sexta-feira, 7 de setembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 12
Neves e eu permutávamos
conjeturas, quando alguém nos abraçou, de afetuosamaneira.
Era o irmão Félix, a despedir-se.
Espírito admirável pela abnegação
e pela ciência, reverenciado por todos os seareiros do bem, onde passasse,
em se referindo aos protagonistas do drama familiar que se nos oferecia à
atenção, apresentava os olhos marejados de pranto.
Via-se-lhe, não somente a piedade
fraterna, mas também o imenso amor àquelas quatro almas, reunidas
ali, naquele aprazível recanto do Rio.
Parados, agora, respirando as
aragens que encrespavam docemente as águas da Guanabara, enquanto o céu da
madrugada imprimia mais amplo realce às estrelas, enternecia-nos
reconhecer-lhe o paternal carinho, qual se fora um homem comum descansando conosco, à
frente do mar.
Tão grande e tão puro o
devotamento de que dava mostras, ao descerrar-nos os tesouros do coração, através
das palavras, que o próprio Neves, irrequieto às vezes, ao escutar-lhe as
apreciações, cumpria espontaneamente o
que prometera.
Nenhuma observação impulsiva,
nenhuma interjeição impensada.
A atitude do instrutor, ao
deter-se nas lutas escabrosas do plano físico, educava cativando.
Elevação em cada frase, luz do
sentimento em cada idéia.
Conquistava, sem pedir, o nosso
interesse na prestação de assistência voluntária ao lar de Cláudio,
cuja estabilidade periclitava, na conceituação dele mesmo.
Compadecia-se — elucidava,
prestimoso — daquelas quatro criaturas, atiradas ao oceano da experiência
terrestre, sem a bússola da fé. A
princípio, esforçara-se por abrir-lhes um caminho
espiritual, mas debalde. Afundavam-se em profundanévoa de ilusão, hipnotizados
pelas gratificações transitórias dos sentidos carnais, ao jeito de passarinhos agarrados
à casca apodrecida de um fruto, sem a
mínima disposição de consultar a
saborosa riqueza da polpa.
Descobrindo algo mais à própria
intimidade, relatou-nos que vira Cláudio renascer, que acompanhara Dona
Márcia no berço, que seguira, de perto, areencarnação de Marina e Marita,
deixando ver nas reticências as lágrimas que semelhantes realizações lhe
haviam custado, sem alardear virtude ou superioridade, em torno dos empeços vencidos.
Hipotecara dedicação, amizade,
confiança e tempo, a fim de entrosá-los em alguma obra de benemerência, de
maneira a cultivar-lhes a espiritualidade latente; no entanto, Cláudio e Márcia, de
novo no estágio físico, sob o esquecimento inevitável e providencial do
pretérito, haviam recapitulado certas experiências infelizes.
No mundo espiritual, antes de
recomeçarem o trabalho terrestre, analisando asnecessidades e os remorsos que
lhes atenazavam as consciências, haviam prometido empregar o prêmio da
internação no veículo carnal, edificando a sublimação íntima e corrigindo
excessos de outras épocas, através do
suor no serviço ao próximo; contudo,
imperfeitamente chegados à juventude das forças corpóreas, tinham abraçado
paixões que lhes frustravam todas as possibilidades delibertação próxima. Ele, Félix, e
outros companheiros empenhavam-se em auxiliá-los, mas infrutiferamente. Os
quatro resistiam a toda espécie de sugestão reparadora; repeliam, de pronto,
qualquer projeto construtivo.
Nobres amigos de outras eras,
aplicados a estender-lhes apoios preciosos, acabaram desiludidos, largando-os
ao próprio arbítrio.
Cláudio e Márcia, principalmente,
ao elegerem o dinheiro e o sexo desgovernados por chaves dos
próprios dias, nada mais estavam conseguindo quedesajustar os fundamentos da
tranqüilidade doméstica. Em razão disso,
Marina eMarita não obtinham alicerces
para a felicidade real. Jovens ainda, complicavam-se as duas em perigos e tentações,
de que muito dificilmentese desvencilhariam, semdolorosas marcas na alma.
