sexta-feira, 13 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 9
Instalados na sala de visita, os
cônjuges entrefitaram-se de estranha maneira.
Adversários declarados, em
tréguas cordiais.
Dona Márcia definia-se. Espécime
comum das damas que lutam, garbosas,contra as arremetidas do tempo.
Ninguém lhe atribuiriaos quarenta janeirosintegralmente dobados. Os cabelos
abundantes, que os líqUidos medicinais mantinham perfeitamente escuros e
brilhantes, acomodavam-se num penteadogracioso que lhe guarnecia o rosto,
semelhante ao das pessoas que se maquilam para efeitos de arte e que nunca
se deixam analisar realmente sem que a água quantiosa lhes restitua os poros
à carícia da Natureza. Delgada, na magreza característica dos que usam
moderadores do apetite para a manutenção
do peso ideal, apresentava-se em figurino
da alta.
O fundo alvo do linho,
ligeiramente estampado de pequeninas
flores róseas, dava-lhe ao vestido primoroso
certa diafaneidade que lherealçava a beleza quase outoniça.
Era a mesma criatura das telas
mentais de Marina,exibindo-se, porém, de modo diverso, espécie de livro,
claramente identificável, mas exposto numa encadernação mais viva e mais
rica.
Pela herança e pela convivência,
talhara, sem dúvida, o aspecto da filha única, porqüanto, sentada agora,
lembrava Marina em todos os traços, conquanto muito mais asserenada e amadurecida.
Longe de aparentarem a verdadeira condição de mãe e filha, podiam ser
interpretadas à conta de irmãs,salientando-se que Dona Márcia se revelava talvez mais
simpática, pela brandura estudada dos gestos.
Via-se-lhe com tranqüilidade o
sorriso espontâneo, sorriso, no entanto, que mostrava o engenhoso artifício
dos que se distanciam deliberadamente dos problemas alheios para que não
lhes constituam empeço ao avanço. Doçura trabalhada do egoísmo atencioso,
pronto a sorrir, nunca a se incomodar.
Ainda assim, os olhos, ah! os
olhos traíam-lhe a alma sibilina. Fisgados no esposo, pareciam interessados em
agarrar-lhe as mínimas reações, em proveito próprio.
Ela não aspirava a conhecer
qualquer vestígio da conduta dele, anelava encobrir-se. Serena e bem-posta,
renteando o marido, dava a impressão de um viajante hábil, preocupado em
ilaquear o guarda-barreira, a fim de seguir, incólume, caminho adiante, sem largar as
aquisições clandestinas.
Por outro lado, o marido
assemelhava-se ao guarda-barreira, calejado no suborno, mais aplicado em
resguardar-se, que em denunciar viajores, tão matreiros quanto ele próprio. Naquela hora,
sobretudo, em que fora quase detido em
culpa flagrante, esmerava-se em
mesuras.
Amodorrava-se para ouvi-la, com a
pachorra de um cão astucioso que parasse de caminhar, atento às falcatruas
do gato.
Para Cláudio, em tal
circunstância, valia estudar tudo, ouvir tudo. Afinal, aquilo era inevitável. Márcia chegara ao
quarto de Marita num momento
psicológico.
Imperioso esfumar-lhe qualquer
dúvida ocorrente, à custa de uma
tolerância que não mais praticava, desde muito.
Para isso, estirava-se, ali, sossegado e complacente.
Nos dois, porém, flutuava a
desconfiança recíproca. Duas bocas que se entendiam, duas cabeças que
discordavam uma da outra. Cadafrase vinha pré-fabricada na garganta,
dissimulando o pensamento.
Adocicando a voz, a esposa
comentou os aborrecimentos no bufet do baile beneficente em que havia
funcionado. Muita gente. Alguns jovens embriagados, forjando obstáculos. Garotos
furtando. Por tudo isso, estafara-se.
Desconfiando que o marido, não
obstante mostrar-se quase afetuoso, não
se inclinaria a longa conversação,
quis reter o momento raro, tornando-se mais terna.
Afável, estendeu-lhe prateada
carteira.
