Reencontro
A noite ia avançada, mas o nosso instrutor, vagueando o
olharem torno, parecia consultar a paisagem externa, ensimesmado, pensativo...
Logo após, fitou, enternecido, a filha espiritual que
passara aconvalescer em brando e defendido repouso. Orou, longamente, junto dela, na câmara íntima e, em seguida, veio
anunciar-nos o instante da partida.
Aves tornando ao ninho de esperança e de paz, deveríamos, agora, transportar conosco outros pássaros de asas
semimutiladas que a tormentadas paixões ameaçava. Todos os corações, ali socorridos, demandariam, junto de nós, outros campos de ação regenerativa e redentora. Aquelas entidades sofredoras e amigas, ainda mesmo as que se conservavam nas mediações da loucura pelos desequilíbrios
do sentimento a que se haviam confiado, tinham lágrimas de
alegria e reconhecimento nos olhos. Em cada uma palpitava o anseio
de retificação e de vida nova. Por isto mesmo, talvez, cravavam
o olhar inquieto e jubiloso em nosso orientador, como que a
lhe devorarem as palavras.
– Todos os companheiros incorporados à nossa missão destes dias – avisava Gúbio, paternal –, desde que se mantenham
perseverantes no propósito de auto-restauração, seguem ao nosso lado, com acesso aos círculos de trabalho condigno, onde
estudantes do bem e da luz lhes acolherão, com simpatia, as aspirações de
vida superior. Espero, contudo, que não aguardem milagres na
esfera próxima. O trabalho de reajustamento próprio é artigo de lei irrevogável, em todos os ângulos do Universo. Ninguém
suplique protecionismo a que não fez jus, nem flores de mel às
sementes amargas que semeou em outro tempo. Somos livros vivos de quanto pensamos e praticamos e os olhos cristalinos da
Justiça Divina nos lêem, em toda parte. Se há um ministério humano,
na Crosta da Terra, determinando sobre as vidas inferiores da
gleba planetária, temos, em nossas linhas de ação, o ministério
dos anjos, dominando em nossos caminhos evolutivos. Ninguém trai os princípios estabelecidos. Possuímos agora o que ajuntamos
no dia de ontem e possuiremos amanhã o que estejamos buscando
no dia de hoje. E como emendar é sempre mais difícil que fazer,
não podemos contar com o favoritismo, na obra laboriosa do
aprimoramento individual, nem provocar solução pacífica e imediata para problemas que gastamos longos anos a entretecer. A
prece ajuda, a esperança balsamiza, a fé sustenta, o entusiasmo
revigora, o ideal ilumina, mas o esforço próprio na direção do bem é a
alma da realização esperada.
Em razão disso, ainda aqui, a bênção
do minuto, a dádiva da hora e o tesouro das oportunidades de
cada dia hão de ser convenientemente aproveitados se pretendemos santificadora ascensão. Felicidade, paz, alegria, não se
improvisam. Representam conquistas da alma no serviço incessante de renovar-se para a execução dos Desígnios Divinos.
Felizmente, desde agora estamos abrigados no santuário da boa vontade e, ainda neste instante, cabe-nos não esquecer a promessa
evangélica: “quem perseverar até ao fim, será salvo”. A Graça Celestial, sem dúvida, é um sol permanente e sublime. Urge, porém, a
criação de qualidades superiores em nós, para fixar-lhe os raios e recebê-los. Doce intervalo mostrou-nos o júbilo reinante.
Salutar otimismo transbordava de todos os rostos.
Saldanha, de olhos fitos em nosso dirigente, confundia-nos pelo pranto de contrição purificadora, a correr-lhe,
abundante, dos olhos.
Antes que o nosso instrutor pudesse retomar o fio da palavra encorajadora e vigilante, algumas irmãs entoaram formoso hino de louvor à bondade do Cristo, com visível desassombro no
olhar firme, dantes ansioso e dorido, enchendo-nos o coração de
intraduzível bem estar.
Raios de safirina luz derramaram-se profusamente sobre nós, enquanto as vozes harmoniosas e singelas se espalhavam, em derredor, tangendo-nos as fibras mais recônditas, nos
recessos do ser.
Terminado o cântico melodioso e tocante que nos recordava os pensamentos sublimes de inolvidável Salmo de David, o instrutor retomou a palavra e informou que, não obstante as
santificadas alegrias daquela hora, a batalha não estava finda.
