Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
CAPÍTULO 2
Confrangido, mas sereno, Félix
acercou-se de Nogueira, administrou-lhe energias de refazimento e, após
levantá-lo, despediu-se, asseverando que voltaria.
Que não me inquietasse, falou,
bondoso. Estaríamos juntos, enviaria cooperadores, tomaria
providências.
Respondi, sossegando-o.
Afeiçoara-me àquela menina que, afinal,
era nossa filha em espírito.
Não, não a deixaria na dura fase
da desencarnação.
Entrementes, Cláudio afastou-se,
buscando o especialista.
Moreira, que me observava desde a
chegada, fitava-me agora com simpatia, que me empenhava em conservar.
Em dado momento, interpelou-me.
Amaciou o tom de voz e disse reconhecer-me. Queixou-se.
Vira diversos irmãos
desencarnados, avizinhando-se da porta e acenando com asco.
Apontavam Marita com desprezo,
referiam-se a figurações despudoradas, traçavam gestos no ar, sugerindo
quadros obscenos, e um deles chegara ao desplante de abordá-lo, indagando
quem era aquela mulher que transpirava carniça.
Tratei de consolá-lo. Aquilo
passaria. Esperávamos companheiros, abastecidos com os recursos necessários, a
fim de que isolássemos o recinto.
Satisfazendo-lhe as perguntas,
esclareci que, sem querer, assistira ao desastre e condoera-me daquela moça
sozinha, jogada no asfalto.
Quis saber minudências; contudo,
temendo embaraços, prometi-lhe que, logo aparecesse oportunidade, colheria
informes seguros para nós ambos.
Tentando harmonizá-lo com as
exigências do serviço que nos defrontava, roguei-lhe permissão para
cooperar. Ficaria contente se ele me aceitasse o concurso, ali, ao pé daquela
jovem que a provação humilhava. Colhera alguma experiência em hospitais e
poderia ser útil.
Moreira comoveu-se e aprovou a ideia.
Sim, aclarou, devotava-se a ela, com ardente afeição, e me reconhecia
o desinteresse em servi-la. Contaria comigo, reportou-se a compensações.
Conhecia meios de auxiliar-me,
defender-me-ia, ser-me-ia companheiro fiel.
Em seguida, examinou curiosamente
o processo pelo qual a respiração de Marita era auxiliada e pediu-me
instruções. Queria substituir-me. E com tanta diligência e humildade se colocou
no meu posto que, em minutos breves, atendia à manutenção da jovem, com
segurança superior àquela que me esforçava em cultivar.
Procurei adestrá-lo. Obedeceu
docilmente e guardou nos braços aquele corpo amarrotado, que se transfigurara
num fardo de dor, salpicado de fezes. O perseguidor da véspera, tocado no
âmago, enlaçou-a com a dignidade de um homem piedoso que socorre uma
irmã, empregando-se no trabalho de instilar-lhe energias e reaquecer-lhe os
pulmões com o próprio hálito.
Sensibilizado, ao identificar-lhe
a transformação, concluí que nem sempre é o salva-vidas, tecnicamente
construído, a peça que assegura a sobrevivência do náufrago, e sim o lenho agressivo
que teimamos em desdenhar.
Retirei-me, por instantes, à
busca de Cláudio e encontrei-o em compartimento próximo. Valia-se do intervalo,
em que era constrangido a esperar pelo médico, para telefonar.
A voz inconfundível de Dona
Márcia vinha do outro lado. O esposo falava, sob traumatismo evidente; ela, no
entanto, não respondia fora da destreza mental que lhe conhecíamos. Folgava em
saber que a filha estava ainda viva. Melhor encerrassem o assunto. Se a
Medicina já estava em cena, desistia de aumentar as aflições que lhe inçavam a casa.
Nogueira passou do noticiário às
súplicas. Seria conveniente que ela viesse amenizar a situação.
A senhora, porém, mencionou
compromissos inadiáveis. Estava de saída para a aquisição de linhas, destinadas à
confecção de vários enfeites encomendados por Marina. Compreendia que a moça
talvez não se recuperasse; entretanto, inclinava-se a crer que tudo não passava
de episódio sem importância. Marita sempre fora exagerada em questões de sensibilidade,
gostava da ostentação de ridículo. Além disso, se estivesse tão mal
quanto o marido supunha, ele, na condição de pai, se achava lealmente junto da filha,
eximindo a ela, Dona Márcia, de sacrifícios maiores do que aqueles que já lhe
sobrecarregavam os ombros. Fez chiste, mascarando de sarcasmo o desapontamento com que
recolhia a informação de que a filha adotiva não estava morta, impelindo todos
os constrangimentos da família à estaca zero.
Recordou ao esposo que o Rio não
era interior e que doente algum se podia dar ao luxo de contar com mais de uma
pessoa, acalentando o leito, numa capital que excedia o tamanho de Babilônia.
