sexta-feira, 20 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 10
Estirada no leito, chorava
Marita, desconsolada. As revelações ouvidas naquele diálogo, a curta distância,
revolviam-lhe o coração, quais pinças de
fogo. Sentia-se abandonada, desejava morrer.
Então — confirmava-se —, todo
aquele devotamento de Gilberto não passava da superfície.
Apropriara-se-lhe da alma,
empolgara-lhe os sentimentos, para deixá-la sem comiseração.
Recordava-se de que, realmente,
semanas antes, indagara-lhe ele que outros idiomas conhecia.
Algo vexada,
informara que somente conseguira o curso primário. O moço retirara da algibeira
uma composição de Shelley. Lera o inglês e traduzira para ela os vemos lindos.
Em seguida, aconselhara-lhe estudos suplementares à noite.
Poderia auxiliá-la,
relacionava-se com professores distintos. Ela rira-se, queria o lar, a escola do lar com ele. Apenas
ali, na decepção que a molestava, compreendia a extensão do arrufo com que se
despedira. Ah! sim, aspirava ao casamento com moça culta. Ignorante! — dizia
para si mesma — não passo de uma
ignorante.
Marina era diferente, dominava
outras línguas.
Tudo já estava tramado,
deliberado.
À vista disso, a irmã
recusava-lhe intimidade nos dias últimos. Por mais a rodeasse de mimos, mais se afastava.
Agora reconhecia igualmente a
causa de mostrar-se o rapaz enfastiado e irritadiço. Entretanto —
perguntava-se, triste —, se ele a desprezava, assim, por que lhe abusara da confiança? Por que
o arrebatamento com que lhe acorrentara a alma às inesquecíveis impressões da
menina que se faz repentinamente mulher? Não selara com ela um ajuste de
matrimônio? Não lhe testemunhava extrema ternura nos encontros domingueiros,
quando se entregavam a comunhão mais íntima?
Incapaz de duvidar da
legitimidade do carinho que recebera, voltava-se mentalmente para a irmã que lhe
surrupiava as mínimas alegrias. A nova infelicidade — conjeturava —
seria culpa dela.
Com toda a certeza, Marina
cobiçara o rapaz, a envolvê-lo na teia de artimanhas que entretecia como ninguém.
Gilberto caíra-lhe no engodo. Ave no visco. Contudo, ao descobrir toda a trama,
reconhecia-se irremediavelmente lesada. Debatia-se empranto, sob o peso das
considerações familiares. Era imperioso certificar-se de que era enjeitada e ignorante. Nada
sobraria para ela, tudo para a outra. Marina possuía méritos, ela não.
A exposição de Dona Márcia,
naquela hora, insuflara-lhe-a tortura do réu que ouve sentença inapelável. Ainda
assim, chorava, inconformada. A contingência de perder Gilberto induzia-lhe o
sentimento a matar ou desaparecer. Rememorou as tragédias, lidas na imprensa, mas
o fratricídio repugnava-lhe ao coração. A idéia do suicídio, contudo, qual semente a
se lhe ocultar no imo do ser, evocada pelo esboço ligeiro da alma, como que
germinara, de súbito. Acariciou-a, de leve, e a sugestão infeliz ganhou corpo. Divagações
negativas tomaram-na de assalto. Renunciar a Gilberto e largar os planos
feitos doeriam muito mais que morrer — pensava, desolada. Mas seria justo
acovardar-se, assim tanto? Repeliu o estranho apelo e, conquanto as
lágrimas, prometeu coragem a si própria. Lutaria pela felicidade. Explicar-se-ia
com o rapaz, baniriam, juntos, a ameaça pendente.
Entretanto, se Gilberto não lhe
aceitasse os argumentos, que fazer do
destino, se, com o golpe sofrido à frente,
percebia também o fantasma da esquisita inclinação do pai adotivo pela retaguarda?
