sexta-feira, 2 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 14
Adiantamo-nos, Félix e eu, ao encontro da jovem.
Marita estugava o passo, amarfanhada, aturdida.
Da Lapa, onde se localizava a habitação coletiva que
vínhamos de deixar, até à Cinelândia, correra quase.
Sentia-se tangida por todos os ventos da adversidade,
expulsa da Terra. Traída nos mais íntimos sentimentos de mulher, a injúria
experimentada transcendia para ela toda a noção de sofrimento. Teria agradecido ao homem
que conhecera por pai o punhal ou o veneno, mas não dispunha de forças para
perdoar-lhe aquela afronta. A revolta sacudia-lhe os membros. Tremia, desesperada. Na
cabeça, uma ideia só, ganhando extensão: o suicídio. Ansiava atirar-se sob os
carros que deslizavam à frente. Morrer... desaparecer... meditava, chorando.
Entretanto, era preciso viver um tanto mais. Restava um enigma: Gilberto. Por que se
esquivara, a substituir-se, cruel? Que trama teria havido entre eles? Lera-lhe a
missiva, conhecera-lhe a letra.
Escrevera, afirmando vir... Por que desistira? Como soubera
Cláudio do encontro? Através de Crescina?
As interrogações sem resposta convulsionavam-na toda.
Desvairava. Rangia os dentes, querendo gemer.
A morte, a morte!... — pedia, mentalmente, tentando apertar os lábios que se abriam sem voz.
Ainda assim iria consultar Gilberto, sugeriam as últimas
réstias do sonho desmantelado. Sim,
aprovava no turbilhão dos
pensamentos em descontrole, era necessário ouvir Gilberto... Uma vez só que fosse.
Imperioso conhecer a verdade, morrer com a verdade...
Quem saberia? Talvez que o rapaz lhe estendesse um fio
de luz, por onde se desvencilhasse da sombra... Se ele dissesse: «vive, vive
para mim», conseguiria esquecer o insulto daquela noite, continuando a viver... Ao
contrário, tudo extinto...
Caminhando apressada e indiferente à aragem que lhe
acarinhava os cabelos, repelia-nos, em espírito, as maiores demonstrações de
ternura e consolo.
Nenhuma ideia que se lhe não afinasse com a repulsão.
Decididamente, se Gilberto participara da armadilha a que se
arrojara, inocente, estava tudo acabado. Tão-somente lhe restaria o desprezo
final.
Alcançou o Largo do Passeio e parou um momento... Fitou,
angustiada, aquelas árvores frondejantes que tanto amava... Galharias balouçadas
ao vento pareciam chamá-la para abraços de adeus... Marita soluçou, teve medo,
mas seguiu adiante...
Varou a massa risonha que deixava os cinemas, recordou
Gilberto e a menina feliz que ela fora, vendo namorados saboreando pipocas; contudo,
seguiu, seguiu sempre, vencendo encontrões. Atingindo a Praça Marechal
Floriano, abancou-se, vasculhando o cérebro atormentado...
Sentia-se, enfim, absolutamente sozinha, completamente
desamparada.
Comprimindo a cabeça entre as mãos, queria idéias, alguma
ideia que lhe ofertasse saída do antro pungente da angústia.
Debalde, irmão Félix, ao enlaçá-la, lhe assoprava conceitos
de paciência e cordura, inutilmente se referia à bondade e ao perdão.
Aquele coração juvenil, conquanto bondoso, figurava-se, agora, um lago límpido que vulcão oculto, de inesperado, fazia referver. Todas as orlas abertas, em bocas
de incêndio, pelas quais as ondas do pensamento fugiam, precipitadas.
Nenhum lugar exposto à receptividade, nenhum ponto marcado ao equilíbrio e
ao silêncio.
No crânio tumultuado, uma ideia surdiu, ensejando-lhe tênue fio de esperança. Telefonar!...
Poderia telefonar para a residência dos Torres. Gilberto,
indubitavelmente, estaria ao pé da genitora enferma. Além disso, Marina viajara pela manhã. Uma razão a mais para que se não retirasse do carinho
necessário à doente. Ainda assim — refletiu —, seria muito provável que ele, a distância, lhe
embaísse a boa-fé.