Declarou-se cansada de bobagens e arrufos entre jovens namorados e afirmou preferir
tricotar a fazer adulação para uma filha que não era dela e que sempre timbrara em
loucura e faniquito. Rematava, aconselhando para que não se complicassem com
despesas. Que ele ouvisse os médicos e removesse a menina, quanto antes, para
casa.
Nogueira, desolado, insistiu,
pintando o quadro em que se contristava; entretanto, a senhora encerrou a
conversação, atirando-lhe uma frase que lhe despedaçou as últimas esperanças:
— Bem, Cláudio, tudo isso é
problema seu.
Nogueira discou para a residência
dos Torres.
Marina ainda não voltara.
Desacoroçoado, chamou para a casa
do chefe. Atendido, prestou sucinto relatório da apertura, indagando
sobre a concessão de férias no banco. O diretor sossegou-o. Compreendia a
emergência, também era pai. Não apenas despacharia favoravelmente a petição, mas se
colocava igualmente ao dispor dele para qualquer eventualidade.
Tornando ao aposento onde Moreira
velava, entrou em conversação com a facultativo de serviço.
O médico registrou-lhe a
inquietude e compadeceu-se. Asseverou que era cedo para um pronunciamento mais
claro. Empreenderia exames, prescrevera transfusões de sangue e
antibióticos, estudaria as reações. Mesmo assim, não dispensaria a consideração de um
neurologista, na hipótese de surgirem complicações, em vista da pancada
forte, havida no crânio.
Nogueira concordou e, humilde,
solicitou permissão para instalar-se junto da filha. Não se queixaria de
preços, advogava para ela o melhor tratamento.
O clínico prometeu cooperar,
favorecer.
Daí a instantes, Marita foi
novamente transferida de quarto, onde Cláudio, Moreira e eu passamos a
intimidade mais ampla. Aqueles dois Espíritos, que se avalentoavam por bagatela,
manifestavam -se agora diferentes, submissos.
O esposo de Dona Márcia trazia os
olhos marejados de pranto. Partira-se-lhe a alma. A convicção de que a filha
tentara o suicídio, por culpa dele,
requeimava-lhe o coração, qual lâmina esfogueada que se lhe enterrasse no
peito. De tantos escândalos escapara, de tantas
proezas se ocultara, impassível; entretanto, aquele corpo abatido que a morte
espreitava parecia encerrar-lhe o destino. Sentia-se arrasado, a ponto de não lhe
importar nem mesmo a confissão de todos os delitos da existência, em praça
pública... Delitos que supunha para sempre esquecidos, nos escaninhos do tempo,
assomavam-lhe agora à lembrança exigindo reparação...
Sobretudo, Aracélia!... A
genitora de Marita que ele próprio aniquilara, a peso de sarcasmo e ingratidão, parecia
alcançá-lo pelo túnel da consciência... A imagem daquela moça inexperiente da roça
crescia-lhe por dentro. Lastimava-se, acusava, perguntava pela filha,
pedindo-lhe contas!...
Conjeturava-se Nogueira às portas
da loucura. Não fosse a resolução de recuperar a filha prostrada, usaria o revólver
contra si mesmo. Afigurava-se-lhe o suicídio como sendo a válvula de livramento.
Adotá-lo-ia, raciocinava, taciturno. Se Marita morresse, não desejava
sobreviver.
Cerrar-lhe-ia os olhos e
destruir-se-ia sem compaixão. Ao passo que as reflexões amargas lhe obscureciam
a mente, colava-se Moreira aos pulmões da triste menina, num espetáculo
comovedor de paciência e dedicação. De minha parte, assinalava-lhe o
devotamento sincero, os propósitos puros. O corpo injuriado
não lhe inspirava repugnância.
Enlaçava Marita com a veneração de quem se consagra a uma filha padecente para
quem todos os cuidados e todos os carinhos são sempre escassos... De quando em
quando, passava uma das mãos no rosto para enxugar as lágrimas...
Aquele Espírito que eu conhecera
áspero e agreste amava profundamente, porque é preciso amar a alguém,
com extremada ternura,para sorver-lhe com alegria o hálito fétido e
acariciar-lhe a pele manchada de excrementos, com o enlevo de quem preserva um tesouro
imensamente querido ao coração...
O silêncio era apenas cortado, de
vez em vez, pelos movimentos da enfermeira que vinha fiscalizar o soro a
descer no braço, gota a gota,ou aplicar injeções, segundo os avisos médicos.
O dia avançava. Três da tarde.
Calor. Para Cláudio, as horas assemelhavam-se a correntes que arrastava no
cárcere do remorso. A noção de isolamento agigantou-se-lhe no espírito. Voltou
ao telefone e procurou por Marina.
A filha atendeu. Palestraram.
Cientificara-se do acidente por
Dona Márcia; no entanto, esperava que a ocorrência desagradável não
passasse de susto. Não, não lhe era possível comparecer no hospital. Dona
Beatriz, que passara a considerar igualmente por mãe, piorara muitíssimo.
Aguardava-se-lhe o fim, a qualquer hora. Que o pai a desculpasse; entretanto, admitia
que a irmã devia estar satisfeita ao saber-se assistida por ele. Impossível
pedir mais.