Por que a peça que a vida lhe
pregava? Devia esquivar-se ao afeto do jovem que amava, numa consagração
natural, para ganhar a paixão do homem maduro que se habituara a respeitar como
pai e que lhe acenava com uma espécie de união para ela inaceitável?
Estarrecia-se ao ouvi-lo naquela hora. Identificava-lhe o tom de alegria triunfante, ao dar-se
conta da felicidade com que se desembaraçaria de Gilberto, no campo em que se
prometia apresá-la.
Cláudio como que lhe falava de
longe, ao dirigir-se à esposa. Aquelas referências louvaminheiras com
que a obsequiava, perante Dona Márcia, confirmavam-lhe a decisão de
dobrá-la, demovê-la. Entre o asco e a
piedade, rememorava-lhe as carícias, que
somente naquela noite conseguira compreender.
Como desvencilhar-se?
Flor sacudida no vento da
provação, perguntava por quê, por quê?...
Sopesando as ocorrências, pela
primeira vez sentia medo daquele ninho familiar a que se reconhecia encadeada por
filha do coração.
De repente, elevou o pensamento à
memória materna... Ah! nunca imaginara que um coração feminino pudesse
encontrar dilemas tão aflitivos, quanto aqueles a que se via largada, de instante
para outro! Que não teria sofrido sua própria mãe, que a deixara no instante do
alvorecer? Nunca soubera, ao certo, as circunstâncias que lhe haviam rodeado o
nascimento. Concluía agora, porém, que talvez a genitora tivesse conhecido o cálice que
ela agora amargava! Que noites de agonia moral atravessara, sozinha, ao
acariciá-la no ventre! Que injúrias padecera, que privações experimentara? Ela, que tudo
desconhecia acerca do pai, refletia no
martírio da genitora, jovem e abandonada,
quando, provavelmente, lhe aguardava, em vão, o carinho e a proteção, noite a
noite.
Dona Márcia, ao biografar-lhe a
mãezinha, dissera «moça brincalhona».
Teria sido mesmo?
Possivelmente, gargalharia para
não soluçar, ansiando abafar em ruídos de festa os gritos da própria
alma... Quem sabe ter-se-ia dedicado a algum homem proibido, empenhado o coração a
algum moço que lhe fora roubado à ternura de menina e mulher?
Nas lágrimas que lhe corriam,
suspirava pôr fazer-se criança... Por que não vivera a mãezinha, a fim de
lutarem juntas? Consagrar-se-iam uma à outra.
Permutariam as próprias mágoas...
Muita vez, na loja a que servia,
escutava apontamentos sobrecomunicações de mortos, inteirava-se de experiências
sobre a continuação davida no Além... Seria aquilo verdade? — indagava-se. Se
Aracélia, libertada, estivesse em alguma parte, indiscutivelmente lhe
acompanharia o calvário, compartilhar-lhe-ia o infortunio...
Mecanicamente, implorava ao
Espírito materno a abençoasse, fortificasse, protegesse...
Conquanto sem qualquer idéia
religiosa definida, formulava prece muda, que valia por funda invocação...
Intentávamos consolá-la, buscando
asserenar-lhe a mente, quando duas senhoras desencarnadas penetraram
no quarto, de improviso.
Saudaram-nos, afetuosamente,
revelando a condição de entidades familiares, vinculadas àquele refúgio
doméstico.
Das recém-chegadas, a que nos
pareceu menos experiente adiantou-se para a menina em oração. Controlava-se,
dificilmente. Tremia, ao enxugar o
pranto silencioso. Inclinou-se para o
leito, como qualquer mãe desventurada e aflita da Terra, quando teme acordar um ser
querido...
Embora sem elucidações prévias,
não nos era licito alimentar qualquer dúvida.
Aquela, era a jovem do retrato
que Marita conservava, em imagem, nas telas do pensamento. Aracélia, amparada
pela doce afeição de venerável amiga, ali estava, diante de nós! Mãe amorosa,
vinha talvez de muito longe para acudir às angústias da filha... Enternecendo-nos, a
pobre mãe ajoelhou-se para beijar-lhe os
cabelos...