Faltava-nos o epílogo, esclareceu com inflexão mais grave na voz.
Matilde antecipara-se, de modo a esperar-nos em região
intermediária, em cujo clima vibracional lhe seria possível materializar-se,
de novo, aos olhos de todos, realizando o sonhado reencontro espiritual com o
filho deoutras eras que, a breve tempo, nos procuraria na condição de vingador.
Evidenciando manifesta preocupação no olhar muito lúcido, o nosso orientador prosseguiu esclarecendo que Gregório, ciente das novidades havidas no drama de Margarida e informado
acerca da renovação de muitos companheiros e colaboradores dele,
agora francamente inclinados ao bem, entediados da ignorância e doódio, da perversidade e da insensatez, se revoltara contra
ele, Gúbio, dispondo-se a buscá-lo para um ajuste de que se
julgava credor. Explicou, emocionado, que num duelo espiritual, como aquele a esboçar-se, esperava de todos nós o auxilio
eficiente da prece e das emissões mentais de amor puro. Não deveríamosreceber os doestos e insultos de Gregório por ofensas
pessoais, nem levar suas atitudes à conta de maldade ou grosseria.
Competia-nos observar-lhe nos gestos de incompreensão a dor que se lhe cristalizara no Espírito oprimido e inconformado, vendo-lhe
nas palavras, não a maldade deliberada, mas, sim, a eclosão de
uma revolta doentia e infeliz que não poderia prejudicar e ferir
senão a ele próprio.
O pensamento é uma força vigorosa, comandando
os mínimos impulsos da alma e, se nos entregássemos à reação
espiritual, armada de ódio ou desarmonia, pactuaríamos com a violência,
impedindo, não só a manifestação providencial de Matilde, a benfeitora, mas também a renovação de Gregório, que guardava
a inteligência centralizada no mal. Emissões de mágoa ou
revide colocar-nos-iam em trabalho contra producente. As vibrações
de amor fraternal, quais as que o Cristo nos legou, são as
verdadeiras energias dissolventes da vingança, da perseguição, da
indisciplina, da vaidade e do egoísmo que atormentam a experiência humana.
Além disso, tornou o instrutor bondoso, cumpria-nos
considerar que aquela mente transviada do trilho divino se
caracterizava muito mais pela moléstia do orgulho ferido e impenitente,
que pela perversidade. Gregório era tão somente um infeliz,
quanto nós mesmos em passado próximo ou remoto, acicatado por
rebeliões e remorsos interiores a lhe desajustarem os sentimentos.
Merecia, por isso mesmo, nossa dedicação carinhosa e
confortadora, ainda mesmo que nos visitasse com aparênciasde celerado ou de louco. Nossa conduta, aliás, nada apresentava de surpreendente,
em semelhante capítulo, porque não fora para ensinar-nos outras lições que o Cristo trabalhara em benefício de todos
e padecera na cruz, sem ninguém.
Notificou-nos, ainda, que o sacerdote das sombras se faria acompanhar, em sua vinda até nós, de muitos companheiros tão envenenados mentalmente quanto ele, e que, contra essa equipe
de criaturas inimigas da luz, cabia-nos formar um todo de
defesa harmônica, através da fraternidade legitima, da oração
intercessora e do amor espiritual que se compadece e age em favor da
restauração do bem.
Valendo-se da pausa que se impusera, natural, Saldanha
perguntou ao nosso mentor se não devíamos organizar pelo menos um movimento coordenado de repulsão enérgica, ao que o
dirigente, sábio e amigo, respondeu, sorrindo:
– Saldanha, em companhia do Mestre que abraçamos, só há lugar para o trabalho sadio, com entendimento das lições de
sacrifício e iluminação que nos deixou. Não acredites que um golpe possa desaparecer com outro golpe. Não se cura a ferida,
aprofundando o sulco da carne em sangue. A cicatriz abençoada surge sempre à custa de enfermagem, remédio ou retificação, com
ascendentes de amor. Quem pretende o Reinado do Cristo entrega-se a Ele. Somos
servos. A defesa, qualquer que seja, pertence ao Senhor.
O ex-perseguidor calou-se, humilde.
Decorridos alguns minutos, algo constrangidos afastamo-nos, em bloco, da vivenda em que tantos ensinamentos preciosos havíamos recebido.
