quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER
RECEBENDO SOCORRO
Finda a prece, que ouvi sob indizível angústia, percebendo a manifesta intenção da filha que assim procedia buscando isolar-me o pensamento da intervenção a que me achava submetido, notei que as dores se faziam menos rudes. Ela permaneceu amorosamente inclinada para mim; por mais de uma hora, silêncio.
Temia falar, provocando fenômenos desagradáveis, e, ao que me pareceu, Marta me partilhava os receios. Um momento chegou, entretanto, no qual a respiração se fez equilibrada e verifiquei que o coração me batia, uniforme e regular, no peito.
Através do olhar, supliquei à filha, sem palavras, reforçasse o socorro que minha situação estava exigindo. Via-a movimentar cuidadosamente o braço direito e, em seguida, passar a destra repetidamente sobre a minha cabeça exausta.
Reparei que me aplicava força espiritual que eu ainda não podia compreender.
Mais alguns minutos decorridos e percebi que o poder de orar me felicitava de novo. Encadeava os pensamentos sem maiores dificuldades e, na convicção de que poderia tentar a prece com êxito, improvisei sincera súplica.
O trabalho foi bem sucedido. A harmonia geral começou a refazer-me, embora a fraqueza extrema que me possuía. Notei que, de Marta para mim, vinham fagulhas minúsculas de luz, em porção imensa, a envolverem-me todo, ao passo que me via agora cercado de atmosfera fracamente iluminada em tom de laranja. A respiração processava-se normalmente. A carência de ar desaparecera.
Meus pulmões revelavam-se robustecidos, como por encanto, e tanto bem me faziam as inalações prolongadas de oxigênio que tive a impressão de haurir alimento invisível, do ar leve e puro.
Restabelecendo-se-me a força orgânica, fortificava-se a potência visual. A claridade alaranjada que me revestia casava-se à luz comum. A melhora experimentada, porém, não ia a ponto de restaurar-me a disposição de falar. O abatimento era ainda insuperável.
Assombrado, vi-me em duplicata. Eu, que tanta vez exortara os desencarnados a contemplarem os despojos de que já se haviam desvencilhado, fixei meu corpo a enrijecer-se, num misto de espanto e amargura.
Fitei minha filha, com suplicante humildade, imitando o gesto da criança medrosa. Encontrava-me prostrado, vencido. Não me assistia qualquer razão de revolta; contudo, se possível, desejaria afastar-me. A contemplação do corpo imóvel, não obstante aguçar-me o propósito de observar e aprender, era-me aflitiva. O cadáver perturbava-me com as sugestões da morte, impunha reflexão desagradável e amarga. À distância dele, provavelmente a ideia de vida e eternidade prevaleceria, dentro de mim.
Marta entendeu o que eu não podia dizer. Fez-se mais terna e explicou-me:
“– Tenha calma, papai. Os laços não se desfizeram totalmente. Precisamos paciência por mais algumas horas”.
EM POSIÇÃO DIFÍCIL
Alongando o raio de meu olhar, verifiquei a existência de prateado fio, ligando-me o novo organismo à cabeça imobilizada.
Torturante emoção apossou-se de mim.
Eu seria o cadáver ou o cadáver seria eu? Por intermédio de que boca pretendia falar? Da que se fechara no corpo ou da que me serviria agora? Através de que ouvidos assinalava as palavras de Marta?
Intentando ver pelos olhos mortos, senti -me atirado novamente a espesso nevoeiro. Assustado, soergui-me mentalmente. Aquele grilhão tênue a unir-me com os despojos era bem um fio de forças vivas, jungindo-me à matéria densa, semelhando-se ao cordão umbilical que liga o nascituro ao seio feminino.
Fitando, então, o corpo repousado e inerte, simbolizando templo materno ao meu ser que ressurgia na espiritualidade, recordei, certamente inspirado pelos amigos que ali me socorriam, a enormidade dos meus débitos para com a carcaça que me retivera no Planeta por extensos e abençoados anos. Devia-lhe à cooperação precioso amontoado de conhecimentos. Cabia-me vencer o mal-estar e a repugnância.
Tranquilizei-me. Comecei a considerar o corpo, mirrado e frio, como valioso companheiro do qual me afastaria em definitivo.
Enquanto perdurou a nossa entrosagem, beneficiara-me ao contato da luta humana. Junto dele, recolhera bênçãos inextinguíveis. Sem ele, por que processos continuariam o aprendizado?
Fixei-o, enternecido, mas, aumentando o meu interesse pela organização de carne, imóvel, incapaz de separar emoções e selecioná-las, afundei-me nas impressões de angústia. Minhas energias pareciam retransferir-se, aceleradamente, ao envoltório abandonado.
Insuportável constrangimento martirizava-me. Percebi os conflitos da carne desgovernada. A diferença apresentada pelos órgãos impunha-me terrível desagrado.
Registrando-me as dificuldades; Marta informou bondosamente:
“— Lembre-se, paizinho, da necessidade de concentração na prece. Não divague. Esqueça a experiência que terminou, sustentando a mente em oração”.
A custo, retornei a mim mesmo e me mantive no recolhimento necessário.
Meu objetivo, agora, era não pensar. Avançava-se no futuro, estranhas vertigens me assediavam; se me demorava analisando o veículo físico, vigoroso e inesperado impulso me reconduzia para ele. Que fazer de mim, reduzido a minúsculo ponto sensível entre duas esferas?
Aquietei-me e orei.