Insopitável desconfiança amargava-lhe o coração qual raiz
espinhosa. Não descortinava, contudo, saída melhor. Conversar! Ouvi-lo!
Tinha sede da verdade, ansiava saber, saber!.
Raciocínios contundentes entrechocavam-se-lhe na cabeça
atribulada... Não, não retornaria ao lar do Flamengo... Entre voltar à casa dos Nogueiras e morrer, preferia morrer...
Perscrutou circunstâncias, analisou-se, meditou, meditou...
Pensamento estranho assomou-lhe, de súbito. Disfarçar-se,
fingir. Para alcançar a verdade, mentiria.
Entraria, sim, no jogo com aquilo que se lhe apresentou à
imaginação, como sendo a cartada final.
Marita concluía que ela e a irmã, pela intimidade e pela
convivência, tinham vozes semelhantes, maneiras afins. Chamaria o rapaz como
sendo Marina, imitar-lhe-ia, quanto possível, o tom de palestra, repetir-lhe-ia
as palavras de uso mais freqüente no trato doméstico. Simularia estar
voltando, inopinadamente, de Teresópolis. O moço, assim abordado, confessaria, de modo
inequívoco, tudo o que sentisse, com respeito a ela própria.
A sofredora criança consultou o relógio-pulseira. Dez
minutos para as nove.
Desejava ambiente familiar para a ligação. Lembrou-se de
Dona Cora, cliente da loja em Copacabana, que se lhe fizera amiga íntima e em cujo apartamento costumava telefonar, quando inevitável. Levantou-se, algo
reanimada, para a busca de condução; entretanto, somente aí deu pela falta da bolsa
que largara na fuga.
Faltava o dinheiro, mas não desistiu. Acenou da calçada
ao primeiro táxi disponível.
Consultou o motorista se lhe podia fazer o favor de atender,
com pagamento à porta de casa. Estava sozinha e esquecera-se do horário, O
profissional correto notou-lhe a tristeza e o acanhamento. Compadeceu-se. Alegou que
recusava, sistematicamente, conduzir pessoas que encomendavam serviço,
criando problemas; entretanto, no caso, faria exceção e aquiesceu.
A breve trecho, seguíamos, junto dela, para Copacabana.
No endereço indicado, saltou, fez-se acompanhar pelo
condutor ao apartamento da amiga, sendo recebida com a lhaneza que esperava.
Segredou, envergonhada, para Dona Cora que se achava em apuros, se ela não dispunha,
naquela hora, de algum dinheiro para emprestar. Pagaria no dia seguinte. A
dona da casa, espontânea e bondosa, não titubeou.. Abriu pequena gaveta e
falou sorrindo: «só quatrocentos cruzeiros», O marido não estava. Marita,
reconhecida, explicou que a importância bastava. Depois da corrida paga, disse para
a senhora que andara em serviço extra, fora em seguida ao Leblon visitar um doente,
afetando que somente naquele instante conseguiria tomar o ônibus para casa. Antes
disso, porém, tinha necessidade de um telefonema.
Conversação com pessoa muito íntima. Dona Cora cedeu-lhe
a peça inteira e acrescentou, gentil, que ia arranjar um cafezinho. Falasse à
vontade, ninguém a interromperia. As duas filhinhas dormiam, há muito, e o esposo que substituía um colega, no trabalho, não regressaria tão cedo. A dona da
casa afastou-se para a cozinha, isolando a sala.
E, ali, diante de nós, sem que nos percebesse, de leve, os
corações solidários, Marita discou, sofreando a emoção de modo a fantasiar a
alegria da outra.
Escutamos, transidos, o diálogo juvenil que nos ficaria,
então, na memória, gravado frase a frase:
— Da residência dos Torres?
— Sim.
— Quem no aparelho? Gilberto?
— Sim, sim.
— Oh! meu bem, pois você não está conhecendo?
— Conhecendo quem?
— Eu, eu... Marina. Acabo de chegar...
