domingo, 24 de fevereiro de 2013
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
A PAIXÃO DE JESUS
Cap. XIX – Item 7
O Espiritismo não nos abre o caminho da deserção do mundo.
Se é justo evitar os abusos do século, não podemos chegar ao exagero de querer viver fora dele. Usufruamos a vida que Deus nos dá, respirando o ar das demais criaturas, nossas irmãs.
Para seguir a própria consciência, podemos dispensar a virtude intocável que forja a santidade ilusória.
Não sejamos sombras vivas, nem transformemos nossos lares em túmulos enfeitados por filigranas de adoração.
Nossa fé não é campo fechado à espontaneidade.
Encarnados e desencarnados precisamos ser prudentes, mas isso não significa devamos reprimir expansões sadias e não nos abracemos uns aos outros. A abstinência do mal não impõe restrições ao bem.
Assim como a virtude jactanciosa é defeito quanto qualquer outro, a austeridade afetada é ilusão semelhante às demais.
Não façamos da vida particular uma torre de marfim para encastelar os princípios superiores, ou estrado de exibição para entronizar o ponto de vista.
A convicção espírita não é insensível ou impertinente.
A inflexibilidade, no dever, não exige frieza de coração. Fujamos ao proselitismo fanatizante, mas nem por isso cultivemos nos outros a aversão por nossa fé.
Se o papel de vítima é sempre o melhor e o mais confortável, nem por isso, a título de representá-lo, podemos forçar a nossa existência, transformando em verdugos, à força, as criaturas que nos rodeiam.
Não sejamos policiais do Evangelho, mas candidatemo-nos a servidores cristãos.
Nem caridade vaidosa que agrave a aspereza do próximo, nem secura de coração que estiole a alegria de viver.
Quem transpira gelo, dentro em breve caminhará em atmosfera glacial.
A crença aferrolhada no orgulho desencadeia desastres tão grandes quanto aqueles criados pelo materialismo.
Não sejamos companhias entediantes.
Um sorriso de bondade não compromete a ninguém.
A fé espírita reside no justo meio-termo do bem e da virtude.
Nem o silêncio perpétuo da meia-morte, que destrói a naturalidade, nem a fala medrosa da inibição a beirar o ridículo.
Nem olhos baixos de santidade artificiosa, nem anseio inexperiente de se impor a todo preço.
Nem cumplicidade no erro, na forma de vício, nem conivência com o mal, na forma de aparente elevação.
Fé espírita é libertação espiritual. Não ensina a reserva calculada que anula a comunicabilidade, constrangendo os outros, nem recomenda a rigidez de hábitos que esteriliza a vida simples. Nem tristeza sistemática, nem entusiasmo pueril.
Abstenhamo-nos da falsa ideia religiosa, suscetível de repetir os desvios de existências anteriores, nas quais vivemos em misticismo acabrunhante.
Desfaçamos os tabus da superioridade mentirosa, na certeza de que existe igualmente o orgulho de parecer humilde.
O Espiritismo nos oferece a verdadeira confiança, raciocinada e renovadora; eis por que o espírita não está condenado a atividade inexpressiva ou vegetante.Caridade é dinamismo do amor. Evangelho é alegria. Não é sistema de restringir as ideias ou tolher as manifestações, é vacinação contra o convencionalismo absorvente.
Busquemos o povo – a verdadeira paixão de Jesus –, convivendo com ele, sentindo-lhe as dores, e servindo-o sem intenções secundárias, conforme o “amai-vos uns aos outros” – a senda maior de nossa emancipação.
Ewerton Quadros
domingo, 17 de fevereiro de 2013
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
TRANQUILIDADE
Cap. XXV – Item 9
1 – Comece o dia na luz da oração.
O amor de Deus nunca falha.
2 – Aceite qualquer dificuldade sem discutir.
Hoje é o tempo de fazer o melhor.
3 – Trabalhe com alegria.
O preguiçoso, ainda mesmo quando se mostre num pedestal de ouro maciço, é um cadáver que pensa.
4 – Faça o bem o quanto possa.
Cada criatura transita entre as próprias criações.
5 – Valorize os minutos.
Tudo volta, com exceção da hora perdida.
6 – Aprenda a obedecer no culto das próprias obrigações.
Se você não acredita na disciplina, observe um carro sem freio.
7 – Estime a simplicidade.
O luxo é o mausoléu dos que se avizinham da morte.
8 – Perdoe sem condições.
Irritar-se é o melhor processo de perder.
9 – Use a gentileza, mas de modo especial dentro da própria casa.
Experimente atender os familiares como você trata as visitas.