Cláudio agradeceu. Não queria
fumar. Ela, no entanto, bateu, várias vezes, a ponta do cigarro, de encontro a
pequenina bolsa metálica, fez fogo num isqueiro diminuto, e, após envolver-se em
baforadas, relaxou-se na poltrona, sugerindo a intenção de exprimir-se mais à
vontade.
— Imagine você — aduziu,
cuidadosa —, que embora o sarau esteja longe de terminar, larguei tudo. O leilão
de prendas esperava por mim, qualldo senti um constrangimento esquisito.
Tive medo. Passei minhas
obrigações para Dona Margarida e voltei.
Atormentava-me, supondo houvesse
algo atrapalhado em casa, alguma ligação elétrica esquecida, a presença de
algum malfeitor. Vejo, porém, que você talvez tenha tido o mesmo palpite e
chegou antes, retificando o fogão...
Felizmente, tudo passou... Mesmo assim, reconheço
que o meu regresso foi providencial, pois, desde muitos dias, venho espreitando um
momentinho em que você esteja calmo e
bem-humorado, como agora, para tratarmos, juntos, de assunto sério... Coisa que
nos toca de perto, que não posso
decidir sem você...
Neves e eu notamos, para logo, o
regime de choques e contra choques em que respiravam aquelas duas almas
adversas, aprisionadas socialmente uma à outra, por exigências da provação.
Inferindo que a companheira se
lhe aproveitaria da benevolência eventual para chamá-lo a questões de
responsabilidade, Cláudio despiu a máscara afetiva com que a brindara, de inicio, e,
taciturno, colocou-se em guarda. Do sorriso, tornou ao sobrecenho. Fino sarcasmo
tisnou-lhe os modos. Comandou a palavra, buscando, em vão, disfarçar o azedume.
Afirmou-se fadigado, alegouesgotamento adquirido em horários de serviço extra e
rematou, pedindo à esposa resumisse,
quanto possível, o que tinha a
dizer-lhe. Queria ler, pensar, refazer-se.
A esposa fingiu não ver o olhar
irônico que ele lhe endereçava e começou referindo-se ao cansaço de que se
sentia possuída.
Possivelmente, ele próprio
ignorasse; entretanto, submetera-se a vários exames, por solicitação do
ginecologista. Desde muito, atravessava as noites em claro, sofria palpitações,
sufocações, sensação estranha de peso, calores no peito.
O médico acreditava em menopausa
precoce e receitara. Ela, contudo, supunha-se depauperada, neurastênica.
Exauria-se nos problemas domésticos. A arrumadeira despedira-se. E, desde que se
fora, via-se obrigada a passar roupa, encerar, e, de certo modo, auxiliar no fogão
para que Dona Justa não esmorecesse. O conserto da geladeira custara um dinheirão.
As contas, no fim do mês,haviam aumentado.
Marina trouxera duas
gratificações que recebera em serviço
extraordinário, mas, ainda assim, estava onerada.
Tinha necessidade de quinze mil cruzeiros.
Nesse tópico da entrevista, o
interlocutor fitou-a, sarcástico, e indagou:
— É só?
A interrogação, carregada de
zombaria, pairou no ar damesma forma que uma chicotada cortante.
Dona Márcia emudeceu, ao impacto
da desconsideração inesperada.
O marido não dispensara sequer a
mínima atenção aos padecimentos orgânicos de que se queixara.
Desconhecia-lhe, de propósito, os achaques. Enquanto relacionava os incômodos de que
se via acometida, assustara-se ao
divisar-lhe a dura expressão dos olhos frios.
Conhecia aquela atitude gelada de profundo
desdém. Ao passo que se
lamentava, tinha a impressão de que ele, Cláudio, lhe perguntava em pensamento: «por
que não acaba você de morrer?» Em outras ocasiões, chegara a enunciar
semelhante inquirição, com palavras redondas, claramente pronunciadas e
repetidas. Por que tanto ódio? indagava
a si mesma. Não
contava receber uma ternura que
os atritos incessantes haviam incinerado entre ambos; contudo, cria-se com
direito a pequeno retalho de acatamento. Se ele adoecia, de leve, conquanto não o
amasse, vigiava-lhe a cabeceira. Zurzia o clínico da família pelo telefone. Todas
as providências à hora. Entretanto, ao
referir-lhe o tratamento que reputava
importante, a fim de evitar uma cirurgia comprometedora, recebia dois monossílabos secos
que o marido lhe pespegava no rosto, como se a repelisse com dois calhaus.