Tamanha se evidenciara a rebeldia
de Cláudio que, naquela hora significativa eameaçadora da existência, não
contava, além da Providência Divina, senão comraros amigos. Ainda assim, esses
amigos — acrescentava modesto, certamente ponderando quanto às dificuldades
dele mesmo — não se viamcom direito asolicitar socorros especiais e,
absorvidos por responsabilidades
numerosas, achavam-se na contingência de apenas dispensar-lhe auxilios
esporádicos, incertos.
Compreendemos onde o benfeitor
categorizado e humilde se propunha chegar e adiantamo-nos, prometendo nossa
adesão decidida ao programa assistencial que ele delineasse.
Dispúnhamos de oportunidade, não
nos seria difícil.
Além do tempo que me era licito
despender, atento à concessão dos meussuperiores para colaborar em
apoio de Neves, possuía um requerimento em trânsito, junto das autoridades
competentes, para que me fosse concedido umestágio de dois anos, em alguma
das organizações destinadas,em Nosso Lar (4), aos serviços de psicologia
sexual, com finalidades reeducativas, e ciente de que ele, irmão Félix, responsabilizava-se
pela direção de um dos melhores institutos dessegênero, pedia-lhe, por minha vez,
me endossasse a petição.
Sentir-me-ia feliz com o ensejo
de estudar e trabalhar, assimilando-lhe a experiência e recebendo-lhe o
patrocínio.
O instrutor reafirmou a sua
simplicidade, declarando quea obra pela qual respondia talvez não pudesse
satisfazer-nos a expectativa, mas
obrigava-se — acentuava Félix, sem alarde — a
favorecer-nos os estudos que intentaríamos.
Notando-me o entusiasmo, Neves
não vacilou compartilhar-meos propósitos.
Faria requisição idêntica.
Nosso interlocutor, comovido,
esclareceu que isso vinha reconfortá-lo, sobremaneira, porque, atendendo a
ditames de afetividade e reconhecimento,alcançara permissão para recolher
Beatriz, em sua própria residência, tão
logo aesposa de Nemésio pudesse
retirar-se da esfera física, depois da desencarnação.
Hospedá-la, junto de Neves, o
genitor que a filha jamais apartara da lembrança, ser-lhe-ia contentamento enorme.
Ambos desfrutariam abençoada
convivência, regozijar-se-iam unidos, recordando o passado e
articulando novos planos de trabalho e alegria.
Enquanto o devotado coração
paterno se desmanchava em agradecimentos, Félix se despediu, afetuoso.
Demandando algum refazimento,
esboçávamos projetos, ideando medidas de ação.
Manifestava-se Neves tocado de
energias e esperanças novas. Aguardaria a filha, sim, confiante no futuro.
Almejava o reequilíbrio total, ansiava reeducar-se, a fim de lhe ser mais útil.
Empregaria todos os recursos, de
modo a ampará-la, fortalecê-la.
Eufóricos, deliberamos
concentrar, a partir do dia que se anunciava, todas as nossas atividades de vigilância
ao lado de Dona Beatriz, prestes a se desobrigar das células doentes, e,
certificando-nos de que a moradia dos Nogueiras reclamava plantão, urgia revezar-nos em
serviço.
O amigo, contudo, ponderou com
razão que a filha se abeirava do transe final, que receava não dispor da
serenidade precisa, caso fosse defrontado, sozinho, por obstáculos constrangedores.
Era humano, adorava aquela filha
padecente. Queria afagá-la, alentá-la, conquanto não se presumisse com
merecimento bastante para estender-lhe apoio e consolação.
Não seria recomendável se
mantivesse, em carater permanente, no lar dos Torres, ao passo que me
reservaria o compromisso de cooperarn a pacificação dos Nogueiras.