10 – Em favor de sua paz conserve fidelidade a si mesmo.
Lembre-se de que, no dia do Calvário, a massa aplaudia a causa triunfante dos crucificadores, mas o Cristo, solitário e vencido, era a causa de Deus.
André Luiz
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
CAPÍTULO 3
Nogueira, reinstalado no
aposento, ensimesmou-se, refletindo, refletindo...
Lá fora, a noite de chumbo e, com
ele, o silêncio, apenas entremeado pela respiração sibilante da filha...
Se fosse unicamente Salomão o
interventor inesperado! — pensava, cismarento —, e talvez não se permitiria
maior detenção no assunto. Aquele vendedor de remédios que lhe confidenciara os
sucessos da noite, inspirando-lhe, aliás, gratidão e simpatia, parecera-lhe
excelente pessoa; entretanto, na simplicidade bonachona com que se apresentava, poderia
não passar do crente de boa-fé, lamentavelmente emblocado na superstição...
Agostinho, no entanto, agitava-lhe o espírito.
Comerciante abastado e instruído,
não se deixaria enrolar em tapeações.
Conhecia-lhe a agudeza de
raciocínio, a honestidade. Além disso, possuiria ocupações mais vantajosas em
que aplicar atenção e tempo.
Que doutrina aquela, capaz de
induzir um cavalheiro dinheiroso, a entrar em prece, num quarto de hospital,
chorando de compaixão por arrasada menina, à beira da sepultura? Que princípios
impeliam, assim, um homem educado e rico a esquecer-se, no socorro aos
infelizes, a ponto de tocar-lhes as matérias fecais, imbuído daquele amor, que somente os pais
conhecem nas entranhas do coração?
Fitou Marita que dormia, calma, e
recordou os dois homens abnegados que lhe haviam trazido alívio, sem nada
perguntar... Ele que jamais se aproximara de ensinamentos religiosos,
habitualmente tratados por ele com manifesta desconsideração, acolhia-se agora
a vasta série de porquês.
Abafado, agoniava-se com a sede
de algo... Sem o apoio fluídico de
Moreira,
que dedicava todas as energias à
moça em decúbito, lembrou o cigarro, mas dizia de si para consigo que não era
mais o cigarro o objeto que desejava.
Aspirava a sair, correr ao
encontro de Agostinho e Salomão, a fim de perguntar-lhes pela fé em Deus.
Anelava inteirar-se de como conseguiam entesourar tanta crença. Ambos haviam suavizado a
opressão que lhe supliciava a filha...
Naquele instante, indagava a si mesmo se
não era igualmente digno de piedade. Marita repousava no sono das vítimas,
que a justiça resguarda na paz inviolável da consciência, enquanto que ele se
atormentava na vigília dos réus!... Reconhecia-se enfermo da alma, náufrago que
afundava no redemoinho do desespero... Queria agarrar-se a alguém, a alguma
coisa. Singela raiz de confiança mantê-lo-ia à margem da queda total!... A
solidão asfixiava-o. Tinha fome de companhia.
Sugeri-lhe a leitura. Que ele
abrisse o volume com que fora brindado.
O livro conversaria em silêncio,
ser-lhe-ia companheiro. Não se comprometesse a digerir-lhe, de vez, todas as
instruções.
Consultasse trechos, aqui e ali.
Respigasse idéias, selecionasse conceitos.
Assimilou-me a indução e tomou a
brochura, compulsando-a.Ainda assim, tentou reagir.
Acusava-se incapaz, inquieto. Não
retinha a menor parcela de serenidade
para ler com aplicação ao assunto.
Insisti, porém.
Os dedos nervosos tatearam o
índice. Relanceou o olhar, através das legendas.
No capítulo 11º, esbarrou com um
item sob o título: «Caridade para com os criminosos». Aquelas sílabas
invadiram-lhe o cérebro atribulado quais gazuas de fogo. Sentia-se descoberto por
tribunal invisível. Sim! — monologou,
desconsolado — é imprescindível examinar-se.
Na própria conceituação, qualificava-se por malfeitor, foragido da grade.
Durante o dia inteiro fora visto e acatado, ali, sob aquele teto, como sendo pai
carinhoso, mas sabia-se estuprador, filicida...
Carregava a dor irremediável de
haver impelido a filha querida à loucura e à morte!... Que condenações
enfileiraria aquele volume contra ele? Merecia escutar a própria sentença, junto daquela
que lhe caíra sob o golpe aniquilador...
Procurou a folha indicada e oh!
surpresa!... O livro não lhe amaldiçoava a presença. Leu e releu, chorando,
aquelas frases que ressumavam brandura e entendimento. Identificou-se à
frente de um apelo à fraternidade e à compaixão, que não pintava os delinquentes por
seres infernais, ausentes da órbita do Amor Divino.