Persistindo o silêncio que se
alongava, Cláudio fez menção de
retirar-se; contudo, a esposa frustrou-lhe o
impulso, exclamando, agora irritadiça:
— Não saia. É preciso que você
fique. Esta casa não é minha só. Acaso,
não está vendo?
Marina e Marita... Criam-se os
filhos com desvelo, com carinho... Em crianças, são anjos; crescidos, são
pesadelos. Tenho sofrido calada, mas
agora... Isso não pode continuar sem que você se
mexa. Entre uma e outra, não é possível
a indiferença. Acolhi essa menina
estranha em meus braços como se fosse minha
própria filha. Suportei afrontas,
esqueci minha saúde, meu tempo... Não me poupei, fiz o que pude... Nada lhe
faltou, entretanto, hoje...
— Hoje, o quê? — revidou o
esposo, admirado.
— Pois você não percebe a
humilhação a que Marina se expõe? — acentuou a companheira, em lágrimas súbitas,
qual se estivesse habituada a chorar, quando quisesse. — Você não enxerga as
dificuldades de nossa filha?
Cláudio riu-se, como quem
decidira zombetear.
— Márcia, deixe de cenas... Você
fala em Marina, como se a nossa desmiolada estivesse na forca. Não entendo.
Vejo-a feliz e desorientada, como nunca. Se me detiver em qualquer problema
dela, será para admoestá-la, reprimi-la. Não fosse você com o desregramento de suas
concessões e com os seus maus exemplos, haveria de corrigi-la, ainda que
obrigado a interná-la no hospício...
— Que ouço, meu Deus? — gritou a
senhora.
Estancara-se-lhe o pranto,
alarmada que se achava, ao verificar o rumo improviso do entendimento.
— Você ouve a pura verdade —
prosseguiu Cláudio, implacável.— Ainda ante ontem, impelido por dever da
profissão a comparecer num coquetel, oferecido a um dos chefes, numa casa de
regalias noturnas, fui constrangido a pretextar uma enxaqueca e afastar-me. Sabe por
quê?
Nossa filha, que você pretende inculcar
por santa, estava lá, positivamente nos braços de um cavalheiro maduro e
bem-posto, que não a beijava paternalmente.
Senti tanta vergonha, que pedi a
um colega me representasse, e sai, à pressa, antes que Marina me percebesse.
— Oh! a pobrezinha! ... — objetou
Dona Márcia, faces em fogo, tremendamente revoltada.
Naquele instante, os dois
tiravam, mecanicamente, os últimos disfarces.
Postavam-se, em espírito, um à
frente do outro, com rudeza indissimulável. Dois inimigos soberanos, aversão contra
aversão.
E o diálogo azedo continuou:
— Pobrezinha, por quê?
A esposa mediu-o, de alto a
baixo, com um olhar de zombaria, e passou a acusá-lo:
— Não quero discutir agora a sua
presença de homem velho e casado, numa casa de tolerância, pois não
acredito nessa história de homenagens a chefes, em horas avançadas da noite.
Você foi sempre imoral, indigno,
mentiroso, mas, por amor à família, esqueço tudo isso, para que você conheça
toda a situação...
Refletindo na conveniência de
sensibilizá-lo para os efeitos a que se propunha, Dona Márcia baixou calculadamente
a escala de rispidez, abrandando a inflexão da voz que se tornara por demais
agressiva.
— Cláudio, atenda — continuou
quase melíflua —, Marina, obediente, nunca me ocultou a verdade. Não proceda
com malícia; desde a piora da esposa do senhor Nemésio, vem repartindo,
caridosamente, o tempo, entre as obrigações do emprego e o lar do chefe, onde a infeliz
senhora vem morrendo, pouco a pouco... Impossível que você não lhe admire a
abnegação, porque, de modo algum, precisaria
interessar-se pela vida íntima da
família Torres, a ponto de velar junto deles, por várias noites consecutivas, por
simples espírito de sacrifício...Não sei se você chega a vê-la, quando volta de
manhã, mostrando fundas olheiras e faces pisadas.