E, oh! segredos insondáveis da
Providência Divina!... Quem conseguirá
definir com palavras humanas a essência do
amor que Deus situou nas entranhas maternas?...
A dama inclinou-se, muito de
manso, e abraçou-a, com ternura, à maneira de planta que se fechasse sobre a única
flor que lhe nascera...
A castigada menina acalmou-se, de
súbito. Adivinhando a visita pela qual suspirava, alijou a tensão, percebendo-se
mentalmente ocupada pela presença da genitora, cujos traços tentava,
afetuosa, lembrar e reconstituir.
Outro quadro, entretanto,
superpôs-se, comovedor.
Aracélia, que orava e chorava em
profundo silêncio, buscava em pensamento outra mulher, cuja evocação lhe
renovava as energias.
A mãe desencarnada via-se
pequenina, junto da lavadeira singela
que a trouxera, na reencarnação última,
para o teatro da vida humana. Identificava-se criança, agarrada à saia daquela
moça doente, que mergulhava as pernas no rio para ganhar o pão... Tão fundo
atingia a acústica da memória, que chegava a escutar o ruído daquelas mãos
miúdas, esfregando as peças ensaboadas...
Recolhia-lhe, de novo, o olhar
meigo, em que lhe pedia paciencia... Calada, na areja, por vezes esperava,
esperava, depois que a mãezinha lhe repunha o corpo frágil, à curta distância, a fim
de atender ao serviço...E rememorava o enlevo e o júbilo que sentia, quando os
braços maternos a retomavam, para fazê-la dormir, ao som do velho estribilho, a que se
acostumara no lar de telha vã....
De olhos parados, como se
buscasse, além, no espaço infinito,o colo agasalhante que o tempo
arrebatara, assumiu nova posição, colocando a cabeça da jovem no próprio regaço e,
emocionando-se até às lágrimas, qual se tivesse nos lábios aqueles lábios de mãe,
humilde e enferma, que jamais esqueceria, Aracélia, em pranto resignado, cantou
suavemente diante de nós:
Lindo anjo de meus passos, Descansa, meu doce bem; Dorme, dorme nos meus braços, Enquanto a noite não vem.
Dorme, filhinha querida; Não chores, encanto meu; Dorme, dorme, minha vida,
Tesouro que Deus me deu...
Qual se fora repentinamente
magnetizada, Marita caiu em pesado sono.
Isso feito, a senhora, que
tutelava a companheira, atraiu-a brandamente de encontro ao peito, no manifesto
propósito de consolá-la e, segurando-a,
falou-nos, triste:
— Irmãos, nossa Aracélia ainda
não está em condições de amparar a filha.
E, ajuntou, entre gentil e
desapontada:
— Perdoem-nos a interferência.
Nós, as mães, em certas dificuldades, nada mais temos que alguma velha
canção para dar aos nossos filhos!...
Em seguida, retirou-se, sustendo
Aracélia, que se lhe refugiara nos braços, soluçando...
Ainda não nos refizéramos da
emoção, quando vimos Marita,em espírito, afastar-se do corpo denso,
guardando a inquietação da criança que anseia inutilmente pelo calor materno...
Qual ocorre, porém,à maioria das criaturas encarnadas, no plano físico,
mostrava lucidez oscilante, insegura... Cambaleou no quarto e, percebendo eu que Neves
se dispunha a amimá-la, sustive-lhe o impulso, fazendo-lhe sentir que a nossa
intervenção direta poderia frustrar-lhe os desejos e que, a fim de prestar-lhe auxílio
eficiente, era mister deixá-la à vontade, sob vigilância discreta, de modo a
examinar-lhe as necessidades mais íntimas.
Sucedeu, quase que de imediato, o
que não prevzamos.
Esfumaram-se os arroubos da filha
saudosa, esmaeceram-se atitudes infantis, a menina de Aracélia desaparecera e
ressurgiu nela a personalidade feminina, estuante e clara.