— Ah! ah! Marina!... que surpresa boa!... por que essa
demora? ....... Estamos
todos em casa, esperando... Telefonar por quê?
— Quis saber, meu amor, se você está bem, se passou bem o
dia...
— Saudades!
— Eu também... Muita saudade...
— Venha.
— E a mamãe? Melhor?
— Pouquinho.
— Escute...
— Para que conversar? Corra para cá, venha logo...
— Um momentinho só... Escute. Passei rapidamente em casa, no
Flamengo, para conversar com mãezinha certas coisas... Estive com duas
amigas em Teresópolis que me encheram a cabeça..
Estou perturbada, ciumenta...
— Que é que há?
— Marita...
— Ora... Marita! Tenho nada com ela.
— Mas eu soube...
— Soube o quê?
— Que vocês dois estão em compromisso. Sei que vocês andavam
juntos, mas tanto assim não sabia...
— Bobagem!
— É muita conversa que não pude desmentir...
— Perda de tempo. É muita gente biruta... Morou? (7)
— Estive com papai ainda agora...
Nesse ponto da conversação singular, a voz dela titubeou.
Ouvira o bastante para reconhecer-se desdenhada, batida. Entretanto, aspirava
à lia do cálice.
Necessário inteirar-se acerca de quanto Gilberto havia
descido. Receava descobrir-se. Indispensável toda precaução, a fim de
escalpelar o insulto de que fora vítima. A pausa, no entanto, foi curta. Gilberto, no outro lado,
pronunciou a deixa oportuna:
— Então...
— Explique-se.
— Bem, você naturalmente deve saber agora o que aconteceu.O
velho me procurou... Ele mesmo telefonou, sabe? Conversamos
pessoalmente, acertamos tudo.
— Quer dizer que Marita...
— Imagine! escreveu-me pedindo encontro. O velho soube de
tudo antes e me pediu dizer que iria, mas que eu não fosse. Entende?
— No fim de contas, como é que você se arranjou?
— Escrevi um bilhete, prometendo vê-la, mas combinei com
o velho para que ele mesmo fosse buscá-la. Ele mesmo é quem propôs a
solução.Você sabe, não podia deixar de atendê-lo... Primeira vez.
— Estou perplexa, nervosa... Não compreendo...
(7) Expressão de
gíria. “Morar” significando compreender.—
(Nota do Autor
espiritual.)
— Ele me pediu escrever aceitando, para que Marita não
ficasse chocada. Disse que ela tem estado borocoxo e prometeu que ele iria
procurá-la, de modo a dar conselhos e a reanimá-la com uma boa notícia, uma excursão à
Argentina...
— Como?
— Olhe lá, Argentina... Uma viagem para a Argentina...
Uma risada seguiu-se e, depois dela, a consideração
sarcástica:
— Sanatório, meu bem. Sanatório ou hospício. Para Marita, só
sanatório e, quanto mais longe, melhor!... Argentina para uma e
Petrópolis para dois...
Nesse ponto da entrevista, a jovem baqueou. Debruçou-se
na cantoneira, inabilitada a retomar o fone, à vista dos soluços que
lhe rebentavam do peito.
Escutávamos, nitidamente, a voz do rapaz, a distância,
gritando:
— Marina! Marina! diga o que há, diga, diga!...
A pequenina mão encharcada de lágrimas, no entanto, repôs o
fone no gancho, com a tristeza de quem cerrava, em definitivo, as portas
do coração.
A moça dedicou alguns minutos ao refazimento, reconstituiu,
quanto possível, a tranqüilidade fisionômica e tornou à sala.
Embaraçada, referiu-se ao dinheiro emprestado. Que Dona Cora
lhe perdoasse o incômodo.
Se não pudesse voltar em pessoa, no dia seguinte, a
companheira de seção na loja, Néli, que lhes era também íntima, faria o pagamento,
considerando-se a hipótese de ela, Marita, não se achar em serviço.
Bastaria procurar.
Dona Cora riu-se, cordial. Não pensasse naquilo.