Isso apenas por alguns dias,
enquanto a liberação de Beatriz estivesse pendente.
Tanto quanto possível, por outro
lado, poderia, de minha parte, tornar para junto dele, partilhando-lhe o clima da
filhinha agonizante,onde nos acomodaríamos aos imperativos de nossa edificação
moral, estudando e servindo, para mais amplo rendimento das horas.
Aqui, contente, àquelas
nótulas sensatas.
Foi assim que, refeito,
regressei, manhã alta, ao apartamento de Cláudio, no intuito de investigar, a sós, a
paisagem que me pautaria o quadro fundamental de aplicação ao dever assumido.
Cabia-me conhecer as minudências, suscetíveis de adquirir maior importância, de
momento para outro, esquadrinhar pontos de apoio, tomar contactos, e, se possível,
ouvir pessoalmente os dois irmãos desencarnados, que ali desempenhavam lamentável
papel.
Entrei. Apenas Dona Márcia,
conversando com a senhora que se incumbia das mais pesadas obrigações no
recinto doméstico, a comentarem os tópicos engraçados de certo programa de
televisão, que a família acabava de instalar, com espírito de novidade e alegria.
Tudo calmo, os vampirizadores
ausentes. Limpeza e ordem.
Em dado instante, a figura de
Marita invadiu-me o cérebro. Afeiçoara-me à pobre menina. Era uma filha
espiritual que me tocava resguardar solicitamente.
Desassossegado, precipitei-me
para a rua e, a breve trecho, vi-a na loja colorida e simpática, ensaiando sorrisos
para as freguesas bem-postas.
Abracei-a, paternalmente,
expressando-lhe em silêncio votos de paz e otimismo. Ela respondeu, de modo
instintivo, acalentando vagas idéias de reequilíbrio e esperança. Registrava-se-lhe a melhora inequívoca.
O amparo magnético assimilado
funcionara, eficiente. Ignorando por que motivo, acusava-se tranquila, mais forte.
Repousara, reconstituíra-se. Retomara o gosto pelo trabalho, palestrava
animadamente, selecionando algodões estampados.
Nossa presença passou a
despertar-lhe reflexões. Não obstante opinasse nisso ou naquilo, entre as clientes
amigas, começou a pensar, pensar...
Depois de alguns minutos,
pressionada pelas lembranças, caminhou para o telefone e chamou Dona Márcia,
perguntando se ela viria, na parte da tarde, a Copacabana, e, informada
afirmativamente, rogou à mãezinha adotiva a procurasse, se possível, às quatro.
Lanchariam juntas, tinha algo a dizer-lhe.
Concluí que significaria abuso
incomodá-la no trabalho, em que se obrigava
a retalhar atenções, através dos
pensamentos descontínuos, e aguardamos a ocasião adequada, a fim de inteirar-nos
acerca de atividades ou problemas em que
nos fosse possível desenvolver algum
préstimo.
No horário previsto, acompanhamos
mãe e filha até pequenino recanto de hospitaleira sorveteria,
considerando a gravidade da tarefa de que fôramos investidos.
Postadas ambas em clima de
segredo, Marita desafogou-se comdificuldade, começando a falar, discreta e
humilde.
Que Dona Márcia lhe perdoasse os
aborrecimentos daquela hora; entretanto, não tinha culpa.
Não desconhecia a extensão da
mágoa que lhe cortaria a alma, daria tudo para não feri-la, mas sentiria
remorsos se não lhe contasse o sucedido. Hesitara muito, antes de resolver situá-la no
assunto, adiantou, acanhada. Sentia-se, porém, sua filha pelo coração, devia
confiar-lhe tudo.
E, na ingenuidade de moça
inexperiente, relatou a confissão que Cláudio lhe fizera, a descrever-lhe os modos,
lance por lance. Espantara-se, sofrera muitíssimo.
