sexta-feira, 12 de abril de 2013
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
CAPÍTULO 5
No entardecer do dia imediato,
enquanto seguíamos de perto a crescente renovação íntima de Cláudio que, por algumas vezes, já
conseguira se entender com Agostinho, adquirindo mais amplos recursos de
cultura espírita, a filha de Aracélia repousava, sob o patrocínio de Moreira, que se
reconfortava ao identificar oresultado compensador do próprio esforço. Ele mesmo,
agora, compreendia que a moça se lhe afinava, com mais segurança, ao apoio
fluídico.E regozijava-se comisso.
A Providência Divina abençoava o
lavrador bisonho, propiciando-lhe a venturade contemplar os grelos
promissores das primeiras sementes dobem que eleplantava.
Se algo distante do posto,
durante alguns minutos, a jovem, cujo corpo espiritual se revestia de inexprimível
suscetibilidade, em vista do desgaste físico, passava a gemer, denotando sofrimento
agravado, para calar-se, em súbita acalmia,
tão logo o sustentador retomasse a posição.
Moreira sentia-se útil,
orgulhava-se. Encontrava motivos para conversar conosco, permutando impressões.
Solicitava esclarecimentos, a fim de entrar em processos mais eficazes de
auxílio.
Adquirira interesse para o
trabalho. Assemelhava-se a um homem que houvesse debalde suspirado, muito
tempo, pela condição de pai e, tendo
achado uma criança, conseguira com ela
ocupar o vazio do coração.
Cláudio, a seu turno, não se
circunscrevia à própria transformação. Desdobrava-se por dispensar à filha todo
o carinho e toda a assistência de que se via capaz.
O facultativo amigo trouxera pela
manhã um neurologista. Falou-se em modificação do tratamento e na
consequente internação da menina numa casa de saúde em Botafogo; entretanto, a
peritonite desaconselhava a mudança rápida. Por essa razão, concordou-se na
aplicação maciça de antibióticos, até que a melhora esperada autorizasse a medida.
O genitor não regateava cuidados,
nem desencorajava qualquer providência tendente a socorrê-la, custasse o
que custasse.
Chegada a noite, o irmão Félix
veio até nós e, após felicitar Moreira pela tarefa que realizava, participou-nos a
desencarnação de Dona Beatriz.
A esposa de Nemésio desligara-se,
enfim, do corpo que o câncer combalira.
Verificada a estabilidade dos
serviços em andamento, o instrutor convocou-nos a tomar-lhe o rumo, na direção
dos Torres.
Seguimos.
De jornada, conquanto discreto,
desabafou-se. Preocupava-se por Marina.
Indispensável protegê-la contra a
obsessão começante.
Afastara-se Moreira; no entanto,
permaneciam lá, no pátio interno, os arruaceiros e vampirizadores que
ele contratara. Perseguidores gratuitos e infelizes que, inevitavelmente, trariam
outros para tumultuar a vida mental da
moça, comprometida pelo remorso.
Os termos e a inflexão de voz do
irmão Félix acentuavam-lhe a grandeza de alma. Ele não via na filha de
Dona Márcia a jovem corrompida que nós mesmos, em alegações destituídas de qualquer
malícia, não hesitávamos enquadrar nas
linhasda prostituição, nem lhe conferia
certificado de aviltamento nas ideias recônditas.
Reportava-se a ela, como quem
menciona terra nobre que a desídia do
cultivador entrega à serpente. Marina, na
conceituação dele, era uma filha de Deus, credora de veneração e ternura. Confiava
nela, esperaria o futuro.
Antes, porém, que as circunstâncias
me exigissem algum pronunciamento, esbarramos com a moradia da
família que a morte visitara.
Entramos atentos.
Lustres providos de luz intensa
punham à mostra a reduzida assembléia que se habilitava ao velório.
Aqui e ali, frases convencionais,
atiradas sem maior sentimento aos ouvidos do esposo e do filho da senhora
desencarnada.