A moça não nos via. Guardava a
mente nebulosa que caracteriza os pequeninos ainda tenros, incapazes de
particularizar as impressões, quando se transferem de lugar; entretanto, qual lhes
acontece, quando ao reterem idéias fixas, quais sejam o brinquedo ou a guloseima,
concentraramse-lhe todos os pensamentos num ponto só: Gilberto.
Queria ver Gilberto, ouvir
Gilberto.
Semelhantes impulsos a se lhe
conglomerarem na cabeça, repetidamente emitidos, galvanizavam-lhe a
vontade, revestindo-lhe o pensamento de uma certa clareza, que a favorecia, porém,
tão só na direção dos seus anseios de
mulher.
Essa penetração parcial como que
lhe conferia agora seguro apoio íntimo, e Marita, figurando-se-nos senhora de si,
conquanto absolutamente presa ao desejo ardente em que se obstinava, largou o
aposento e, descendo os largos trechos da escadaria que contornava o elevador, deixou
para trás o enorme edifício, qual sonâmbula, magnetizada pelos próprios
reflexos.
Seguimo-la, atentos, não obstante
confiando-a à própria discrição.
Cabia-nos estudar-lhe os ímpetos
extrovertidos, consultar-lhe as inclinações.
Não tivemos, todavia, qualquer
dificuldade para adivinhar-lhe o rumo.
Em tempo reduzido, a filha
adotiva de Cláudio alcançou a residência
de Nemésio, que já se nos fizera
conhecida.
Na certeza instintiva de quem se
endereça a determinada pessoa, pelos recursos do olfato, sem atender a
quaisquer convenções de forma e número, avançou casa a dentro,
acalentando a imagem de Gilberto, que lhe substancializava o pensamento dominante.
Impulsionada pelas percepções
indefiníveis da alma, demandou amplo dormitório, localizado nos fundos
da moradia, e, sem quenos fosse possível avaliar, de pronto, a resolução de
garantir-lhe a liberdade, afim de analisar-lhe as reações, sobreveio o choque doloroso.
Naturalmente sobressaltados,
apenas conseguimos ampará-la pela retaguarda.
Entrando no quarto, Marita
surpreendeu Gilberto nos braços da irmã, e bradou, estarrecida:
— Canalha! Canalha!...
Aquelas imprecações, entretanto,
nem de longe atingiramo jovem par, completamente absorto na permuta
de gratificações afetivas.
Neves e eu não trocamos palavra.
Precipitamo-nos, automaticamente, para a menina atribulada, intentando
anular-lhe a agitação convulsiva.
Mais alguns minutos e despertou
no corpo denso, obrigando-nos a pensar numa pequena fera aguilhoada, retornando
à gaiola. Descerrando as pálpebras, vagarosamente, denotava no olhar
a feição dos loucos, quando relaxam os músculos em seguida a perigoso
acesso de fúria - Tateou, espantada, a fronte suarenta. Fez luz, com fome de
realidade física. Atarantada, sentou-se para fixar as paredes, com mais segurança, e
certificar-se de que se achava no leito e no lar.
A pouco e pouco, readquiriu a
confiança, acalmou-se, refazendo energias; no entanto, acusava uma espécie de
tranqüilidade constrangida e amarga.
Pesadelo? — indagava-se, aterrada
— ou quem sabe os padecimentos simultâneos lhe acarretavam
crises de loucura?
Doía-lhe a cabeça, sentia-se
desajustada, febril. Marita regressara
ao agasalho físico, sob pressa demasiada, sem
que nos fosse possível adotar qualquer providência para anestesiar-lhe a
memória.
Retinha no pensamento
particularidades do quadro visto eouvido, e encarcerada, de novo, entre as
impressões superficiais dos sentidos corpóreos e a noção da verdade profunda, que
não lograva apalpar, entrou em pranto agoniado, para somente dormir, com relativa
calma, aos clarões do dia.