Jamais esperava por semelhante
ocorrência. Tivesse parentes e não
vacilaria mudar-se para evitar escândalos. Era, contudo, dependente, sozinha. A única família que possuía eram eles mesmos, os
Nogueiras, cujo nome usava, orgulhosa,
desde a infância. Andava desorientada,
receosa. Pedia conselhos.
A interlocutora, todavia,
escutara sorrindo, nem mesmo interrompendo, de leve, a deglutição da taça de creme,
que saboreava, com requintes de paladar.
Tamanha impassibilidade esfriou a
disposição da jovem, que passou a resumir, quanto pôde, as confidências e
alegações que se inclinava a expender;
e, com indizível surpresa, não somente
para Marita que lhe aguardava, ansiosa, a palavra, mas igualmente para nós, que não
contávamos com o ardiloso expediente de Cláudio, defendendo-se
previamente, Dona Márcia patenteou, no semblante sereno, absoluta incredulidade e
participou que o marido, na véspera, a convidara para conversação, à parte,
comunicando-lhe certas apreensões. Dissera-lhe que, à noite, no entendimento mantido, não
tivera coragem de mencionar o assombro que o perseguia, porqüanto julgara
prudente refletir sobre o acontecimento que tanto o penalizava, antes de avançar em
qualquer conclusão. Entretanto, após meditar, aturadamente, deduzira que ela,
Marita, necessitava da proteção de um psiquiatra.
Dona Márcia perfilhou um tom de
voz em que se conjugavam inquietação e advertência, e continuou
informando, informando...
Dissera-lhe Cláudio haver
experimentado imenso alívio, ao vê-la penetrando no quarto, na noite da antevéspera,
porqüanto, momentos antes, ao despertar a filha adotiva sonambulizada, fora
assaltado por ela com muitos beijos, que lhe ouvira fra-ses inconvenientes, que
se forçara à reação, pelo que a esposa percebera as vozes com as quais tanto se assustara.
Anunciara-lhe ter refletido suficientemente e acabara aceitando a hipótese de
um desequilíbrio. Rogara-lhe concurso para que um psiquiatra interferisse no
problema. Assumiria ele a
responsabilidade das despesas e, preocupado qual se
achava, faria mais ainda... Envidaria esforços para que uma excursão à Argentina lhe
restaurasse as energias, evidentemente alteradas.
Diante da estupefação que nos dominava,
a senhora Nogueira tomou posição conselheiral.
Recomendou à menina procurasse
esquecer, distrair-se. Explicou que não viera ao encontro, no intuito de
abordar o caso. Ante as alegações da filha, entretanto, não encontrava outra
saída, além daquela em que lhe abria o coração.
Esposa e mãe, defenderia a paz de
todos. Não concordava emque se tomasse partido. Cláudio, efetivamente,
contraíra contas com ela, Dona Márcia, nas ingratidões de marido. Isso sim.
Mas, no tocante às filhas, sempre tivera a conduta de pai exemplar. Nada justo
incriminá-lo. Tudo não passava de imaginação enfermiça dela própria, Marita.
Fase de moça namoradeira.
E o martelo verbal tornou aos
estribilhos do passado. As festas de Aracélia, as companhias de Aracélia, as desilusões
de Aracélia...
Verificando no olhar da jovem a
penosa impressão com que era obrigada a recolher tais lembranças, a
interlocutora, sem mais fundo lastro de
amor para comovê-la, modificou a tática
afetiva e alinhou histórias de seu
conhecimento, em que sonâmbulos realizavam proezas
diversas.
Argumentou que ela e Cláudio,
perante a ocorrência, que analisavam com o carinho de pais verdadeiros e não
com qualquer espírito de censura, haviam recordado que ela, em criança,
muitas vezes acordava aos gritos, pela madrugada, fazendo birra e queixando-se de
inexplicáveis terrores.
Levada ao médico, o facultativo
receitara calmantes. Rememorou, bem-humorada, a opinião de velho amigo da
família, que dissera a ela e a Cláudio andar a menina atacada de nictofobia, e
que, somente depois, ambos recorreram ao dicionário, a fim de aprenderem
que a palavra significava «medo da noite».