Nemésio e Gilberto não
entremostravam grande pesar nas fisionomias cansadas e impassíveis.
A moléstia prolongada no reduto
doméstico estragara-lhes a resistência para a representação de peças sociais,
mesmo singelas. Amarrotados pelas vigílias consecutivas, não ocultavam a
própria desopressão. Referiam-se à morta, no feitio de um viajor atormentado que, de
há muito, deveria ter ancorado no porto doextremo refrigério.
O invólucro abandonado por aquela
alma boa e veneranda recolhia atenções especiais, para apresentar-se no
catafalco de luxo, ao passo que ela mesma, inconsciente, se asilava nos
braços de irmãs afetuosas, sob o olhar comovido de Neves e de outros familiares em
carinhoso desvelo.
O irmão Félix, assumindo o
comando, deu instruções.
Beatriz, que se preparara
laboriosamente para aquela hora, seria conduzida, com presteza, à organização
socorrista do plano espiritual, no
próprio Rio, até que restaurasse as forças, de modo a
seguir viagem.
Tudo harmonia nas disposições
traçadas.
Entretanto, quando o triste
retrato físico de Dona Beatriz foi trazido ao estrado de repouso que se lhe
improvisara, Marina apareceu em pranto de compunção.
Chorava, tocada de dor sincera e
inexprimível. Parecia, naquela reunião de etiqueta, a única pessoa ligada por laços
de amor à piedosa dama, que encerrava, calada e humilde, a derradeira página da
existência naquela casa que a fortuna abrilhantava.
Ao fitar aquele corpo hirto, caiu
de joelhos, em lágrimas copiosas. Invejou aquela cujo último sorriso de
complacência ali se estampava sereno, qual se estivesse satisfeita por deixá-la no lugar
que ocupara, durante tantos anos, ao pé
de um esposo que a enganara sempre.
Ah! Dona Beatriz!... Dona
Beatriz!...
As palavras soluçadas escapavam
daquele peito juvenil, como se quisessem traçar uma longa confissão.
Acercamo-nos da moça, no
propósito de auxiliá-la; entretanto, Félix considerou que o desafogo lhe faria bem.
Marina, fatigada de insônia e
desgastada pela ação dos obsessores que lhe exauriam as forças, sentia medo.
Contemplava o envoltório
descarnado de Dona Beatriz, através das lágrimas, refletindo nos segredos da morte
e nos problemas da vida...
Se a alma sobrevivia ao corpo —
pensava, inquieta —, decerto que a senhora Torres vê-la-ia agora sem o
mínimo subterfúgio. Certificar-se-ia de que ela fora, ali, não a enfermeira espontânea e sim
a mulher que lhe dominava o esposo e o filho...
Atemorizada, rogava-lhe
entendimento, perdão.
Que diria aquela boca silenciosa
para ela, se pudesse falar, depois de auscultar a verdade?...
Beatriz, porém, naquele instante
conduzida ao refazimento, jazia inacessível às complicações da sociedade
terrestre. E, em lugar dela, era o próprio remorso que se lhe alteava na imaginação,
acusando, acusando...
A mágoa da jovem provocava
simpatia nos circunstantes e despertava, tanto em Nemésio quanto no filho, novos
motivos de atração. A frente do choro pungente, ambos fitavam-na, enternecidos,
exprimindo reconhecimento nos olhos, cada qual desejando nela a companheira
ideal para casamento próximo, sem a menor suspeita, quanto às convicções um
do outro.
Naquela mesma noite, assinalei a
falta de Dona Beatriz no ambiente caseiro.
O afastamento da filha de Neves e
dos amigos espirituais que lhe frequentavam a companhia deixara a vivenda
qual praça desarmada de quaisquer recursos que lhe garantissem a ordem.
Transcorrido algum tempo sobre o
velório em si, vagabundos desencarnados nele tiveram acesso livre.