Amparados os mais doentes naqueles que se mostravam mais fortes, retiramo-nos, cautelosos, pondo no caminho da zona pré-estabelecida.
Duas horas de jornada, sob a supervisão de Gúbio
perfeitamente treinado em experiências daquela natureza, conduziram-nos ao local desejado.
O campo, em torno, era singularmente belo.
Verdejante planalto, coroado deluar, convidava-nos à
meditação e à prece, e brisas ligeiras e frescas da madrugada como que nos bafejavam o cérebro convidando-nos a reconfortar as
fontes do pensamento.
Nosso instrutor fez sentar em semi-círculo, compelindo-nos a recordar várias cenas evangélicas e informou, com visível
emoção, que, segundo mensagem particular por ele registrada, Gregório e os
dele já se haviam colocado em nosso encalço e que, se alguns dos companheiros procurassem evitar-lhe a presença,
qualquer fuga, em nosso agrupamento, se fazia impraticável,
em virtude de a elevada percentagem de peregrinos, ali
reunidos, se revelarem incapazes de volitação em alto plano, pela
densidade do padrão mental em que se mantinham.
Cabia-nos, pois, agora, a atitude de oração e expectativa
amo-rosa de quem sabia compreender, ajudar e perdoar.
Do zimbório estrelejado desciam valiosos estímulos para nós.
Constelações tremeluziam distantes, enquanto a Lua,
silenciosa e bela, parecia disposta a testemunhar-nos o esforço cristão.
Reparei que o nosso dirigente, insulado na relva macia,
assumia a mesma posição de instrumento mediúnico, qual acontecera na reunião que vínhamos de efetuar, porque me entregou,
confiante, a direção da assembléia, o que aceitei, dentro de preocupação extrema, embora sem hesitar.
Providenciada semelhante medida, Gúbio passou a elevada condição mental, por intermédio da oração.
Acompanhamo-lo, reverentes. Não havia gosto para
conversações estranhas ao problema delicado daquela hora.
Demorávamo-nos em observação expectante, quando ruído longínquo nos anunciou a alteração dos acontecimentos.
O instrutor, não obstante palidíssimo, dando-nos a idéia de que já se achava em comunicação com entidades superiores e imperceptíveis ao nosso olhar, mais uma vez nos exortou ao
silêncio, à paciência, à serenidade e à prece, recomendando-nos seguir todos os fatos, sem revolta, sem mágoa e sem
desânimo.
Não foi preciso esperar muito.
Alguns minutos se desdobraram apressados e Gregório, com algumas dezenas de assalariados, surgiu em campo,
investindo-nos com palavrões que se caracterizavam pela dureza e violência.
Os recém-chegados apareceram acompanhados de grande cópia de animais, em maioria monstruosos.
Noutras circunstâncias, sem a bênção do aviso salutar,
provavelmente teríamos debandado, mas Gúbio, cuja superioridade conhecíamos por experiência própria, ali se mantinha,
resoluto e imperturbável, emitindo ondas deluminosidade intensa,
veiculando forças magnéticas, imponderáveis, que, dirigidas sobre nós, como que nos supria de recursos necessários ao procedimento irrepreensível.
Por mim, ao reparar as máscaras sinistras que se abeiravam de nós, confesso que, em tempo algum, senti tamanha ameaça de medo e tão profundo contágio de confiança.
O sacerdote das sombras avançou para o nosso orientador, à semelhança de general parlamentando na praça, antes de
começar a batalha, e acusou sem rodeios:
– Miserável hipnotizador de servos ingênuos, onde se
alinham tuas armas para o duelo desta hora? Não contente em prejudicar-me os
projetos mais íntimos, num problema de ordem pessoal, aliciaste numerosos
colaboradores meus, em nome de um Mestre que não ofereceu aos que o acompanharam senão
sarcasmo, martírio e crucificação! Acreditas, porventura, esteja eu disposto, por minha vez, a aceitar princípios que relaxam a
dignidade humana? Admites, acaso, permaneça, a meu turno, fascinado pelos feiticeiros de tua estirpe? Traidor da palavra
empenhada, confundir-te-ei os poderes de bruxo desconhecido! Não creio
no amor açucarado que elegeste por senha de luta! Creio na
força que governa a vida e que te dobrará, igualmente, aos meus pés!