A pequena mensagem concitava à
tolerância e terminava rogando preces, a benefício dos que sucumbem na
voragem do mal.
As lágrimas borbotaram-lhe mais
profusamente dos olhos!... Aquelas palavras chamavam-no a razão. Percebia que
o mundo e a vida deviam estar banhados de profunda misericórdia.
Classificava-se por matador e
achava-se ali, reconsiderando o próprio caminho, com suficiente lucidez para
analisar-se e pensar... Aquele primeiro
contacto com as verdades do espírito fendia-lhe,
de alto a baixo, a cidadela do ateísmo. Com a sofreguidão do sedento que
atravessa longo deserto, mortificado de sede, atirou-se aos textos, de cujos caracteres
ideias esclarecedoras e balsâmicas vertiam, sublimes, lembrando torrentes de
água pura. Esquadrinhou vários temas...
Adquiriu conhecimentos rápidos
acerca da reencarnação e da pluralidade
dos mundos, meditou nas maravilhas da
caridade e nos prodígios da fé, através das chamas imortais do Cristianismo
que ali renasciam para ele, reaquecendo-lhe o coração!...
Quando olhou o relógio, os
ponteiros marcavam duas da madrugada.
Varara quatro horas, mergulhado
no livro, sem perceber. Sentia-se outro, O cérebro clareara-se, crivado de
pensamentos renovadores que lhe
suscitavam ardentes inquirições. Aquela era
uma doutrina que lhe permitia sentir e
indagar livremente, qual filho no regaço
de mãe... Em verdade, conjeturava, se Deus não existisse, se não houvesse uma
vida, além da Terra, por que se entregava, daquele modo, a tão funda compunção? Se
tudo na existência acabaria em animalidade e lodo, que razões lhe ditariam o
suplício moral, diante da filha, que lhe
inspirava contraditórios sentimentos?
Amava tanto aquela menina
desventurada!... Por que não lograra sustentar-se, na posição de pai, intenção aos
impulsos do sexo? que forças o haviam arrastado até à condição do verdugo em que
se aviltara? A ideia da reencarnação relampejou-lhe na cabeça. Ele e ela
remanesciam de experiências anteriores...
Indubitavelmente, algemada a
dominadoras alucinações afetivas, teriam vivido no passado, padecido e chorado
juntos!... Aquela devoção por Marita era
para ele comparável ao iceberg que mostra
reduzido fragmento, ocultando o peso enorme na vastidão das águas... Naquele
momento, algo lhe dizia, na acústica do espírito, que ele, Cláudio, a trouxera, de
novo, para o mundo, através da paternidade, a fim de orientá-la com limpeza e abnegação!...
A sabedoria da vida restituíra-lhe o carinho, no sorriso filial, por algum
tempo, para que retificasse os erros do tirano amoroso que deveria ter sido em épocas
passadas e as paixões cujos rescaldos lhe calcinavam agora o coração... As
realidades do destino se lhe alteavam do pensamento, belas e difusas, como
o brilho dos raios de luz ao fundirem a névoa...
Ainda assim, não se desculpava.
Reconhecia ter agravado os próprios débitos.
Entrevendo as realidades da vida
Além-Túmulo, apelava para os amigos que vira partir!... Que se apiedassem
dele e de Marita! que suplicassem a Deus para trocar-lhe a existência pela
dela...
Ele que se classificava pai
criminoso expiaria, no mundo espiritual, as próprias faltas, para, em seguida,
renascer na Terra, mutilado, ressarcindo
os débitos contraídos. Que ele se afligisse,
expungindo as nódoas da alma;
entretanto, que a filha vivesse e fosse feliz!...
E, se lhe cabia continuar, ainda, no mundo, transportando no peito a angústia
daquela hora, que a deixassem mesmo assim, abatida e muda, em seus braços!
Teria forças para carregá-la’ Ser-lhe-ia apoio, refúgio!... Que ela ficasse! que
se lhe desse oportunidade de transfigurar, junto dela, todos os caprichos de homem rude
em manifestações de amor puro... Aconchegá-la-ia, de algum modo, ao coração.
Obteria uma cadeira de rodas,
conduzi-la-ia a qualquer parte. Acolheria sem
reclamar quaisquer obstáculos; entretanto, implorava à Providência Divina poupasse
Marita ao gládio da morte para que não
faltasse a ele o ensejo de reajuste e
reparação!...