Prestimosa, estendeu-lhe o café que ela aceitou,
constrangida. Conversa vai, conversa vem, a amiga estranhou-lhe o abatimento, a palidez,
os olhos que não cessavam de chorar. Marita explicou-se, ensaiando um
sorriso que não chegou a debuxar-se. Alegou-se gripada. Tinha coriza renitente, coriza brava. E, a propósito, indagou se ela julgava possível encontrar ainda o senhor
Salomão, naquele instante, depois das dez, na farmácia vizinha. Gostaria
de se aconselhar com ele sobre um antigripal. Trazia a cabeça pesada, os pulmões
doloridos.
A delicada anfitriã pediu um momento e correu ao telefone
para voltar, quase de imediato, dizendo que o farmacêutico a esperaria.
Estava a sair do plantão, que ela não se delongasse.
Marita agradeceu, despediu-se e seguímo-la, passo a passo.
O senhor Salomão, velhinho calmo e complacente, em cujo
olhar se adivinhava a brandura dos que se fazem servidores espontâneos da
Humanidade nos encargos que exercem, acolheu-a, solícito.
Ocultando os intentos recônditos, a recém-chegada falou-lhe
do resfriado.
Afirmou sentir dores, vertigens. O boticário, de modos
antigos, habituado ao ofício a representar-se de médico para os amigos, nos casos sem maior
importância, pediu-lhe mostrasse a língua. Examinou-a com a prática de muitos
anos, ao pé de enfermos, sem achar motivo de preocupação. Aplicou o
termômetro. Nenhuma febre.
Sorriu, paternal, e aconselhou-a a ir para a casa,
descansar. Não deveria aceitar serviço extra, até aquela hora da noite, comentou bonachão,
e acrescentou que ela facilmente encontraria remédios para comprar, mas não a saúde. Indicou-lhe aspirina para a nevralgia, que supunha em ação, e...
repouso.
A jovem recolheu os medicamentos, fez o gesto de quem se
inclinava a retirar-se, satisfeita, e voltou à carga, aparentando recordar uma
providência esquecida.
— Salomão — disse com decidida curiosidade a
transparecer-lhe da voz -, não sei se você está lembrado de “Jóia,” a minha velha
cadelinha, que os meninos algumas vezes abraçaram na praia...
— Como não? Aquela inteligência de animal, brincando de
esconder!... Até hoje, os netos imitam o andar de gatinhas que ela
inventou...
— Pois é — prosseguiu Marita, afetando pena -, nossa pequena
« Jóia » está no fim...
— Que foi?
— O veterinário explicou, mas não guardei o nome da
moléstia, doença incurável. Grita sem pausa, um martírio.
Continuando, falou para Salomão que o bichinho se tornara
problema no apartamento. O síndico reclamara várias vezes. Vizinhos
andavam contrafeitos. Os pais aguardavam que o veterinário amigo voltasse de São
Paulo, a fim de que se aplicasse a eutanásia; entretanto, haviam autorizado tanto a
ela, quanto à irmã, o
emprego de algum remédio que pudesse trazer o descanso
final. “Jóia” estava abatida, gasta. Lamentava perdê-la, fora-lhe companheira, no
Flamengo, desde quando se ausentara da escola, simples menina. Ainda
assim,aditava, era preciso enfrentar os fatos e poupar ao animalzinho maiores
sofrimentos. Não teria o amigo algumas pílulas adequadas?
Ouvira referências a comprimidos que, administrados em
dose alta, propiciavam a morte, absolutamente sem dor; no entanto, não lhes
conhecia o nome.
O farmacêutico, sem qualquer prevenção, confirmou. Sim,
talvez tivesse no estoque alguns desses anestésicos de elevada potência e
salientou que se a cadelinha fora condenada pelo veterinário não deveria ser
conservada.
Convencido pelas informações reiteradas da moça, dirigiu-se a
pequeno depósito, procurando, procurando...
Nisso, Félix e eu abordamo-lo, mentalmente.
O paternal benfeitor rogou-lhe examinasse a situação.