Dona Márcia riu-se àquelas
chistosas evocações, completamente alheia à importância do assunto. Afagou os
ombros de Marita e aconselhou-lhe juízo.
A jovem, perplexa, tanto quanto
nós mesmos, não teve ânimo para desmentir.
Ignorava como deslindar a meada
que o sedutor entretecera. Preferiu acriançar-se, aparentando aprovação com o
silêncio.
No íntimo, contudo, revoltava-se.
Cláudio trapaceara e a mãe
adotiva caíra no logro.
Não possuía recursos para
demonstrar a verdade. Tocava-lhe tão-somente suportar e esperar.
Dona Márcia, no claro propósito
de evitar o problema e, aliás, denotando naquela hora elogiável
sinceridade na compaixão pela moça que supunha doente, convidou-a a examinarem, juntas,
o primoroso estoque de «boutique» vizinha.
Marita aquiesceu, conformada, e o
entendimento malogrado passou, superficialmente, valendo para
nós por aviso grave, a fim de que
reforçássemos todo o sistema de vigilância, no
compromisso assistencial.
Transcorreram cinco dias, sem que
aparecessem acontecimentos dignos de menção. Contava justamente uma
semana de contacto com os novos amigos, quando, ao partilhar as
inquietações de Neves, fui procurado por atencioso companheiro a quem solicitara
cooperação. Avisava-me de que certa senhorademandara o banco, procurando
Cláudio no assunto que nos tomava a atenção.
Ao sol da manhã em giro alto,
dirigi-me para o local, encontrando-a em pequena sala de espera, contígua a
extenso escritório, no qual operosa equipe de funcionários desdobrava operações
de contabilidade interna.
A dama aguardava Nogueira,
ausente em serviço.
A recém-chegada trajava-se com
primor, exibindo, porém, o ar das
mulheres que, depois de perderem as
ilusões, acabam fazendo negócio dos prazeres que já não são mais capazes de usufruir.
Detínhamo-nos no exame
despretensioso da personagem que tangenciava com a nossa história, quando
Cláudio se apresentou, lépido e bem-posto. Junto dele, o acompanhante
desencarnado, qual se lhe fora a sombra, não mais me admirando vê-los visceralmente
associados, pensando e falandoem absoluta simbiose.
Conheciam-se os dois, porqüanto
ele a nomeou, para logo, de madame Crescina, inclinando-se,
familiar, para a conversação cochichada, demonstrando-se ambos naturalmente acostumados
aos segredos que se transmitem, da boca ao ouvido.
Alguma novidade? — indagou ele,
esfregando as mãos uma na outra, com o sorriso brejeiro de quem
prelibava festas.
A visitante, contudo, falou,
encabulada, dos motivos que atraziam.
Recebera-lhe Marita, a filha
adotiva, horas antes, e, sinceramente — informava —, não conseguira subtrair-se ao
obséquio que lhe suplicaracom lágrimas.
Diante do interlocutor, atento,
prosseguiu comunicando que a moça desejava encontrar-se, na noite próxima,
com Gilberto, um rapaz que, vez por
outra, lhe freqüentava o casarão. Escolhera
para isso o compartimento separado, nos
fundos, o número quatro, por mais
reservado e acolhedor. A pobre criança — acentuava, compadecida — formulara-lhe o
apelo, em caráter confidencial. Propusera-lhe a concessão, muito abatida,
nervosa. Não pudera alhear-se ao pedido.
Também tinha duas filhas no
mundo, também era mulher. Acedera.
Mas, não era só isso. Marita
remunerara-a, com bondade, para
encarregar-se de entregar um bilhete ao filho
dos Torres.
E, perante os olhos espantados do
amigo, que acumulava na curiosidade o anseio do vampirizador, a
confidente arrancou da bolsa o documento pequenino, em que a jovem implorava ao namorado
fosse vê-la, às oito danoite, no lugar indicado.