Abracei-o, sugerindo-lhe
esperança. Que não esmorecesse. Confiasse. Quem estaria na Terra, sem problemas?
Quantos, naquela mesma hora, em outros lugares, se achariam em lutas
semelhantes? Aquele volume, que lhe
sacudia o pensamento, se mantinha, ali,
qual sinal de trânsito, na estrada do destino. Valia interpretar o remorso por marca
vermelha, suscitando parada.
Conviria frear o carro dos
próprios desejos e pensar, pensar!... Todos atingimos um dia de reconciliação com a
própria consciência; que não desertasse
da luz que lhe acendiam na marcha.
Compreendesse que a lei de Deus
não se afirma em condenação, mas sim em justiça e que a justiça de Deus
nunca se expressa sem piedade. Que ele meditasse, concluindo que se nós outros, os
homens imperfeitos, já conseguíamos adicionar compaixão à justiça, por que
motivo Deus, que é o Amor Infinito, haveria de exercê-la, implacável? Ali,
transpúnhamos a escuridão da noite... a alvorada não tardaria e, com ela, o sol diurno que chegava
sempre novo!... Que levantássemos todos os sentimentos para a renovação que
começava!...
Moreira, que me avistava enlaçado
a ele, endereçou-me ansioso olhar, como a inquirir pelas idéias que eu lhe
insuflava. Antes, porém, que me viesse substituir, cioso do lugar de conselheiro que
me permitia ocupar, apelei para Cláudio, inclinando-o a iniciar, ali mesmo, a
obra reparadora.
O bancário não vacilou.
Fundamente enternecido,
levantou-se, caminhou na direção da cama e ajoelhou-se à cabeceira.
Confessava a si próprio que, pela
primeira vez, depois de muito tempo, fitava o semblante da filha, sem que a
mais leve tisna de fascinação sexual lhe alterasse os sentimentos.
Tremeu-lhe o coração,
atormentado.
Acariciou-a com uma espécie de
ternura que jamais experimentara, deixou que as próprias lágrimas lhe orvalhassem
o rosto e suplicou, em surdina:
— Perdão, minha filha!... Perdão
para seu pai!...
A rogativa desfaleceu na garganta
que os soluços embargavam...
Marita evidentemente não
respondeu; no entanto, o afago paternal instilou-lhe energia diferente e tanto Moreira
quanto eu próprio registramos, espantados, o gemido que ela desferiu,
denotando sinais de retorno a si mesma.
Cláudio, esperançado,
desligou-se. O carinho impregnara-se nele de súbito respeito.
Intimamente comparou aquele afeto
imaculado que lhe nascia ao lírio alvo que desponta num charco.
Outros gemidos repetiram-se
imprecisos, dolorosos...
O genitor escutava-os, ralado de
angústia. Daria o que tivesse para traduzir aqueles vagidos de criança
inconsciente... Conjeturou, porém, que eles exprimiam padecimentos físicos inenarráveis
e agoniou-se em choro convulsivo. O ex-vampirizador, transfigurado em servo
diligente, ergueu-se, presto, e veio abraçá-lo, no intuito de propiciar-lhe
reconforto, mas notei que os dois amigos
jaziam, agora, perto e longe um do outro. Juntos
por fora e distantes por dentro. Ombros unidos e pensamentos opostos. Moreira fora
atingido pelos acontecimentos, mas não tanto.
Patenteava enorme afeição por
Marita, lutava por ela, mas, no fundo, não escondia o propósito de seguir controlando
Cláudio, no resguardo de seu próprio interesse.
Identificando o parceiro tocado
no coração pelos sentimentos edificantes que a leitura lhe sugerira, revelava o
desapontamento semelhante ao de um pianista que surpreendesse o instrumento
favorito com as teclas mudas.
Alarmado, desfechou-me perguntas.
Sosseguei-o, afirmando que o cérebro de Nogueira se anulava, naquele
instante, por arrasadoras comoções; entanto, no íntimo, certificara-me de que ele
havia dado um passo adiante e de que o companheiro menos feliz deveria
elevar-se no mesmo diapasão para desfrutar-lhe a convivência, se não quisesse
perder-lhe a companhia.
A mente do bancário emergia
daquelas horas reduzidas de estudo
compulsório, sob a tormenta moral, ao jeito de
paisagem, quando varrida de terremoto. Nenhuma analogia com o que era antes.
Em razão disso, enfadava-se o
outro, melindrado, triste.
Mesmo assim, Moreira retomou o trabalho
de manutenção da jovem prostrada.
Nisso, porém, chegaram dois
auxiliares, Arnulfo e Telmo, que vinham, da parte do irmão Félix, colaborar no
auxílio à menina.