O nível dos pensamentos descambou
para a conversação libertina. Nem mesmo a dignidade que a morte
infundia ao recinto foi acatada. Relatos jocosos irromperam, suplementados pela
chacota dos próprios anedotistas. Um dos presentes comentou, entusiasta,
os espetáculos debochados de que fora testemunha, em recente viagem ao
estrangeiro, suscitando o interesse de vampirizadores que ouviam as
narrações, seduzidos pela tentação de repetí-los, na versão deles próprios.
Não contentes, por fim, com os
licores aristocráticos, desde muito guardados nos armários da família,
beberrões encarnados e desencarnados impeliram Nemésio à encomenda telefônica de
vinhos e uísques, rapidamente gorgolejados por gargantas sequiosas.
O irmão Félix, prevendo a
leviandade, recomendara se aplicasse, à matrona desencarnada, recursos
anestesiantes, a fim de que se lhe mantivesse o isolamento do licencioso festim, praticado
em nome da solidariedade afetiva perante a morta.
Os derradeiros afeiçoados de
Beatriz, no plano espiritual, se retiraram, discretos, e nós mesmos não
tivemos outro recurso senão largara residência, alta madrugada, depois do socorro a
Marina, relegando os despojos da nobre senhora às grossas nuvens de emanações
alcoólicas que instalavam, por toda a habitação, atmosfera dificilmente
respirável.
Somente no dia seguinte, acabados
os funerais, voltei do hospital ao ninho dos Torres, onde a filha de Cláudio
se demorava.
Telefonemas diversos, entre mãe e
filha, examinavam a nova situação. Dona Márcia reclamava o regresso,
Nemésio desejava que a secretária lhe amparasse a moradia. Ele próprio, em dado
momento, chamou Dona Márcia pelo fio, solicitando-lhe concessões. Que Marina
permanecesse orientando as servidoras que lhe atendiam a casa. Mais algumas
semanas e tudo se aclararia satisfatoriamente.
A senhora Nogueira, honrada com a
gentileza, não vacilava confiar. Aquiesceu lisonjeada, feliz.
Em cada frase que o chefe lhe
deitara de longe aos ouvidos, pressentia a aliança de Nogueiras e Torres
pelo casamento entre os jovens.
Marina, entretanto, explorada nas
próprias energias pelos agentes da perturbação que Moreira lhe
pespegara, definhava no leito. Trancara-se no quarto.
Doía-lhe a deslealdade que
cultivara, incessantemente, diante da filha de Neves, culpava-se pelo desastre que
arruinara Marita, a quem não tinha coragem de visitar ou rever. Ela que se vira, até
então, vitoriosa em todas as partidas,
sentia-se derrotada, à feição de contendor
arredado da arena pela própria imperícia. Chorava.
Ouvia vozes, declarava-se
perseguida por vultos estranhos. Fugia de todos, enfadada, nervosa. Se recebia
Nemésio ou Gilberto, caía em crise de pranto que os conselhos não removiam e nem os
medicamentos conseguiam sedar.
Escoados cinco dias de
apreensões, Nemésio telefonou para Dona Márcia, com mais clareza, rogando-lhe permissão
para um entendimento pessoal, no Flamengo, na manhã seguinte. Informado de
que o chefe da família Nogueira não poderia afastar-se do hospital, insistiu
com a interlocutora para que lhe
acolhesse a visita.
Marina andava abatida. Tencionava
levá-la a Petrópolis. Mudança de ares, renovação de paisagem. A menina
tombara em prostração, à face dos sacrifícios que lhe exigira a esposa morta.
Pretendia homenagear-lhe a dedicação, com a permanência de alguns dias no
clima serrano, mas, para isso, estimaria ouvir afamília, fazer planos.
Dona Márcia, aspirando a expor
respeitabilidade familiar, indagou se Gilberto iria também, como que temendo
acumpliciar-se em alguma ligação indesejável e prematura entre os jovens.