Percebendo que o nosso orientador não se erguia, como que chumbado ao solo, compelido por indefinível prostração, não obstante cercado de intensa luz, o sacerdote dos mistérios
negros, acariciando os copos da espada luzente, acentuou, irado:
– Covarde, não te levantas para ouvir-me a acusação justa e digna? Perdeste também o brio, semelhando-te a quantos te
antecederam no movimento de humilhação que persiste no mundo, há quase dois mil anos? Também, noutra época, acreditei na
celestial proteção através da atividade religiosa, nos ideais em que
hoje te empenhas. Entendi, contudo, a tempo, que o Trono Divino
paira distante demais para que nos preocupemos em alcançá-lo. Não
há um Deus misericordioso e, sim, uma Causa que dirige. Essa
causaé inteligência e não sentimento. Encastelei-me, assim, na
força determinativa para não soçobrar. O “querer”, o “mandar” e o “poder” estão em minhas mãos. Se tuas mágicas prevalecem acima dos princípios que consagro e defendo, aceita a luva
que te lanço à face! Combatamos!
Gregório espraiou torvo olhar pela assistência muda e
exclamou:
– Aqui descansam inermes, ao teu lado, os meus colaboradores
que adormeceram, vergonhosamente, ao teu cântico sedutor; entretanto, cada qual deles me pagará, muito caro, a
defecção e a desobediência.
Fixou, com mais atenção, os olhos felinos na assembléia, mas, exceto eu, que deveria permanecer atento à tarefa
direcional que me fora cometida, ninguém ousou modificar a atitude de profunda concentração nos propósitos de humildade e amor a
que fôramos conclamados.
Demonstrando acentuado desapontamento, em face dos insultos
sem resposta, o temível diretor de legiões sombrias abeirou-se, mais estreitamente, de nosso instrutor sereno e bradou:
– Levantar-te-ei, por mim mesmo, usando os sopapos que
mereces.
Antes, porém, que conseguisse ligar o intento à ação,
delicado aparelho luminoso surgiu no alto, à maneira de garganta improvisada
em fluidos radiantes, como as que se formam nas sessões de voz direta, entre
os encarnados, e a voz cristalina e terna de Matilde ressoou, acima de nossas cabeças, exortando-o,
com amorosa firmeza:
– Gregório, não enrregeles o coração quando o Senhor te
chama, por mil modos, ao trabalho renovador! O teu longo período de dureza e secura está terminado. Não intentes contra os
abençoados aguilhões de nosso Eterno Pai! O espinho fere, enquanto o
fogo o não consome; e a pedra mostra resistência, enquanto o fio
d’água a não desgasta! Para a tua alma, filho meu, findou a noite
em que a tua razão se eclipsou no mal. A ignorância pode muito; no
entanto, é simples nada quando a sabedoria espalha os seus avisos.
Não admitas que os monstros danegra magia te alimentem o coração com a felicidade desejável!
O temido perseguidor mantinha-se confundido, semi-aterrado,
ao passo que nós mesmos, os circunstantes ligados à missão de Gúbio, não conseguíamos dissimular a imensa
surpresa que nos dominava, ante o quadro imponente e inesperado.
Compreendi que a benfeitora sevalia dos fluidos vitais de nosso orientador para exprimir-se, naquele plano, qual o
fizera, horas antes, na residência de Margarida.
O sacerdote transviado, num complexo de espanto, rebelião e amargura, tinha agora o aspecto de uma fera enjaulada.
– Acreditas, porventura – prosseguiu a voz materna,
adulçorada –, que o amor pode alterar-se no curso do tempo? Supuseste, um dia, que eu te pudesse esquecer? Olvidaste a imantação de nossos destinos? Peregrine minh'alma através de mil mundos, suspirarei sempre pela integração de nossos espíritos. A luz
sublime do amor que nos arde nos sentimentos mais profundos pode resplandecer nos precipícios infernais, atraindo para o
Senhor aqueles que amamos. Gregório, ressurge!