Fitasse aquela menina, assim fatigada e só, além das dez horas da noite, longe de
casa. Despenteada, olheiras fundas, sem bolsa, sem agasalho. Ele também,
Salomão, era pai e avô sensível. Não desse orientação em torno de venenos. Tivesse
cuidado. Sossegasse
aquela criança abatida com algum soporífero, fazendo-a
admitir que levava o agente letal. Mentisse por piedade, mostrasse compaixão,
adiando entendimento mais claro para depois.
Aquele homem, com toda a certeza, se agrisalhara em rudes
experiências para adquirir a sensibilidade aguçada com que nos assimilou os
apelos, porque, de imediato, se enterneceu. Voltou-se, discretamente, para o balcão e mirou a freguesa, pela porta semicerrada, espantando-se ao vê-la, num
instante como aquele em que não se supunha observada.
Marita afigurou-se-lhe uma peça do museu de cera,
amarrotada, inerte.
Somente os olhos, embora parados, se evidenciavam ativos,
em razão das lágrimas copiosas.
«Oh! meu Deus — refletiu ele, desconsolado —, isso não é coriza, isso é dor moral, dor terrível!...)
Salomão renunciou à pesquisa iniciada e sacou de largo
recipiente de vidro alguns sedativos comuns e tornou-lhe à presença. Fingiu
despreocupação e apresentou-lhe os comprimidos, asseverando:
— São estes. Para a cachorrinha, no estado de que você fala,
basta um.
— Tão violento assim? — perguntou a jovem, diligenciando
reanimar-se.
— Isso é uma bomba de aplicação muito rara.
Aparentando-se embaído, para angariar-lhe a confiança,o
boticário paternal alegou, porém, que só forneceria ante a receita médica.A
responsabilidade pesava-lhe, muito grande.
Ela, contudo, insistiu. Que o farmacêutico não duvidasse.
O veterinário assinaria o papel.
Consultou se poderia adquirir dez unidades. Melhor agir na
certa. Não aguentava mais os gemidos ao pé do leito.
Salomão refletiu, refletiu... Voltou ao depósito e escolheu
dez comprimidos calmantes, de potencialidade suave. Se ingeridos por
ela, funcionariam beneficamente, prodigalizando-lhe sono reparador.
Marita agradeceu e despediu-se.
Salomão recomendou-lhe repouso, juízo.
Seguímo-la, de perto.
Vagarosa, atravessou dois quarteirões pela frente, ganhou a
Avenida Atlântica e acolheu-se num bar.
Solicitou um copo de água simples, sem gás, em
recipiente de plástico.
Delicadamente atendida, transpôs o asfalto, pulou do
calçamento de pedra no lençol argenteado de areia e acomodou-se no lugar que lhe pareceu
mais escuro...
Aspirava a morrer, ao pé do mar, daquele mar sereno e bom que nunca a enjeitara, refletia com lágrimas... Queria partir,
contemplando aquele mar que a beijava sem malícia...
Antes do gesto que considerava supremo, recordou a
mãezinha que não conhecera e supôs-se mais infeliz. A genitora, não
obstante desprezada pelo homem a quem se entregara, conseguira um teto para o momento
do grande adeus.
Ela não. Fora maltratada, espezinhada, escorraçada.
Devia partir do mundo com um nome emprestado que detestava, agora... Classificava-se
por lixo da terra, supunha desafogar a todos, renunciando à existência. Rememorou as
manhãs felizes em que desfrutara, ali mesmo, tantas vezes, o ar puro que vinha das
águas e o agasalho do Sol. Parecia rever a massa domingueira, fraternalmente confundida na carícia da espuma. Atenta, imaginava-se ouvindo, de novo, a algazarra
das crianças, lançando a bola ou manejando a peteca... Sim, não possuía um lar para
morrer, mas dispunha da praia, hospitaleira e amiga, que reunia desconhecidos, aos milhares, sem nunca fazer-lhes perguntas indiscretas, a todos abraçando por verdadeiros irmãos...
Lamentou-se e chorou, longo tempo, enquanto Félix e eu
esperávamos que dormisse para enfrentarmos os problemas eventuais.