Nemésio, porém, apaixonado
bastante pela moça, não era capaz de penetrar a sutileza da esposa de Cláudio,
que assim se exprimia no intuito de fazer-se passar, diante dele, por severa guardiã
das virtudes domésticas; e a senhora
Nogueira, aguardando Gilberto para genro e
ignorando a intimidade entre a filha e Torres, pai, não atinava, em toda a extensão,
com aquele efusivo atestado de garantia moral que Nemésio, automaticamente, lhe
oferecia, pedindo-lhe confiança.
Estivesse tranquila. A moça
seguiria exclusivamente com ele euma governanta.
Mais ninguém.
Dona Márcia louvou a medida,
agradeceu.
Mesmo assim, a entrevista ficou
marcada para o dia seguinte.
No momento aprazado, acompanhamos
Nemésio ao Flamengo, como quem estuda ingrediente perigoso,
antes de aditá-lo a processo curativo em andamento.
A recepcionadora não esqueceu
particularidade alguma do bom tom, à
vista do luto em que os Torres haviam
entrado.
Enfeites discretos na sala,
hortênsias azuis, conjunto de peças em roxo para o café.
O negociante quedou
agradavelmente surpreendido. Cumprimentando a anfitriã bem-apessoada num modelo de
algodão transparente e suave, não sabia se a progenitora era uma segunda
edição da filha ou se lhe cabia
interpretar a filha por segunda edição dela.
Comodamente sentados, a palestra
começou pela troca de sentimentos recíprocos. Pêsames pela morte de
Dona Beatriz, pesar diante do acidente ocorrido em Copacabana. Moléstia de
Marita, cansaço de Marina. Devotamento de Cláudio pela filha hospitalizada. Elogio
a parentes.
Apontamentos ao redor das aperturas
da vida.
Dona Márcia, com requintes de
apresentação, comentava todos os assuntos propostos, com aprumo de
inteligência. Otimismo irradiante, finura de trato.
Nemésio, encantado, fumava e
sorria, admirando-lhe a personalidade.
Conversa vai, conversa vem, a
viagem a Petrópolis surgiu à tona e o diálogo mais vivo desenrolou-se entre
aquela que o visitante esperava para sogra e aquele com quem a interlocutora não
contava para genro.
— A senhora descanse —
recomendava Torres, eufórico —, Marina seguirá em minha companhia, tudo em ordem.
Creia que a mudança de ares é a terapêutica adequada. A pobrezinha merece
repouso, excedeu-se em trabalho...
— Não tenho objeções — acentuou a
genitora de Marina, estranhando o lume daqueles olhos percucientes
que lhe investigavam as reações —; no entanto, o senhor sabe... Sou mãe. Além
disso, tenho o marido ocupado com a outra filha que, apesar de adotiva, é para
nós um pedaço do coração... Uma viagem, assim, à pressa...
— Oh! mas não se preocupe, de
modo algum; afinal, não sou mais uma criança...
— Sim, mas o senhor compreende...
Enquanto sua esposa estava de cama, a permanência de minha filha em sua
casa era justa, mas agora... Sei que Marina não se encontra no convívio de
estranhos, o senhor para nós não é somente o diretor da firma em que ela trabalha, o
senhor para ela é também um amigo, um protetor, um pai...
— Muito mais do que isso!...
A senhora Nogueira estremeceu.
Que projetava dizer o entrevistador com semelhante afirmação, diante das
frases que articulara intencionalmente reticenciosas, aguardando que ele
lhe fornecesse alguma esperança positiva no enlace próximo dos filhos? Sem
querer, tornou a refletir, de escantilhão, nas suspeitas de Cláudio. Os passeios
e divertimentos do abastado comprador de imóveis com a menina, que ela
admitira fossem apenas motivos de consolação para um velho sofrido, assumiriam o
aspecto inconfessável que o marido lhes conferia?
«Muito mais do que isso!...»
