sua vinda até nós, de muitos
companheiros tão envenenados mentalmente quanto ele, e que, contra essa
equipe de criaturas inimigas da luz, cabia-nos formar um todo de defesa
harmônica, através da fraternidade legitima, da oração intercessora e do amor
espiritual que se compadece eage em favor da restauração do bem.
Valendo-se da pausa que se
impusera, natural, Saldanha perguntou ao nosso mentor se não devíamos
organizar pelo menos um movimento coordenado de repulsão enérgica, ao que o
dirigente, sábio eamigo, respondeu, sorrindo:
— Saldanha, em companhia do
Mestre que abraçamos, só há lugar para o trabalho sadio, com entendimento
das lições de sacrifício eiluminação que nos deixou. Não acredites que um
golpe possa desaparecer com outro golpe. Não se cura a ferida, aprofundando o
sulco da carne em sangue. A cicatriz
abençoada surge sempre à custa de
enfermagem, remédio ouretificação, com ascendentes de amor. Quem
pretende o Reinado do Cristo entrega-se
a Ele. Somos servos. A defesa, qualquer
que seja, pertence ao Senhor.
O ex-perseguidor calou-se,
humilde.
Decorridos alguns minutos, algo
constrangidos afastamo-nos, em bloco, da vivenda em que tantos
ensinamentos preciosos havíamos recebido.
Amparados os mais doentes
naqueles que se mostravam mais fortes, retiramo-nos, cautelosos,
pondo-nos a caminho da zona preestabelecida.
Duas horas de jornada, sob a
supervisão de Gúbio perfeitamente treinado em experiências daquela natureza,
conduziram-nos ao local desejado.
O campo, em torno, era
singularmente belo.
Verdejante planalto, coroado de
luar, convidava-nos à meditação e à prece, e brisas ligeiras e frescas da
madrugada como que nos bafejavam o cérebro convidando-nos a reconfortar as
fontes do pensamento.
Nosso Instrutor fêz-nos sentar em
semicírculo, compelindo-nos a recordar várias cenas evangélicas e
informou, com visível emoção, que, segundo men-sagem particular por ele
registrada, Gregório e os delejá se haviam colocado em nosso encalço e que, se alguns
dos companheiros procurassem evitar-lhe a
presença, qualquer fuga, em nosso
agrupamento, se fazia impraticável, em virtude de a elevada percentagem
de peregrinos, ali reunidos, se revelarem incapazes de volitação em alto
plano, pela densidade do padrão mental em que se mantinham.
Cabia-nos, pois, agora, a atitude
de oração e expectativa amorosa de quem sabia compreender, ajudar e
perdoar.
Do zimbório estrelejado desciam
valiosos estímulos para nós.
Constelações tremeluziam
distantes, enquanto a Lua, silenciosa e bela, parecia disposta a
testemunhar-nos o esforço cristão.
Reparei que o nosso dirigente,
insulado na relva macia, assumia a mesma posição de instrumento mediúnico,
qual acontecera na reunião que vínhamos de efetuar, porque me entregou,
confiante, a direção da assembléia, o
que aceitei, dentro de preocupação
extrema, embora sem hesitar.
Providenciada semelhante medida,
Gúbio passou a elevada condição mental, por intermédio da oração.
Acompanhamo-lo, reverentes. Não
havia gosto para conversações estranhas ao problema delicado
daquela hora.
Demorávamo-nos em observação
expectante, quando ruído longínquo nos anunciou a alteração dos
acontecimentos.
O Instrutor, não obstante
palidíssimo, dando-nos a idéiade que já se achava em comunicação com
entidades superiores e imperceptíveis ao nosso olhar, mais uma vez nos exortou
ao silêncio, à paciência, àserenidade e à prece, recomendando-nos seguir
todos os fatos, sem revolta, sem mágoa e sem desânimo.
Não foi preciso esperar muito.
Alguns minutos se desdobraram
apressados e Gregório, com algumas dezenas de assalariados, surgiu
em campo, investindo-nos com palavrões que se caracterizavam pela dureza e
violência. Os recém-chegados apareceram
acompanhados de grande cópia de
animais, em maioria monstruosos.
Noutras circunstâncias, sem a
bênção do aviso salutar, provàvelmente teríamos debandado, mas Gúbio,
cuja superioridade conhecíamos por expe-riência própria, ali se mantinha,
resoluto e imperturbável, emitindo ondas de luminosidade intensa, veiculando
forças magnéticas, imponderáveis, que, dirigidas sobre nós, como que nos
supria de recursos necessários ao procedimento irrepreensível.
Por mim, ao reparar as máscaras
sinistras que se abeiravam de nós, confesso que, em tempo algum,
senti tamanha ameaça de medo e tão pro-fundo contágio de confiança.