Marita despejou os dez comprimidos na boca e engoliu-os de um
sorvo com água pura. Em seguida, arrimou-se no encosto do passeio de
pedra, qual se se dispusesse a meditar... Dos olhos, penderam as lágrimas
que ela acreditou fossem as últimas e deixou que a brisa lhe afagasse os cabelos.
Brando torpor anestesiou-a.
Consultamos o horário. Cinqüenta e cinco minutos depois da
meia-noite.
Félix orou por instantes.
Não pude compreender, de imediato, se por obrigações
de vigilância ou se correspondendo aos apelos do instrutor, dois rondantes
desencarnados apareceram, ofertando serviço. Félix aceitou, reconhecido,e,
enquanto os recém-chegados passaram a velar, ele e eu empreendemos a
tarefa restaurativa.
Providências para que a jovem não se afastasse, em
espírito,do corpo desgovernado, passes reconfortantes nos centros de força,
estímulos variados em diversas seções do campo cerebral, insuflações nos vasos
sanguíneos. Operações minuciosas e demoradas.
Acupuntura magnética do plano espiritual, em que o
orientador patenteava notável mestria.
Quase quatro horas foram despendidas, ao fim das quais,
Marita repousava tranquilamente.
Reconfortado, via nos olhos do benfeitor a esperança
luzindo... Nisso, porém, um “gari” asselvajado largou a rua e caminhou em nossa
direção, regando a areia...
Dando com os olhos na menina adormecida, sentiu-se
mordiscado de curiosidade.
Não valeram recursos manobrados pelos vigias. O
fanfarrão, relativamente moço, avançou para ela e sacudiu-a, rouquejando: «acorda,
vagabunda», «acorda, vagabunda».
Feriram-se-me as fibras do sentimento, não só pela
criança injustamente maltratada, mas também pela imensa dor que se estampou no semblante de Félix que, pela expressão agoniada, tudo daria para materializar
as mãos e impedir aquele assalto.
«Acorda, vagabunda», «acorda, vagabunda»... As palmadas
estalavam no rosto, cujas lágrimas o vento enxugara, piedosamente.
Frustrados, vimo-la abrir os olhos, estarrecida. Que
homenzarrão aquele que, ao vê-la estremecer, não se pejava de comprimir-lhe o busto
com as mãos libidinosas?
Não obstante atordoada, perguntava a si mesma se teria
morrido, se estaria no inferno renteando com um demônio...
Intentou gritar, mas a garganta esmorecera. Mesmo
assim, ergueu-se, aterrada, e aligeirou o passo, cambaleante. Superando embaraços, ganhou a calçada
em que um banco orvalhado convidava ao repouso, porém, não dispunha de
serenidade para assimilar-nos as sugestões. Pisou, atarantada, no asfalto,
indiferente aos princípios do trânsito... Oscilou, aqui e ali, estremunhada...
Automóveis deslizavam velozes, lambretas estrondeavam em
correria.
Pedestres iam e vinham, diligenciando alcançar o trabalho a
distância ou regressando ao aconchego doméstico, depois das atividades
noturnas. Agitavam-se funcionários da limpeza e veículos ocupados em serviços da
madrugada.
Preparava a cidade o dia novo.
Seguíamos a pobre menina, espíritos contundidos por amargos
presságios.
Parecia-me Félix um educador venerando,
repentinamente descido a saracoteios na via pública, no propósito de salvar uma
criança querida. Entre simpatia e respeito, eu acompanhava, penalizado, o grande
instrutor que se apequenava e se afligia por ajudar...
Rapazes semi-embriagados na esquina próxima, ao fitarem
Marita, vacilante, gargalharam, invectivando: «tipa de pileque! tipa de
pileque! Motoristas de passagem gritavam-lhe injúrias, e, sem que aparecesse
algum braço humano que a sustentasse no atordoamento que lhe impunha reiterados tropeções, foi colhida e projetada a pequena distância, por automóvel em velocidade
excessiva, qual trapo de carne que se arremessasse, violentamente, no chão.
O carro chispou, transeuntes acorreram.
Moças que regressavam de excursões alegres gritaram,
alarmadas. Uma delas prorrompeu em choro histérico, sendo contida à força.