Na mente inventiva do
interlocutor, entretanto, operava-se complicada reviravolta. Assinalando as
palavras injuriosas de Dona Márcia, sentira ímpetos de esbofeteá-la. A indignação
ruborizara-o; todavia, conteve-se. Não que desistisse de revidar chasqueando, mas
permanecia convicto de que Marita escutava. Aspirava a
conquistá-la a qualquer preço.
Mormente agora que se declarara, não estava inclinado a recuar. Prosseguiria.
Dona Márcia, enganada, aceitara a
versão do pesadelo e acreditava que a moça dormisse, de vez que lhe recebera
a presença no quarto sem dizer palavra.
Ele, porém, sabia-se ouvido,
examinado. Não adotaria qualquer procedimento incompatível com a galanteria que
começara a desenvolver. Se esbravejasse, agravaria a distância. Deliberou
agüentar remoques e insultos, fossem quais fossem, estudando como
orientar-se na conversa para tirar o melhor partido.
Além disso, o amigo desencarnado,
ao lado dele, acalentava-lhe a rijeza de alma, insuflando-lhe idéias. A
fabulação de um complementava-se no outro.
Concluíam, juntos, que se fazia
mais razoável para eles examinar minudências e falar com intenção. Manejariam
Márcia para alcançar Marita. A interlocutora ser-lhes-ia instrumento.
Usá-la-iam por trampolim, rumo ao alvo.
Todas essas considerações
relampeavam no espírito de Cláudio, enquanto a senhora se empenhava
justificar-se, na defesa da filha. Dominado pelos novos pensamentos, não sorriu, mas
suavizou a expressão, como quem se
resigna aos ditames da paciência.
Algo desarmada por aquela
impassibilidade que se lhe figurava benevolência, Dona Márcia continuou:
— Acontece que o senhor Torres se
encontra francamente desarvorado, diante da tragédia que a fortuna dele
não pode conjurar. Dinheiro farto e coração abatido, negócios prosperando e morte à
vista. Nossa menina compadeceu-se. Tanto amparou a doente que acabou
descobrindo os sofrimentos do homem que se aproxima, conscientemente, da
viuvez... É por isso que vem buscando revigorá-lo, como pode...
— Mas, assim como estão fazendo?
Afogando-se em bebidas e prazeres noturnos, em que os dois se
assemelham a duas crianças destemperadas? Não os vi rezando pela tranqüilidade da
enferma...
— Deixe de ironias. Você, com
toda a certeza, numa situação igual, não se consolaria com lágrimas,
procuraria distrações. Não há inconveniente algum em que o senhor Torres, numa hora
dessas, se dirija para um ambiente alegre, a fim de ganhar forças, e não vejo maldade
em que trate Marina por filha dele
próprio,
afagando-a por boneca mimada que
sempre foi. Muito justo, muito claro. Dona Beatriz e o esposo conseguiram
somente um filho, não tiveram, como nós, a ternura de uma filhinha no lar e nem
adotaram alguma pequenina estranha a eles. Marina dá conta a mim, que sou mãe, de
tudo o que se passa. Você sabe que ela é profundamente sensível e
carinhosa. Tem muita pena do chefe e tenta reconfortá-lo...
— Reconfortá-lo? — gracejou
Cláudio, retomando a galhofa.
— Não adiantam sarcasmos — rogou
Dona Márcia, afetando desapontamento.
— Nossa filha vem agindo
corretamente. Tanto assim que a nossa conversa deve esclarecer grave assunto.
E, alterando o tom de voz, que se
fez mais persuasivo e mais doce:
— Você não ignora que Marita se
enamorou, há meses, de Gilberto, o filho dos Torres.
Vendo, de minha parte, os dois,
em ligação constante, acreditei piamente que o jovem nutrisse por ela uma
inclinação segura.
Misturando reserva e malícia,
passou a historiar-lhe as entrevistas, os passeios, os telefonemas, os bilhetes...
Salientou que se afligira ao apanhálos, a sós, numa excursão domingueira, em plena
floresta da Tijuca, dias atrás. Admitia
que seria preciso examinar-lhes o caso.