E, numa inflexão de lágrimas que desarmaria o raciocínio mais enrijecido, acentuou:
– Lembra-te! Deixaste morrer nos séculos os projetos de amor
que traçamos na Toscana e na Lombardia distantes? Esqueceste nossos votos ao
pé dos altares humildes? Olvidaste as cruzes de pedra que nos ouviam as orações? Não prometemos ambos trabalhar em comum pela purificação dos santuários de Deus na Terra? Sempre grande e belo no combate à política venal dos homens, cristalizaste na mente os desvarios do orgulho e da
vaidade, adquiridos ao contacto deuma coroa putrescível. Afogaste ideais preciosos na corrente de ouro mundano e perdeste a
visão dos horizontes divinos, mergulhando-te na sombra dos
cálculos pela extensão do império de teus caprichos. Incensaste a
grandeza dos poderosos do mundo em desfavor dos humildes, incentivaste a tirania espiritual, crendo-te possuidor de autoridade
infalível, e supunhas que o Céu, além da morte, nada mais fosse que
simples cópia dos Tribunais e das Cortes da Terra. Tremendos
desenganos surpreenderam-te o despertar e,embora humilhado e padecente, coagulaste os pensamentos no ácido venenoso da revolta e
eleges-te a escravização das inteligências inferiores por única posição digna de conquistar. Durante séculos, tens sido apenas rude
disciplinador de almas criminosas e perturbadas que o túmulo encontrou na
imprudência e no vício. Não te doerá, porém, filho meu, a triste condição de gênio desprezível? Semelhante pergunta
não morre sem resposta. Falam por ti o imenso tédio do mal e a
profunda solidão interior que presentemente te invadem as horas.
Aprendeste com infinito desapontamento que os tesouros
divinos não repousam em frias arcas de valores amoedados e sabes,
agora, que Jesus dispõe de escasso tempo para freqüentar basílicas
suntuosas, não obstante respeitáveis, porque da escura senda humana emergem soluços de peregrinos sem luz e sem lar, sem arrimo
e sem pão...
Via-se que a benfeitora, quase asfixiada pela emoção,
apresentava enorme dificuldade para continuar, mas, após longa pausa, que
ninguém ousou interromper, prosseguiu, comovida:
– Como pudeste esquecer, por alguns dias de autoridade
efêmera na Terra, as nossas redentoras visões do Cristo angustiado na cruz? Aderiste aos Dragões do Mal pela simples
verificação de que a tiara passageira não te poderia aureolar a cabeça nos
domínios da vida eterna a que a morte nos arrebatou; entretanto, o
Divino Amigo jamais descreu das nossas promessas de serviço
e espera por nós com a mesma abnegação do princípio. Vamos!
Sou Matilde, alma de tua alma, que, um dia, te adotou por filho
querido e a quem amaste como dedicada mãe espiritual.
Calou-se a voz da mensageira, interditada pela corrente de pranto.
Foi então que Gregório, fazendo quanto lhe era possível por manter-se de pé, gritou, como ansioso por fugir a si mesmo.
– Não creio! não creio! Estou só! Consagrei-me ao serviço das sombras e não tenho outros compromissos.
Transbordava-lhe da voz menos altiva um tom de pavor
indescritível. Parecia disposto à fuga, francamente transformado.
Mas, ante a assembléia extática e silenciosa, mantinha-se
magnetizado pela palavra da benfeitora que se fazia ouvir, austera e doce, bela e terrível, escalpelando-lhe a consciência.
Espraiou o olhar de leão ferido através de todos os ângulos do campo
que nos situava e, sentindo-se no centro de quantos assistiam, ali,
atônitos, à cena inesperada, exteriorizou na expressão fisionômica
todo o desespero extremo que lhe vagava n'alma, arrancou a espada
da bainha e bradou encolerizado:
– Vim para combater, não para argumentar. Não temo
sortilégios. Sou um chefe e não posso perder os minutos com palavras tergiversantes. Não admito a presença de minha mãe
espiritual de outras eras. Conheço as artimanhas dos fascinadores e não
tenho outra alternativa senão duelar.
Fitando a delicada forma de luz que pairava no espaço,
acrescentou:
– Por quem és! Anjo ou demônio, aparece e combate! Aceitas meu desafio?
– Sim... – respondeu Matilde, com ternura e humildade.
– Tua espada? – trovejou Gregório, arquejante.
– Vê-la-ás dentro em breve...
Após alguns momentos de ansiosa expectativa, apagou-se a garganta luminosa que brilhava sobre nós, mas leve massa
radiante e disforme surgiu, não longe, à nossa vista.
Compreendi que a valorosa emissária se materializaria, ali mesmo, utilizando os fluidos vitais que o nosso orientador
lhe forneceria.