O sacerdote das sombras avançou
para o nosso orientador, à semelhança de general parlamentando na praça,
antes de começar a batalha, e acusou sem rodeios:
— Miserável hipnotizador de
servos ingênuos, onde se alinhamtuas armas para o duelo desta hora? Não
contente em prejudicar-meos projetos mais íntimos, num problema de ordem
pessoal, aliciaste numerosos colaboradores meus, em nome de um Mestre que
não ofereceu aos que o acompanharam senão sarcasmo, martírio e
crucificação! Acreditas, porventura, esteja eu disposto, por minha vez, a
aceitar princípios que relaxam a dignidade humana?
Admites, acaso, permaneça, a meu
turno. fascinado pelos feiticeiros de tua estirpe? Traidor da palavra
empenhada, confundir-te-eios poderes de bruxo desconhecido! Não creio no amor
açucarado que elegeste porsenha de luta!
Creio na força que governa a vida
e que te dobrará, igualmente, aos meus pés!
Percebendo que o nosso orientador
não se erguia, como que chumbado ao solo, compelido por indefinível
prostração, não obstante cercado de intensa luz, o sacerdote dos mistérios negros,
acariciando os copos da espada luzente, acentuou, irado:
— Covarde, não te levantas para
ouvir-me a acusação justa e digna?
Perdeste também o brio,
semelhando-te a quantos te antecederam no movi-mento de humilhação que persiste
no mundo, há quase dois mil anos?
Também, noutra época, acreditei
na celestial proteção através da atividade religiosa, nos ideais em que hoje
te empenhas. Entendi, contudo, a tempo, que o Trono Divino paira distante
demais para que nos preocupemos em alcançá-lo.
Não há um Deus misericordioso e.
sim. uma Causa que dirige. Essa causa é inteligência e não, sentimento -
Encastelei-me, assim, naforça determinativa para não soçobrar. O “querer”, o
“mandar” e o “poder”estão em minhas mãos.
Se tuas mágicas prevalecem acima
dos princípios que consagro edefendo, aceita a luva que te lanço à
face! Combatamos!
Gregório espraiou torvo olhar
pela assistência muda e exclamou:
— Aqui descansam inermes, ao teu
lado, os meus colaboradores que adormeceram, vergonhosamente, ao
teu cântico sedutor; entretanto, cada qual deles me pagará, muito caro, a
defecção e a desobediência.
Fixou, com mais atenção, os olhos
felinos na assembléia, mas, exceto eu, que deveria permanecer atento à
tarefa direcional que me fora cometida, ninguém ousou modificar a atitude
de profunda concentração nos propósitos de humildade e amor a que fôramos
conclamados.
Demonstrando acentuado
desapontamento, em face dos insultos sem resposta, o temível diretor de
legiões sombrias abeirou-se, mais estreitamente, de nosso Instrutor sereno e
bradou:
— Levantar-te-ei, por mim mesmo,
usando os sopapos que mereces.
Antes, porém, que conseguisse
ligar o intento à ação, delicado aparelho luminoso surgiu no alto, à
maneira de garganta improvisada em fluidos ra-diantes, como as que se formam
nas sessões de voz direta, entre os
encarnados, e a voz cristalina e
terna de Matilde ressoou, acima de
nossas cabeças, exortando-o, com amorosa
firmeza:
— Gregório, não. enregeles o
coração quando o Senhor te chama, por mil modos,
ao trabalho renovador! O teu longo período de dureza e secura está
terminado. Não intentes contra os
abençoados aguilhões de nosso Eterno Pai! o
espinho fere, enquantoo fogo o não consome; e a pedra mostra
resistência, enquanto o fio d’água a não desgasta!
Para a tua alma, filho meu,
findou a noite em que atua razão se eclipsou no mal. A ignorância pode muito; no
entanto, é simples nada quando a sabedoria espalha os seus avisos. Não
admitas que os monstros da negra magia te alimentem o coração com a
felicidade desejável!
O temido perseguidor mantinha-se
confundido, semi-aterrado, ao passo que nós mesmos, os circunstantes
ligados à missão de Gúbio, não conseguíamos dissimular a imensa surpresa que
nos dominava, anteo quadro
imponente e inesperado.
Compreendi que a benfeitora se
valia dos fluidos vitais de nosso orientador para exprimir-se, naquele plano,
qual o fizera, horas antes, na
residência de Margarida.
O sacerdote transviado, num
complexo de espanto, rebelião e amargura, tinha agora o aspecto de uma fera
enjaulada.