Nogueira regressou ao quarto,
esmagado pelo desânimo.
Ninguém para migalha de apoio,
ninguém a entender-lhe o suplício moral.
Às cinco, no entanto, alguém
apareceu, um velho que solicitara a recomendação de clínico prestimoso.
A sós com Nogueira,
apresentou-se.
Era Salomão, o farmacêutico.
Declarou-se amigo da moça
acidentada. Estimava-lhe a lhaneza de trato, apreciava-lhe as gentilezas.
Vizinho da loja, partilhava com ela o café, quando obrigado ao lanche fora de casa.
Surpreendera-se com a notícia do
atropelamento e deliberara visitá-la, mesmo porque acreditava tivesse sido um
dos últimos amigos que Marita ouvira na véspera.
E, diante da curiosidade e do
reconhecimento do interlocutor, narrou quanto sabia, pormenor a pormenor.
Evidente, concluiu, que alguma
desilusão recôndita lhe ditara o gesto desesperado. Recordava-se,
perfeitamente, de lhe haver notado o pranto que ela, em vão, buscava disfarçar. Teria
ingerido os soporíficos que lhe dera, e, identificando-lhes o caráter
inofensivo, certamente que se projetara sob um automóvel em disparada...
Cláudio ouviu, chorando...
Intimamente, aceitou a hipótese. Sem dúvida, a filha não pudera sobreviver ao insulto
de que ele próprio se acusava. Aquele desconhecido confirmava-lhe as
impressões. Refletiu no suplício moral da jovem humilhada, antes de se lançar ao
gesto infeliz, sentiu-se o mais abjeto dos homens,
no arrependimento que lhe
azorragava todas as fibras da
consciência, e agradeceu ao interlocutor, sofreando os
soluços. Abraçou Salomão, num impulso de louvável sinceridade, e salientou que ele,
o visitante gentil, era o verdadeiro e talvez o único amigo daquela criança que
procurara a morte e que tudo fariam para reaver.
O farmacêutico apiedado arriscou
um alvitre. Confessou-se espírita e assinalou que os passes, sob a cobertura da
oração, beneficiariam a menina prostrada.
Ignorava quais os princípios
religiosos de sua família; entretanto, possuía um amigo, o senhor Agostinho, a quem
poderiam recorrer. Confiava na prece, no
amparo espiritual. Se Cláudio
permitisse, buscá-lo-ia. Nogueira aceitou com humildade.
Afirmou-se sozinho. Não lhe seria
lícito recusar um auxílio que lhe era oferecido com tanta espontaneidade. Apenas
admitiu que se via na obrigação de rogar o consentimento das autoridades.
O facultativo, que lhes atendeu
ao chamado, ouviu a petição. Homem experimentado em angústias
humanas, fitou Marita, não só com a
inteligência do técnico que observa um aparelho,
a caminho do desmonte para verificações finais, mas também com o sentimento de um
pai afetuoso, e asseverou que Cláudio dispunha do direito de prestar à
filha a assistência religiosa que desejasse, e que, em se abstendo de ferir o
regulamento da instituição, fora do quarto, ali estava como em sua própria casa.
Compadecido, ele mesmo
favoreceria a vinda de Salomão como espírita que indicasse. E, às oito da noite, o
boticário de Copacabana entrou com o amigo que carregava pequeno pacote, em que
se encontrava um livro.
Nogueira espantou-se. Aquele
homem, que o saudava fraternalmente, e que lhe era apresentado por senhor
Agostinho, frequentava o banco, onde se alinhava entre os clientes mais respeitados.
Conhecia-lhe a posição de comerciante distinto, conquanto não lhe desfrutasse a
intimidade. Entretanto, se o recém-chegado o reconhecia, não dava qualquer
mostra.
Interessou-se delicadamente pela
moça e inteirou-se de todas as minudências do desastre, com as atenções de
quem escuta a própria família.
Logo após, entre Cláudio e
Salomão, orou, emocionado. Suplicou a bênção do Cristo para a menina atropelada,
qual se expusesse, diante de Jesus invisível, uma filha profundamente cara, e, em
seguida, ministrou-lhe passes de longo curso com o devotamento de quem lhe
transferia as próprias forças.
Cooperamos com ele, sob o olhar
penetrante de Moreira,que tudo anotava como que sequioso de aprender.
A operação, saturada de agentes
reconstituintes do plano físico,
infundiu grande bem à moça, melhorando-lhe
a condição geral. Relaxou-se-lhe mais intensamente o esfíncter da
micção, a respiração desoprimiu-se e conseguiu entrar em sono calmo.
Cláudio solicitou a presença da
enfermeira e, enquanto a serviçal
modificava a rouparia, os três conversaram em
saleta próxima. Informado, então, de que Nogueira jamais tivera contacto
com princípios religiosos, Agostinho ofereceu-lhe o livro que trazia, um exemplar de
«O Evangelho segundo o Espiritismo», e prometeu voltar na manhã seguinte.