Júbilo e assombro dominavam a assembléia.
Em poucos instantes, erguia-se Matilde, a nosso olhar, de
rosto velado por véu de gaze tenuíssima. A túnica alva e luminescente, aliada
ao porte esguio e nobre, sob a auréola de safirina luz de que se tocava, traziam à lembrança alguma encantada madona
da Idade Média, em repentina aparição.
Adiantava-se, digna e calma, na direção do sombrio
perseguidor; todavia, Gregório, perturbado e impaciente, atacou-a de longe e empunhou a lâmina em riste, exclamando, resoluto:
– Às armas! às armas!...
Matilde estacou, serena e humilde, embora imponente e bela, com a majestade de uma rainha coroada de Sol.
Decorridos alguns instantes ligeiros, movimentou-se
novamente e, alçando a destra radiosa até ao coração, caminhou para ele, afirmando, em voz doce e terna:
– Eu não tenho outra espada, senão a do amor com que sempre
te amei!
E de súbito desvelou o semblante vestalino, revelando-lhe a individualidade num dilúvio de intensa luz.
Contemplando-lhe, então, a beleza suave e sublime, banhada de lágrimas, e
sentindo-lhe as irradiações enternecedoras dos braços que, agora, se lhe abriam, envolventes e acolhedores, Gregório deixou cair a
lâmina acerada e de joelhos se prosternou, bradando:
– Mãe! Minha mãe! Minha mãe!...
Matilde enlaçou-o e exclamou:
– Meu filho! Meu filho! Deus te abençoe! Quero-te mais que nunca!
Verificara-se, ali, naquele abraço, espantoso choque entre a luz e a treva, e a treva não resistiu...
Gregório, como que abalado nos refolhos do ser, regressara à fragilidade infantil, em pleno desmaio da força que o
sustinha.
Finalmente, iniciara sua libertação.
A benfeitora, enlevada, recolhera-o, enlanguescido, nos
braços, enquanto numerosos membros da sombria falange fugiam espavoridos.
Matilde, vitoriosa, agradeceu em palavras que nos faziam
vibrar as fibras mais recônditas da alma e, em seguida, confiou aos nossos cuidados o filho vencido, asseverando-nos que o
abnegado Gúbio se encarregaria de guardar, por algum tempo, aquele
que ela considerava o seu divino tesouro.
Após abraçar-nos, generosa, desmaterializou-se ao nosso coro de hosanas, a fim de seguir, de mais longe, a preparação do
futuro glorioso.
Refez-se o nosso orientador, reintegrando-se em nosso grupo de serviço.
Edificado, feliz, Gúbio sustentou Gregório, inerte, nos
braços à maneira do cristão fiel que se orgulha de suportar o
companheiro menos feliz. Orou, cercado de claridade santificante,
arrancando-nos lágrimas irreprimíveis de alegria e reconhecimento e, depois, ante a paz que se estabelecera, triunfante e ditosa,
deu por finda a nossa tarefa, dispondo-se a guiar a heterogênea, mas
expressiva coletividade de novos estudantes do bem, recolhidos nos trabalhos de salvação de Margarida, até a importante e
abençoada
colônia de trabalho regenerador.
Surgira, para mim, a despedida.
Tinha meus olhos úmidos de pranto.
O instrutor abraçou-me e, retendo-me junto do coração,
falou, bondoso:
– Jesus te recompense, filho meu, pelo papel que
desempenhaste nesta jornada de libertação. Nunca te esqueças de que o amor vence todo ódio e de que o bem aniquila todo mal.
Quis responder, esclarecendo que somente a mim, discípulo inábil, cabia o dever de gratidão; todavia, incoercível
emotividade prendeu-me a voz.
O orientador, no entanto, leu-me no olhar os sentimentos mais profundos e sorriu, em retirada.
Elói, também, rumou para longe, em busca de outros setores.
E voltando, sozinho, ao meu domicílio espiritual, roguei,
chorando:
– Mestre de Bondade infinita, não me abandones! Ampara-me a insuficiência de servo imperfeito e infiel!
Em torno, reinava insondável e sublime silêncio. Mas,
enquanto o horizonte se tingia de rubro preludiando a festa da aurora, a
estrela matutina brilhava, tremeluzindo aos meus olhos, qual celeste resposta de luz.
--- Fim ---