Saberia não incomodá-lo, não
tivesse receio. Rogava-lhe apresença e solicitava resposta.
Cláudio lia, lia, entre ciumento
e indignado. Sim — refletia —, era o cúmulo do sarcasmo. Gilberto a governá-la
daquela maneira! O compartimento dos fundos, o número quatro!...
Conhecia-o. E esquisita
coincidência! Era o recanto que ele também, por vezes, elegia para si próprio, quando
buscava a pensão alegre de Crescina, para entreter-se, descansar... Marita, sem
saber, compartia-lhe as preferências!... O despeito comprimia-lhe o coração, enquanto
o «outro» se demorava a enlaçá-lo, estampando no rosto larga expressão de
astúcia.
A empreiteira de regalias
noturnas cortou a pausa longa, repetindo que não lhe era lícito esquivar-se;
entretanto, acrescentou, ladina, que ele, Cláudio, era cliente de sua casa e, por isso,
colocava-o ao corrente dos fatos, não só por dever de lealdade aos fregueses, como
também para evitar aborrecimentos, suscetíveis de atrair os olhos da polícia que
nunca interferira nas acomodações e negócios que lhe diziam respeito.
Para isso, inteirava-o de tudo e
pedia conselhos. Nogueira reprimiu a cólera e vimo-lo interessado em
concentrar-se mentalmente, esquadrinhando a cabeça, à cata de idéias.
Ignorando embora que se
acostumara a absorver-se nas sugestões de uma inteligência estranha à dele,
buscava-lhe, sequioso, os estímulos, supondo naturalmente que batia às portas
da imaginação para desencravar os pensamentos.
Obsessor e obsidiado passaram a
trocar impressões, de cérebro a cérebro.
Alguns momentos de ajuste
silencioso e mecânico, que um observador terrestre interpretaria como sendo
vertiginosa fabulação, e os dois
entraram em acordo implícito.
Alcançamos semelhante conclusão,
pela rama, ao vê-los repentinamente asserenados, já que não me sentia
capaz de verificar-lhes planos e intentos, forçado que me reconhecia a dividir
atenções, entre eles e a recém-vinda, cujos informes e apontamentos não me cabia perder.
Cláudio esboçou um sorriso
amarelo. Em seguida, agradeceu a gentileza de que se tornava objeto, passando a
extravasar as alegações fantasiosas que começara a elaborar. Disse à
amiga, surpresa, que Marita realmente
assumiria, talvez em dias breves,
compromisso de matrimônio com o rapaz e
que, não
obstante considerasse a
entrevista mencionada pura irreflexão de jovens, concordava em que madame Crescina
levasse o bilhete, alcovitando a conferência afetiva.
Logicamente, acrescentou a
mascarar-se de bom-humor, que os meninos teriam entrado em arrufo e
aspiravam à reconciliação. Sim, não iria pessoalmente criar qualquer obstáculo.
Preferia aconselhar a filha, no dia seguinte.
Entretanto, aduziu após refletir
um minuto em consonância com o amigo invisível, gratificá-la-ia por um
obséquio, de vez que tendo paternal interesse em que se efetuasse o encontro dos
jovens, aos quais se permitia chamar “quase noivos”, solicitava-lhe fosse o
bilhete entregue somente às duas da
tarde, horárioem que Gilberto estaria no
escritório com toda a certeza.
Dona Crescina prometeu
satisfazê-lo, recolhendo a gorjeta e anunciando que telefonaria para a moça, depois do
ajuste, a sorrirem-se ambos no aperto de mãos.
Restituído a si próprio,
Nogueira, sempre enlaçado pelo obsessor, não se deu tempo a maiores reflexões.
Aproximou-se do telefone e
vacilou um instante. Pensou consigo que essa era a primeira vez que se dirigiria ao
rapaz que detestava.
A hesitação, porém, não passou de
segundos. Discou, resoluto, para Gilberto.