Aborrecera-se ao descobri-los, assim,
positivamente
isolados, sob as árvores. Mulher
e mãe, inquietava-se ao pensar na filha adotiva...
Cláudio, nessa altura,
marcava-lhe os avisos, de olhos em fogo e coração aos saltos.
Então Márcia também sabia...
Aquele jeito arisco da esposa nas confidências não o enganava.
Indubitavelmente, ela senhoreava
minúcias que preferia esconder. Não chegava Paquetá. A mataria, igualmente,
fora teatro dos colóquios e beijos que detestava.
Não esperava aquele noticiário
miúdo na própria casa. Não supunha a mulher, assim, consciente da situação de
que se conjeturava exclusivo conhecedor...
Naquele minuto, olvidava a menina
que se lhe desenvolvera-nos braços, anulava-se na condição do pai, chamado a
zelar-lhe o nome. Irrompia nele o animal ferido, o homem selvagem que lhe dormia
habitualmente na polidez, espicaçado pelo ciúme.
Esfregando os dedos contra as
palmas das mãos, num gesto que lhe particularizava o desagrado,
levantou-se, deu alguns passos pela sala e resmungou:
— Ingratidão!
A esposa usufruia a cena com a
volúpia de quem alcançava os próprios fins, porqüanto, desde o princípio da
conversação, aspirava a estabelecer um clima favorável à filha legítima, a
detrimento da outra. Julgava que o marido, com semelhante exprobração, resumia
numa palavra o asco que provavelmente albergaria contra o procedimento
da pupila que desejava arredar. Muito distante da realidade, não percebia que a
indignação dele se arraigava no azedume do apaixonado que se vê preterido e,
por isso, ensaiava um sorriso triunfante...
Nós, porém, conseguíamos
analisar-lhe as telas mentais e verificar quanto lhe doía o desprezo.
Via-se, espiritualmente, ao pé do
jovem, medindo forças. Ah! se lhe fosse dado enxergá-lo, naquela hora, ao
alcance das mãos! Certo lhe despejaria todo o peso da cólera na constituição de menino
e moço, esfrangalhando-lhe os ossos...
— Comove-me a sua reação contra
Mana!... Registrando a frase retícenciosa da companheira, deu-se conta do
papel desaconselhável que começava a assumir.
Quase que se denunciara, de todo.
Ultrapassara os limites da circunspeção que lhe cabia conservar no próprio
interesse e deliberou recompor-se. Reconheceu que Márcia lhe apreciava a repulsa,
crendo vê-lo unicamente nolugar de pai, machucado pelas circunstâncias, e
deixou que ela se acomodasse a essa
interpretação, encastelando-se,
mentalmente, na defensiva. Reprimiu o desespero que o possuia, sentando-se, de
novo, a relaxar os nervos tensos. Apagou exteriormente todos os sinais de
excitação, aparentou calma súbita.
A senhora, que ambicionava
amontoar vantagens para a filha, longe de imaginar-se iludida naquele jogo,
em que marido e mulher se nos representavam dois parceiros astuciosos, nos
golpes estudados um contra o outro, falou serena, presumindo controlar agora toda a
situação:
— Sua atitude respeitável de pai
me encoraja e me alegra. Graças a Deus, sinto em você o chefe da casa e da família.
Cláudio ouvia, atento.
É necessário que você saiba —
prosseguiu ela — que Gilberto não quer coisa nenhuma com Marita, que vive a
derreter-se sem razão, O rapaz é apaixonado por Marina e tudo indica
possibilidades de um casamento vantajoso, que não podemos jogar fora.
O interlocutor ardiloso deduziu
que chegara para ele a oportunidade da vingança. Fingindo desconhecer a
trama de sentimentos em que ambas as jovens se enredavam, comentou, em voz
alta, os novos aspectos do problema, a fim de ser claramente escutado por Marita,
que sabia de atalaia, no quarto próximo. Depois de
encarecer a excelência do caráter
da filha adotiva, destacando o apreço e a ternura com que se dedicaria a
protegê-la, acentuou, jocoso:
— Ah! o biltre!... então, essa
farsa de vaguear com Marita, arrastando-a por aí, não é senão alcovitice e
trampolinagem... O peralta está carambolando. E’ o bilhar dos namorados, bate-se numa bola
para acertar em outra...