— Acreditas, porventura —
prosseguiu a voz materna, adulçorada —, que o amor pode alterar-se no curso do
tempo? Supuseste, um dia, que eu te pudesse esquecer? Olvidaste a
imantação de nossos destinos? Peregrine minhalma através de mil mundos,
suspirarei sempre pela integração de nossos espíritos. A luz sublime do amor
que nos arde nos sentimentos mais profundos pode resplandecer nos precipícios
infernais, atraindo parao Senhor aqueles que amamos. Gregório, ressurge!
E, numa inflexão de lágrimas que
desarmaria o raciocínio mais enrijecido, acentuou:
— Lembra-te! Deixaste morrer nos
séculos os projetos de amor que traçamos na Toscana e na
Lombardia distantes? esqueceste nossos votos ao pé dos altares humildes?
olvidaste as cruzes de pedra que nos ouviam as orações? não prometemos ambos
trabalhar em comum pela purificação dos santuários de Deus na Terra?
Sempre grande e belo no combate à política venal dos homens, cristalizaste
na mente os desvarios do orgulho e da vaidade, adquiridos ao contacto
de uma coroa putrescível. Afogaste ideais preciosos na corrente de ouro
mundano e perdeste a visão dos horizontes divinos, mergulhando-te na sombra
dos cálculos pela extensão do império de teus caprichos. Incensaste a
grandeza dos poderosos do mundo em desfavor dos humildes, incentivaste a
tirania espiritual, crendo-tepossuidor de autoridade infalível, e supunhas
que o Céu, além da morte, nada mais fôsse que simples cópia dos Tribunais e
das Cortes da Terra. Tremendos desenganos surpreenderam-te o
despertar, e, embora humilhado e padecente, coagulaste os pensamentos no
ácido venenoso da revolta e elegeste a escravização das inteligências
inferiores por única posição digna de conquistar.
Durante séculos, tens sido apenas
rude disciplinador de almas criminosas e perturbadas que o túmulo
encontrou na imprudência e novicio. Não te doerá, porém, filho meu, a triste
condição de gênio desprezível?Semelhante pergunta não morre sem resposta. Falam por
ti o imenso tédio do mal e a profunda
solidão interior que
presentemente te invadem as horas.
Aprendeste com infinito desapontamento que os
tesouros divinos não repousam em frias arcas de valores amoedados, e sabes,
agora, que Jesus dispõe de escasso tempo para frequentar basílicas
suntuosas, não obstante respeitáveis, porque da escura senda humana emergem
soluços de peregrinos sem luz e sem lar, sem arrimo e sem pao...
Via-se que a benfeitora, quase
asfixiada pela emoção, apresentava enorme dificuldade para continuar, mas,
após longa pausa, que ninguém ousou interromper, prosseguiu,
comovida:
— Como pudeste esquecer, por
alguns dias de autoridade efêmera na Terra, as nossas redentoras
visões do Cristo angustiado na cruz? Aderiste aos Dragões do Mal pela simples
verificação de que a tiara passageira não te poderia aureolar a cabeça nos
domínios da vida eterna a que a morte
nos arrebatou; entretanto, o Divino
Amigo jamais descreu das nossas promessas de serviço e espera por nós com a
mesma abnegação do princípio. Vamos!
Sou Matilde, alma de tua alma,
que, um dia, te adotou por filho querido e a quem amaste como dedicada mãe
espiritual.
Calou-se a voz da mensageira,
interditada pela corrente de pranto.
Foi então que Gregório, fazendo
quanto lhe era possívelpor manter-se de pé, gritou, como ansioso por
fugir a si mesmo.
— Não creio! não creio! Estou só!
consagrei-me ao serviço das sombras e não tenho outros compromissos.
Transbordava-lhe da voz menos
altiva um tom de pavor indescritível.
Parecia disposto à fuga,
francamente transformado. Mas, ante a assembléia extática e silenciosa,
mantinha-se magnetizado pela palavra da benfeitora que se fazia ouvir, austera e doce,
bela e terrível, escalpelando-lhe a consciência.
Espraiou o olhar de leão ferido
através de todos os ângulos do campo que nos situava, e, sentindo-se no centro
de quantos assistiam, ali,atônitos, à cena inesperada, exteriorizou na expressão
fisionômica todo o desespero extremo que lhe vagava nalma, arrancou a
espada da bainha e bradou encolerizado:
— Vim para combater, não para
argumentar. Não temo sortilégios. Sou um chefe e não posso perder os
minutos com palavras tergiversantes. Não admito a presença de minha mãe
espiritual de outras eras. Conheço as artimanhas dos fascinadores e não tenho
outra alternativa senão duelar.
Fitando a delicada forma de luz
que pairava no espaço, acrescentou:
— Por quem és! Anjo ou demônio,
aparece e combate! Aceitas meu desafio?
— Sim... — respondeu Matilde, com
ternura e humildade.
— Tua espada? — trovejou
Gregório, arquejante.