Ambos simpáticos, espontâneos.
Apresentei-os ao mantenedor
magnético, surpreso, cuja posição espiritual reconheceram, de pronto; contudo,
na gentileza característica dos corações generosos, envidaram todos os
esforços para não constrangê-lo com qualquer linha divisória de tratamento.
Rodearam-no de otimismo e bondade, qualificando-o na categoria de colega estimável.
Na antevéspera, aquele irmão, que
se avalentoava no Flamengo, não aceitaria tal camaradagem; todavia, Marita
ali respirava, entre dois mundos... Fatigada, dispneica...
Por Marita, suportava as
alterações, sofreava os impulsos.
A madrugada abeirava-se do dia.
Acercamo-nos de Cláudio.
Indispensável fazê-lo descansar,
dormir.
Moreira, com iniludível desgosto
a se lhe estampar na fisionomia, observou-nos o cuidado, na administração dos
passes balsâmicos, aos quais o paciente aquiesceu sem qualquer
contradita.
Aliás é de mencionar-se a
sensação de alívio com que Cláudio nos respondeu ao toque sugestivo. Acabava de
viver minutos de martírio inominável. Aspirava ao repouso, mendigava esmola de paz.
Todavia, enquanto se lhe
relaxavam os nervos tensos à pressão do sono que lhe impúnhamos, brandamente,
Moreira a tudo assistia, no crescente desagrado da pessoa que contempla a agitação e
a mudança de sua casa, conturbada em serviços de reforma que não
pediu. Lançava ondas de azedia e
amargura no sorriso amarelo. Tudo para ele
surgia deslocado, revirado... Entre o amigo que lhe fugia ao comando e a jovem, cujo
corpo físico se decidia a preservar,
sentia-se atônito, desenxavido...
Compreendendo que não lhe seria
lícito incompatibilizar-se conosco, simplesmente à face da
assistência que o esposo de Dona Márcia recolhia de nós, aplicou-se com mais veemência às
atenções para com a moça, cujos pensamentos mais profundos empenhava-se agora
por auscultar.
Marita, a seu turno, porque
assimilasse mais amplo montante de força, acabou reassumindo o leme dos centros
cerebrais, que ainda se lhe mantinham à
disposição. Recuperou a sensibilidade olfativa, percebia, raciocinava e ouvia
com relativa segurança; contudo, estava
hemiplégica, nada enxergava e extinguira-se-lhe a fala, de modo irreversível. A
princípio, admitiu-se acordando no sepulcro. Ouvira muitas narrações, alusivas a mortos que
despertavam no túmulo, lera depoimentos relacionando sucessos dessa ordem
e assistira a vários filmes de horror.
De alma opressa, supunha-se num transe
desses, estendida ali no leito que tomava por ataúde, no silêncio de aflições
inapeláveis... Forcejava por gritar, reclamando socorro; no entanto, veio-lhe a ideia de
haver esquecido o processo de articular as palavras.
Sabia-se pensando com a própria
cabeça, mas ignorava agora os movimentos coordenadores da voz. Apesar de tudo,
reconhecia-se consciente.
Sentia, memorizava. Recordou os
acontecimentos que lhe haviam inspirado o propósito de morrer.
Arrependia-se. Se a vida continuava, para que provocar o fim do corpo? — considerava,
desditosa. Lembrou as ocorrências da Lapa, a entrevista com Gilberto pelo telefone de
Dona Cora, os comprimidos de Salomão, o sono à frente do mar, o desconhecido
prestes a assaltá-la, a corrida para o asfalto, a queda sob o automóvel em movimento...
Depois, aquilo ali... O corpo estatelado que lhe parecia de pedra, a consciência
ativa, as percepções aguçadas e a incapacidade de expressão... Intimamente, o
esforço desesperado para fazer-se notar; no entanto, sentia-se entalada por
gargalheira de chumbo. Irritou-se, debalde. Fremia de impaciência, de espanto, de
dor... Mágoa e revolta, petitórios e indagações esmaeciam-se-lhe, manifestos, no
âmago do ser.
Por mais se empenhasse a chorar,
desoprimindo-se, as lágrimas se lhe represavam no peito, sem nenhum canal que lhe
extravasasse as agonias. Os olhos, tanto quanto a língua, se
lhe figuravam desligados do corpo...
Estaria morta — perquiria a jovem
num misto de perplexidade e sofrimento —, ou quase a morrer?
Escutou os passos da enfermeira
de plantão e registrou a respiração sibilante do pai, sem a possibilidade de identificar-lhes
a presença e, em vão, tentou pedir explicação para o cheiro
nauseante que a cercava.