E relacionou pobres moças,
traídas na confiança, explicou que Marita era suscetível de uma psicose de
duras conseqüências. Se Gilberto estava propenso a desposar Marina, que se
manifestasse. Não oporia embargos,no entanto, exigia franqueza.
Dona Márcia, repentinamente
lisonjeada, ao colher-lhe as disposições
tão favoráveis, arrolou as
confidências da filha.
O rapaz confessara-se.
Admirava-lhe não só os encantos pessoais, mas gabava-lhe a educação fina. De
começo, apenas se cumprimentavam, de quando em quando. Ele, porém, tivera
necessidade da cooperação de alguém que o auxiliasse na tradução de alguns
textos franceses.
Marina expusera a competência
adquirida, O trabalho realizado erigia-se em característicos tão primorosos
que obtivera louvor na Embaixada. Desde essa empresa, trabalhavam quase que
unidos. Marina revelara-lhe que o próprio senhor Nemésio, sempre solícito, passara
a nomeá-la por nora.
Cláudio, acintosamente, dizia, de
quando em quando:
— Márcia, não estou ouvindo bem,
fale um pouco mais alto.
A companheira, elevando sempre a
modulação da voz, contou que os dois, embora a situação constrangedora
da saúde de Dona Beatriz, no momento, traduziam poesias deliciosas de
autores ingleses, marginando-as de trechos sentimentais que lhes expressavam
a ternura recíproca, compondo lindo álbum cuja leitura lhe arrancara lágrimas de
enternecimento. O amor entre ambos era claro como água. Indispensável apoiarem
a filha, na concretizaçãode suas esperanças.
Afirmava-se confortada em
reconhecer, a tempo, que a cultura de Gilberto não se compadecia com as deficiências
de Marita, para quem o moço não seria, por isso, um partido feliz.
Asseverava, convicta, que competia a ele, Cláudio, e a ela a orientação do assunto. Ponderou
ainda que o auxílio dispensado por Marina a Dona Beatriz estreitara as relações
entre os jovens, e, supondo o esposo agastado à vista de contrariedades prováveis para
a filha adotiva, acrescentou, entre desabrida e chistosa, que Marita se
arranjaria, na época oportuna. Inclinações de moças, problemas delas.
O marido não acreditou em tópico
nenhum do que ouvira. Pai, desiludira-se coma filha. As investidas noturnas
pelos recantos boêmios, as maneiras inconfessáveis, no trato com o chefe de serviço,
não lhe deixavam dúvidas. Ao revés, as
noticias entusiásticas de Márcia
acordavam-no para realidades mais agressivas. Inferia que Marina andava sem escrúpulos
entre o velho e o moço. De outro modo, na condiçãode esposo, não lograria
embair-se. A companheira figurava-se-lhe a mulher desleal aos compromissos domésticos,
mulher que ele mesmo plasmara comos seus exemplos de homem refratário ao
equilíbrio emotivo. Impossível queixar-se. Com a tarimba da sociedade menos digna,
fizera-se Márcia astuciosa, cruel. Dissimulava para ganhar. Certamente, não lhe
confiava quanto sabia. Estaria informada de todas as ligações escusas da filha com
o senhor Torres, tanto quanto ele próprio.
Capearia as inconveniências,
incentivaria, talvez, a leviandade com propósitos de lucro; entretanto, aquele era o
momento de atrair a confiança de Marita
e, à face dessa razão que se lhe alteava no
ânimo empedernido, calou a revolta e partilhou a farsa, afiançando confiar na
menina que amavam por filha. Tentaria distraí-la, renová-la, e, de acordo com ela,
Márcia, procuraria incluí-la num roteiro de turismo aBuenos Aires, para o qual fora
convidado por amigos, no banco. Marita esqueceria, esqueceria.
O entendimento avançava, mas o
serviço nos convocou ao aposentopróximo, onde a mágoa da jovem explodia,
inarticulada, em vibrações de intensa dor.