No trânsito interrompido, em que debalde se buscava positivar responsabilidades, todos os
veículos despejavam curiosos que se reuniam em torno da jovem, inerme.
O corpo planara, a cabeça batera contra a pedra e, em
seguida a curta reviravolta, caíra de bruços.
Pessoalmente, achavámo-nos atônitos. Não contávamos com
experiência bastante para ocasiões qual aquela em que o desastre
consumado exigia improvisações. Todavia, entre os clamores de quantos
apelavam para o socorro policial, irmão Félix sentara-se no asfalto. Aplicando
vigorosos estímulos magnéticos sobre a cabeça da menina acidentada, fê-la cobrar energias
para ganhar, mecanicamente, o decúbito dorsal, a fim de que respirasse indene
de maiores dificuldades, através de movimentos que, para muitos dos
circunstantes, significavam esgares da morte.
Marita aquietara-se de todo.
Tive a nítida impressão de que a base do crânio se
fraturara, mas não me era lícita qualquer inquirição. A carga emocional pesava em
demasia, para que me fossem possíveis quaisquer considerações de ordem técnica.
O irmão Félix, na atitude dos pais, profundamente humanos e
sofredores, acomodava-se de tal modo que a cabeça da jovem se lhe
estendia no regaço.
Erguendo as mãos sobre as narinas em sangue, levantou os
olhos e orou em voz alta, que eu destacava da multidão em crescente vozerio:
— Deus de Infinito Amor, não permitas que tua filha seja
expulsa da casa dos homens, assim, sem nenhuma preparação!... Dá-nos, Pai, o
benefício do sofrimento que nos consinta meditar! O’ Deus de amor, mais uns dias
para ela, no corpo dolorido, algumas horas só que sejam!...
Calou-se o instrutor, como qualquer criatura terrestre,
machucada de angústia...
Logo após, acenou para mim e recomendou-me demandar o apartamento do Flamengo, para observar o que seria razoável obter, no
tocante a medidas de auxílio. Que eu procurasse Cláudio ou Márcia, que lhes
suplicasse apoio, compaixão. Ele, Félix, inspiraria alguém a telefonar. Os
Nogueiras estariam entre ele e mim, a fim de que se inteirassem do acidente e fossem
mentalmente movidos à piedade... Permaneceria ali, velando, fazendo
quanto pudesse para que a desencarnação imediata não se verificasse... Quando eu
voltasse do Flamengo, reunir-nos-íamos de novo...
Ao vê-lo assim humilhado na abnegação de que dava
testemunho, arranquei-me à pressa, não só para atender à incumbência, mas também para
desabafar-me. Às vezes, é preciso que as lágrimas nos sirvam de confidentes,
quando não haja alguém que nos ouça... Tanto trabalho daquele benfeitor
sublime para salvar uma criança gravada de duras provas!... Tanto sacrifício de um
orientador, cuja grandeza se quintessenciara nas Esferas Superiores, para
ofertar-lhe os braços; entretanto, o malogro de tudo se me afigurava inevitável...
Antes que me arremessasse, da Avenida Atlântica para o Túnel
Novo, ouvi muitas vozes que se elevavam, exclamando: «morta!... morta!...»
Incapaz de sopitar as lágrimas, voltei-me para contemplar no rosto do irmão Félix
o efeito de semelhante notícia, concluindo comigo mesmo: «tudo inútil,tudo
inútil!...». Mas, vigoroso impacto de esperança me banhou o coração!. .. Tive a
ideia de que fontes imponderáveis de energia jorravam do firmamento claro e estrelado
sobre aquele recanto de Copacabana, que o mar acariciava de perto, como a rogar-nos confiança em Deus, na linguagem ciciante das ondas!...
Não!... A batalha não arrefecera!...
Tínhamos conosco o suprimento do amor e a luz da oração!...
Nem tudo estava perdido...
O benfeitor, guardando paternalmente nos braços
aquela criança desfalecida, fixava os olhos nas alturas e, recolhido a profundo
silêncio, parecia agora falar com o Infinito.
FIM DA PRIMEIRA PARTE