Transcorridas duas horas de
angústia recôndita, que Moreira assinalava com acuidade e precisão, a moça como
que se aquietou, mentalmente, e perscrutando-lhe, por minha vez, o campo
intimo, notei que se fixava lamentavelmente em Marina.
O companheiro desencarnado que,
até então, se fazia suporte psíquico de Cláudio e que necessitava de base
moral para garantir o próprio
reequilíbrio, encontrou pasto robusto a nova
desorientação.
Descobri o perigo, sem poder
conjurá-lo.
Percebendo-se demitido da
complacência do amigo que se lhe transformara em joguete, procurava-lhe na filha
motivos outros em que se lhe facultasse
permanecer atrelado à demência.
De nossa parte, não era possível
pressionar a menina acidentada, no sentido de lhe sustar as lamentações.
Qualquer dispêndio de energias, além das estritamente necessárias ao seu
sustento, poderia precipitar-lhe a desencarnação.
Insciente das complicações que
gerava com semelhante procedimento, a filha de Aracélia reconstituiu na
imaginação as aperturas da existência. Acusava a irmã por todos os infortúnios.
Exibia-lhe a figura na tela da memória
como sendo a inimiga imperdoável... Marina a
furtar-lhe as carícias maternas, Marina a surripiar-lhe as oportunidades,
Marina a roubar-lhe as afeições. Marina a subtrair-lhe o eleito dos sonhos juvenis...
Não valeram ponderações que lhe
endereçávamos, inquietos.
A influência de Moreira, que lhe
amimalhava as incriminações, surgia naturalmente muito mais vigorosa
para ela, que diligenciava encontrar simpatia e adesão.
Aquela desventurada menina
desconhecia os poderes do pensamento. Não sabia que, fora da indulgência e
da brandura, invocava desagravo e, assim procedendo, não apenas enredava a
família em duras provações, mas igualmente punha a perder o valioso trabalho
de recuperação daquele amigo necessitado de afeição e de luz.
O ex-assessor de Cláudio, ao
absorver-lhe as confidências mudas, em que relacionava os pesares mais
íntimos, dos quais não tivera ele conhecimento, retomava, a pouco e pouco, a
brutalidade que, anteriormente, lhe marcava a expressão.
Esvaeciam-se-lhe as melhoras de
espírito.
A pretexto de auxiliar a
protegida, reavivava os instintos de vingador.
O olhar que se adoçara de
compaixão, readquiriu a lividez dos alienados.
Sumiram-se todos os indícios de
retorno à sensatez e à humanidade que patenteava, desde o momento em
que renteara com a moça abatida.
Inútil seria qualquer tentame
para reconduzi-lo à serenidade. Embebendo-se nos queixumes daquela que
classificava como sendo para ele a mulher querida, restaurava em si mesmo a
selvageria da fera sequiosa de sangue. Respondendo-nos às petições de calma e
tolerância, clamava que não, quenão... Ninguém o faria
renunciar à guerra pela
tranqüilidade daquela que amava; alegava desconhecer, até então, o martírio que a irmã lhe
aplicara durante a vida inteira e
insistiria no desforço...
Ao vê-lo abandonar o serviço a
que voluntariamente se impusera, incapaz de refletir nas conseqüências da
própria deserção, compreendi que o
ex-obsessor convertido em amigo fora
assaltado por crise de loucura e
inclinei-me a considerar se o irmão Félix não errara
solicitando a permanência de Marita no corpo
desarticulado, tal a extensão dos
males que o ex-vampirizador seria capaz de estender, a partir daquela hora;
no entanto, reprimi-me... Não! eu não detinha o direito de julgar o companheiro
destrambelhado que se afastava de nós, enquanto o sol da manhã se aprumava no céu.
O irmão Félix sabia o que fizera e, com certeza, em outro tempo, não me
desequilibrara e nem desacertara em ponto menor...
Competia-me simplesmente
trabalhar, socorrer. Transferi nossos
encargos às atenções de Arnulfo e Telmo e
demandei a residência dos Torres, o único lugar para onde Moreira, a nosso ver,
decerto rumaria.
Entrei...
Na casa silente, cochichava-se a
medo. Lágrimas no semblante dos
servidores humildes.
Dona Beatriz, em coma, esperava a
morte.
Neves e outros afeiçoados do
mundo espiritual rodeavam o leito. Dedicada enfermeira observava a senhora
prestes a mergulhar no grande repouso, diante de Nemésio, Gilberto e Marina, que
se acomodavam a pequena distância.