— Vê-la-ás dentro em breve...
Após alguns momentos de ansiosa
expectativa, apagou-se a garganta luminosa que brilhava sobre nós,
mas leve massa radiante e disforme
surgiu, não longe, à nossa vista.
Compreendi que a valorosa
emissária se materializaria, ali mesmo, utilizando os fluidos’ vitais que
o nosso orientador lhe forneceria.
Júbilo e assombro dominavam a
assembléia.
Em poucos instantes, erguia-se
Matilde, a. nosso olhar, derosto velado por véu de gaze tenuíssima. A túnica
alva e luminescente, aliada ao porte esguio e nobre, sob a auréola de safirina
luz de que se tocava, traziam à lembrança alguma encantada madona da Idade
Média, em repentinaaparição.
Adiantava-se, digna e calma, na
direção do sombrio perseguidor; todavia, Gregório, perturbado e
impaciente, atacou-a de longe e empunhou a lâmina em riste, exclamando, resoluto:
— Às armas! às armas!...
Matilde estacou, serena e
humilde, embora imponente e bela, com a majestade de uma rainha coroada
de Sol.
Decorridos alguns instantes
ligeiros, movimentou-se novamente e, alçando a destra radiosa até ao coração,
caminhou para ele, afirmando, em voz doce e terna:
— Eu não tenho outra espada,
senão a do amor com que sempre te amei!
E de súbito desvelou o semblante
vestalino, revelando-lhe a individualidade num dilúvio de
intensa luz. Contemplando-lhe, então, a beleza suave e sublime, banhada de
lágrimas, e sentindo-lhe as irradiações
enternecedoras dos braços que,
agora, se lhe abriam, envolventes e acolhedores, Gregório deixou cair
a lâmina acerada e dejoelhos se prosternou, bradando:
— Mãe! Minha mãe! Minha mãe!...
Matilde enlaçou-o e exclamou:
— Meu filho! Meu filho! Deus te
abençoe! quero-te mais que nunca!
Verificara-se, ali, naquele
abraço, espantoso choque entre a luz e a treva, e a treva não resistiu...
Gregório, como que abalado nos
refolhos do ser, regressara à fragilidade infantil, em pleno desmaio da
força que o sustinha. Finalmente, iniciara sua libertação.
A benfeitora, enlevada,
recolhera-o, enlanguescido, nos braços,
enquanto numerosos membros da sombria
falange fugiam espavoridos.
Matilde, vitoriosa, agradeceu em
palavras que nos faziam vibrar as fibras mais recônditas da alma, e, em
seguida, confiou aos nossos cuidados o filho vencido, asseverando-nos que o
abnegado Gúbio se encarregaria de guardar, por algum tempo, aquele que ela
considerava o seu divinotesouro.
Após abraçar-nos, generosa,
desmaterializou-se ao nosso coro de hosanas, a fim de seguir, de mais
longe, a preparação dofuturo glorioso.
Refez-se o nosso orientador,
reintegrando-se em nosso grupo de serviço.
Edificado, feliz, Gúbio sustentou
Gregório, inerte, nos braços à maneira
do cristão fiel que se orgulha de
suportar o companheiro menos feliz. Orou, cercado de claridade
santificante, arrancando-nos lágrimas
irreprimíveis de alegria e reconhecimento e,
depois, ante a paz que se estabelecera, triunfante
e ditosa, deu por finda a nossa
tarefa, dispondo-se a guiar a heterogênea, mas expressiva coletividade de novos
estudantes do bem, recolhidos nos trabalhos de salvação de Margarida, até a
importante e abençoada colônia de
trabalho regenerador.
Surgira, para mim, a despedida.
Tinha meus olhos úmidos de
pranto.
O Instrutor abraçou-me e,
retendo-me junto do coração, falou, bondoso:
— Jesus te recompense, filho meu,
pelo papel que desempenhaste nesta jornada de libertação. Nunca te
esqueças de que o amor vence todo ódio e de que o bem aniquila todo mal.
Quis responder, esclarecendo que
sômente a mim, discípulo inábil, cabia o dever de gratidão; todavia,
incoercível emotividade prendeu-me a voz.
O orientador, no entanto, leu-me
no olhar os sentimentos mais profundos e sorriu, em retirada.
Elói, também, rumou para longe,
em busca de outros setores.
E voltando, sozinho, ao meu
domicílio espiritual, roguei, chorando:
— Mestre de Bondade Infinita, não
me abandones! ampara-me a insuficiência de servo imperfeito
e infiel!
Em torno, reinava insondável e
sublime silêncio. Mas, enquanto o horizonte se tingia de rubro. preludiando a
festa da aurora, a estrela matutina
brilhava, tremeluzindo aos meus olhos, qual
celeste resposta de luz.