Atendido, prontamente, formulou a
consulta, untando avoz de cortesia. Se possível, desejava vê-lo e
ouvi-lo, solicitar-lhe um favor com vantagens mútuas, mas rogava-lhe a gentileza da
discrição. Entendimento pessoal para aquele instante.
O rapaz gaguejou do outro lado,
denotando viva emoção, e aquiesceu sem muitas palavras.
Ambos consultaram o relógio. Onze
em ponto.
Ele, Cláudio, seguiria de táxi
para o almoço, em casa, no Flamengo, e esperá-lo-ia no Lido.
Não se preocupasse o
interlocutor. Conheciam-se bastante, embora sem contactos pessoais.
Além disso, abordá-lo seria fácil
para ele. Conhecia-lheo carro.
Efetivamente, escoados que foram
alguns minutos, achávamo-nos os quatro, Cláudio, Gilberto, o assessor
espiritual de Nogueira e eu, no lugar indicado.
O jovem, muito pálido,
assemelhava-se ao aluno culpado que comparece diante do professor, mas o sorriso largo
e calculado com que era recebido colocou-o à vontade, mais apressadamente que
supunha.
Caminharam, lado a lado,
permutando banalidades sobre o tempo, até que se instalaram num recanto de bar, à
frente de um guaraná que tocaram, de leve.
Cláudio, aparando as cinzas do
cigarro, de momento a momento, esforçava-se, quanto possível, por parecer
natural.
Invariavelmente ligado ao
vampirizador que o não perdia, começou dizendo ao filho de Nemésio que lhe
entendia a situação com clareza; que o sabia, de certo modo, inclinado para Marina, a
filha legítima, e que, na condição de genitor, conquanto se visse na obrigação
de preservar-lhe a felicidade, não devia bisbilhotar,
à margem de assuntos privativos
deles dois; entretanto, acentuava, dramático, criara Marita, igualmente por
filha; amava-a, enternecidamente, e anelava para ela o bem-estar que sonhava para a
outra.
Gilberto, inexperiente, escutava
embasbacado, comovido.
O antigo bancário, aparentando
elevada condescendência, asseverou que, em verdade, somente atribuiria ao
destino a coincidência quevinha de observar, porqüanto se achava convencido de
que ambas as meninas queriam o moço, talvez com análogo afeto.
Verificava, assombrado, a máscara
de paternal ternura com que Nogueira recobrira o semblante.
No íntimo, acalentava a repulsão,
dura, violenta. Dissimulava, habilmente, os ímpetos de amarrotar o filho de
Beatriz que, satisfeito e acalmado, lhe agasalhava as afirmações.
Reprimindo-se, prosseguiu
astucioso.
Salientou que, decerto, a menina
bisonha, ao albergar-lhe os testemunhos de apreço, escorregara na paixão,
que lhe devastava, agora, a juventude em psicose e doença. Preocupava-se,
afligia-se. Encontraria recursos parasanar as dificuldades, mas, para isso, constrangia-se a
solicitar-lhe concurso, a fim de que Marita sofresse menos.
Contaria com ele e, ao
registrar-lhe as primeiras palavras de assentimento, baixou o tom de voz,
anunciando-lhe em caráter confidencial que a filha adotiva lhe escrevera um recado. Sabia disso.
Compondo o quadro estudado de interesse paternal, indagou se ele havia
recebido. Ante a resposta negativa, explicou que a moça lhe endereçara um papelucho,
no qual lhe rogava umencontro para a noite.
Sem que lhe suspeitasse do zelo,
conseguira ler o petitório, tanto assim que poderia repeti-lo. E recitou de cór o
pequeno texto, sílaba a sílaba, dando a
impressão de proceder assim para exteriorizar
com mais segurança o próprio enternecimento.
Depois de caracterizar o papel,
rogava ao rapaz dois favores: responder afirmativamente, por escrito, que
estaria no local indicado, atendendo ao horário certo, e abster-se de comparecer
no momento preciso.