Aturdido, porém, verifiquei que
Moreira não se achava ainda aí. A surpresa, entretanto, se desfez para logo,
de vez que, transcorridos alguns
momentos, o ex-acompanhante de Cláudio, seguido por quatro camaradas
truculentos e carrancudos, penetrou,
desrespeitosamente, o recinto... E,sem a menor comiseração pela agonizante,
acercou-se da filha de Dona Márcia e gritou, encolerizado:
— Assassina!... Assassina!.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
RECEBENDO SOCORRO
Finda a prece, que ouvi sob indizível angústia, percebendo a manifesta intenção da filha que assim procedia buscando isolar-me o pensamento da intervenção a que me achava submetido, notei que as dores se faziam menos rudes. Ela permaneceu amorosamente inclinada para mim; por mais de uma hora, silêncio.
Temia falar, provocando fenômenos desagradáveis, e, ao que me pareceu, Marta me partilhava os receios. Um momento chegou, entretanto, no qual a respiração se fez equilibrada e verifiquei que o coração me batia, uniforme e regular, no peito.
Através do olhar, supliquei à filha, sem palavras, reforçasse o socorro que minha situação estava exigindo. Via-a movimentar cuidadosamente o braço direito e, em seguida, passar a destra repetidamente sobre a minha cabeça exausta.
Reparei que me aplicava força espiritual que eu ainda não podia compreender.
Mais alguns minutos decorridos e percebi que o poder de orar me felicitava de novo. Encadeava os pensamentos sem maiores dificuldades e, na convicção de que poderia tentar a prece com êxito, improvisei sincera súplica.
O trabalho foi bem sucedido. A harmonia geral começou a refazer-me, embora a fraqueza extrema que me possuía. Notei que, de Marta para mim, vinham fagulhas minúsculas de luz, em porção imensa, a envolverem-me todo, ao passo que me via agora cercado de atmosfera fracamente iluminada em tom de laranja. A respiração processava-se normalmente. A carência de ar desaparecera.
Meus pulmões revelavam-se robustecidos, como por encanto, e tanto bem me faziam as inalações prolongadas de oxigênio que tive a impressão de haurir alimento invisível, do ar leve e puro.
Restabelecendo-se-me a força orgânica, fortificava-se a potência visual. A claridade alaranjada que me revestia casava-se à luz comum. A melhora experimentada, porém, não ia a ponto de restaurar-me a disposição de falar. O abatimento era ainda insuperável.
Assombrado, vi-me em duplicata. Eu, que tanta vez exortara os desencarnados a contemplarem os despojos de que já se haviam desvencilhado, fixei meu corpo a enrijecer-se, num misto de espanto e amargura.
Fitei minha filha, com suplicante humildade, imitando o gesto da criança medrosa. Encontrava-me prostrado, vencido. Não me assistia qualquer razão de revolta; contudo, se possível, desejaria afastar-me. A contemplação do corpo imóvel, não obstante aguçar-me o propósito de observar e aprender, era-me aflitiva. O cadáver perturbava-me com as sugestões da morte, impunha reflexão desagradável e amarga. À distância dele, provavelmente a ideia de vida e eternidade prevaleceria, dentro de mim.
Marta entendeu o que eu não podia dizer. Fez-se mais terna e explicou-me:
“– Tenha calma, papai. Os laços não se desfizeram totalmente. Precisamos paciência por mais algumas horas”.
EM POSIÇÃO DIFÍCIL
Alongando o raio de meu olhar, verifiquei a existência de prateado fio, ligando-me o novo organismo à cabeça imobilizada.
Torturante emoção apossou-se de mim.
Eu seria o cadáver ou o cadáver seria eu? Por intermédio de que boca pretendia falar? Da que se fechara no corpo ou da que me serviria agora? Através de que ouvidos assinalava as palavras de Marta?
Intentando ver pelos olhos mortos, senti -me atirado novamente a espesso nevoeiro. Assustado, soergui-me mentalmente. Aquele grilhão tênue a unir-me com os despojos era bem um fio de forças vivas, jungindo-me à matéria densa, semelhando-se ao cordão umbilical que liga o nascituro ao seio feminino.
Fitando, então, o corpo repousado e inerte, simbolizando templo materno ao meu ser que ressurgia na espiritualidade, recordei, certamente inspirado pelos amigos que ali me socorriam, a enormidade dos meus débitos para com a carcaça que me retivera no Planeta por extensos e abençoados anos. Devia-lhe à cooperação precioso amontoado de conhecimentos. Cabia-me vencer o mal-estar e a repugnância.
Tranquilizei-me. Comecei a considerar o corpo, mirrado e frio, como valioso companheiro do qual me afastaria em definitivo.