Fantasiou que a menina andava
desorientada, enferma - Temia um choque. Não dispunha de outro remédio senão
pedir-lhe aquele tipo de cooperação. Isso porque, naquele mesmo dia, estava
providenciando a aquisição dos documentos necessários, para que ela fosse à
Argentina, em companhia de Márcia, numa
viagem de refazimento e recreio.
Não seria prudente estragar-lhe o ânimo, naquela hora, com uma negação formal.
Naturalmente que o interlocutor era dono de si.
Agisse como melhor lhe parecesse.
Ele, porém, nos sentimentos de pai que o moviam, receava conseqüências.
Nada custaria satisfazer-se àquela particularidade que considerava providencial. Se
Gilberto aprovasse a idéia, ele próprio, Cláudio, se incumbiria de buscá-la, no
endereço marcado, não só com a noticia
positiva da viagem, no bolso, de modo a
proporcionar-lhe renovadora alegria, ao mesmo tempo
que poderia apresentar a ela as
desculpas dele, quanto à ausência.
Compreensível que, com a
autoridade afetuosa de pai amigo, se responsabilizasse pelas escusas
do moço, de vez que usaria o tato imprescindível.
Por fim, consultava-o como
justificá-lo, no instante oportuno, se devia alegar a razão do bolo como sendo
negócios, serviços, empeços domésticos ou inesperado afastamento do Rio.
O filho dos Torres ouviu tudo,
encantado.
A proposta pareceu-lhe uma peça
vazada em profundo bom-senso. Além disso, respirava feliz. Verificava haver
encontrado alguém que o levaria, passo a
passo, a libertar-se de um compromisso que
lhe pesava demasiado na consciência.
Chegado a esse ponto,
desinibiu-se. Perdera os derradeiros resquícios da desconfiança com que iniciara a
conversação. E, ao desembaraçar-se, afixou a máscara fisionômica que julgou
cabível à defesa das próprias conveniências, asseverando que dedicara a Marita
uma boa amizade, de irmão para irmão, nada mais. Destacou que, efetivamente,
notara nela determinadas alterações que o haviam desgostado, e, já que se
sentia inequivocamente atraído para Marina, afastara-se, cauteloso, na
expectativa de que tempo e distância funcionassem.
Cláudio escutava, boquiaberto,
admirando-lhe a delicada frieza das justificações e indagando a si mesmo qual deles
dois seria maior na arte de fingir.
Francamente encorajado, Gilberto
declarou que lhe compreendia as apreensões, quanto lhe aceitava
conselhos e bons ofícios. Escreveria, obrigando-se a comparecer, mas não arredaria
pé de casa, mesmo porque Marina fora a Teresópolis, pela manhã, a
serviço da companhia, e talvez só regressasse no dia seguinte. O senhor Nogueira, qual
o chamava, em buscando a menina, às
oito, estaria autorizado a
comunicar-lhe, da parte dele, o agravamento da saúde materna.
Não seria falso, ajuntou,
porqüanto a genitora extinguia-se, lentamente.
Cláudio, obtendo o que desejava,
refletia no rosto a satisfação que, somada ao voluptuoso prazer do obsessor que
o assessorava, parecia interesse afetivo, devotamento. Finalizando,
asseverou-se notificado quanto àviagem da filha, e reportou-se, em termos
carinhosos, à situação de Dona Beatriz, que ele e Márcia
visitariam. Destacou as
acerbidades dos impedimentos em família, durante as moléstias longas, apelou
para o otimismo necessário e, ateu
confesso, chegou até mesmo a exalçar a confiança que
se deve ter em Deus, no decorrer de tais circunstâncias.
Montada a obrigação que os
jungia, separaram-se com abraço efusivo, enquanto, de nossa parte, rumamos
do Lido para o Flamengo, penosamente intrigados, conjeturando sobre o
que estaria por suceder.
(4) Cidade consagrada à educação e ao
reajustamento da alma, no PlanoEspiritual. — (Nota do Autor
espiritual)