Enquanto perdurou a nossa entrosagem, beneficiara-me ao contato da luta humana. Junto dele, recolhera bênçãos inextinguíveis. Sem ele, por que processos continuariam o aprendizado?
Fixei-o, enternecido, mas, aumentando o meu interesse pela organização de carne, imóvel, incapaz de separar emoções e selecioná-las, afundei-me nas impressões de angústia. Minhas energias pareciam retransferir-se, aceleradamente, ao envoltório abandonado.
Insuportável constrangimento martirizava-me. Percebi os conflitos da carne desgovernada. A diferença apresentada pelos órgãos impunha-me terrível desagrado.
Registrando-me as dificuldades; Marta informou bondosamente:
“— Lembre-se, paizinho, da necessidade de concentração na prece. Não divague. Esqueça a experiência que terminou, sustentando a mente em oração”.
A custo, retornei a mim mesmo e me mantive no recolhimento necessário.
Meu objetivo, agora, era não pensar. Avançava-se no futuro, estranhas vertigens me assediavam; se me demorava analisando o veículo físico, vigoroso e inesperado impulso me reconduzia para ele. Que fazer de mim, reduzido a minúsculo ponto sensível entre duas esferas?
Aquietei-me e orei.
domingo, 3 de fevereiro de 2013
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
O FILHO DO ORGULHO
Cap. VII – Item 11
O melindre – filho do orgulho – propele a criatura a situar-se acima do bem de todos. É a vaidade que se contrapõe ao interesse geral.
Assim, quando o espírita se melindra, julga-se mais importante que o Espiritismo e pretende-se melhor que a própria tarefa liberta-dora em que se consola e esclarece.
O melindre gera a prevenção negativa, agravando problemas e acentuando dificuldades, ao invés de aboli-los. Essa alergia moral demonstra má-vontade e transpira incoerência, estabelecendo moléstias obscuras nos tecidos sutis da alma.
Evitemos tal sensibilidade de porcelana, que não tem razão de ser.
Basta ligeira observação para encontrá-la a cada passo:
É o diretor que tem a sua proposição refugada e se sente desprestigiado, não mais comparecendo às assembleias.
O médium advertido construtivamente pelo condutor da sessão, quanto à própria educação mediúnica, e que se ressente, fugindo às reuniões.
O comentarista admoestado fraternalmente para abaixar o volume da voz e que se amua na inutilidade.
O colaborador do jornal que vê o artigo recusado pela redação e que se supõe menosprezado, encerrando atividades na imprensa.
A cooperadora da assistência social esquecida, na passagem de seu aniversário, e se mostra ferida, caindo na indiferença.
O servidor do templo que foi, certa vez, preterido na composição da mesa orientadora da ação espiritual e se desgosta por sentir-se infantilmente injuriado.
O doador de alguns donativos cujo nome foi omitido nas citações de agradecimento e surge magoado, esquivando-se a nova cooperação.
O pai relembrado pela professoradas aulas de moral cristã, com respeito ao comportamento do filho, e que, por isso, se suscetibiliza, cortando o comparecimento da criança.
O jovem aconselhado pelo irmão amadurecido e que se descontenta, rebelando-se contra o aviso da experiência.
A pessoa que se sente desatendida ao procurar o companheiro de cuja cooperação necessita, nos horários em que esse mesmo companheiro, por sua vez, necessita de trabalhar a fim de prover a própria subsistência.
O amigo que não se viu satisfeito ante a conduta do colega, na instituição, e deserta, revoltado, englobando todos os demais em franca reprovação,incapaz de reconhecer que essa é a hora de auxílio mais amplo.
O espírita que se nega ao concurso fraterno somente prejudica a si mesmo.
Devemos perdoar e esquecer se quisermos colaborar e servir.
A rigor, sob as bênçãos da Doutrina Espírita, quem pode dizer que ajuda alguém? Somos sempre auxiliados.
Ninguém vai a um templo doutrinário para dar, primeiramente.
Todos nós aí comparecemos, antes de tudo, para receber, sejam quais forem as circunstâncias.
Fujamos à condição de sensitivas humanas, convictos de que a honra reside na tranqüilidade da consciência, sustentada pelo dever cumprido.
Com a humildade não há o melindre que piora aquele que o sente, sem melhorar a ninguém.
Cabe-nos ouvir a consciência e segui-la, recordando que a suscetibilidade de alguém sempre surgirá no caminho, alguém que precisa de nossas preces, conquanto curtas ou aparentemente desnecessárias.
E para terminar, meu irmão, imagine se um dia Jesus se melindrasse com os nossos incessantes desacertos...
Cairbar Schutel
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