Aquelas palavras, no tempero de ternura com que eram ditas, varavam-lhe a cabeça.
Acordavam-na para a realidade que
nem de leve pressentira. Ainda assim, não se dispunha a acreditar.
Impossível! impossível que Marina...
Num átimo, empregou toda a sua
curiosidade feminil no rico negociante, fisgando-o, de alto a baixo.
Excessivamente humana para não examinar
o jogo em que se encontrava sem conhecer
exatamente a posição que lhe competia na defesa do próprio interesse, descobriu
no viúvo, que supusera arcaico e patriarcal, atrativos marcantes, suscetíveis de
impressionar favoravelmente qualquer moça desprevenida. Conhecia Gilberto
em pessoa, classificando-o, aliás, como sendo um rapaz notável; entretanto,
concluía, ali, que o velho ganharia do moço em qualquer torneio de sedução. Ela que se
orgulhava de experiências avantajadas,
em matéria de ligações afetivas, receava
agora... Quis falar, inventando uma saída brilhante,
mas engasgava-se. Os olhos
conquistadores, na elegância daquele Brummel amadurecido e circunspecto,
perturbavam-na.
Tremeu, desconcertou-se.
Nemésio sorriu, atribuindo-lhe a
emoção ao contentamento de mãe que se garante, quanto ao futuro da
filha, e observou:
— A senhora não tem razões para
afligir-se. Marina é credora de minha melhor consideração.
Esteja convicta de que, nestes
dois meses de trato diário, ela vem desfrutando a maior liberdade em minha casa. É
hoje dona de nossa absoluta intimidade. Estou certo de que a senhora é dama de
nossa época, sem clausura e sem preconceitos.
Não se agastará, desse modo, ao
saber que Marina em meu lar faz o que
quer, gasta o que quer, dorme onde
quer, sem que ninguém a incomode...
Dona Márcia escutou as alegações com
deferência e inferiu que Nemésio lhe estimava a filha desinibida,
liberta. Mesmo assim, ficou sem saber onde Torres, pai,
diligenciava chegar, em se
reportando à independência que Marina usufruía... Não lograva perceber em que situação
o cavalheiro a desejava mais livre, se junto dele ou se junto do filho... Hábil o
suficiente para não se arriscar a
qualquer apreciação capaz de arruinar-lhe
vantagens futuras, recompôs as energias, esboçouum sorriso brejeiro e falou,
afável:
— Bem, eu não tenho uma filha
namorando, no tempo dos mártires; no entanto, gostaria que o senhor fosse mais
explícito...
E, deixando-a quase a
estatelar-se de pasmo, Nemésio copiou a doçura de um menino e confessou-lhe o próprio
romance. Amava-lhe a filha, aspirava ao matrimônio. Enlutara-se, mas, em
breves semanas, o tributo social desapareceria.
Que ela, Dona Márcia, conservasse
o segredo perante o marido. Rendera-se-lhe ao entendimento afetuoso e
extravasara o coração, solicitando-lhe auxílio.
Ante aqueles olhos dominados de
assombro, que ele interpretava por júbilo materno, relacionou parte da
fortuna que amontoara. Enumerou seis dos
melhores apartamentos que possuía,
alugados em condições excelentes,
salientou os negócios da imobiliária, cujos
lucros eram satisfatoriamente compensativos, embora
manejasse capitais alheios, a
juros módicos, para os empreendimentos de maior vulto.
A senhora Nogueira sentia-se
perplexa, esmagada.
Não sabia em que pensar, se no
inusitado da situação, se na sagacidade da filha. Reconhecia-se excedida em
astúcia, atirada para trás.
Em fração de segundos, imaginou a
posição de Gilberto. Como estaria o rapaz, arrebatado à outra?
Mulher experiente, conquanto, por
vezes, chegasse a conclusões tardias quanto ao esposo e à filha, em
matéria de inclinação e conduta, não se
enganava sobre as ligações que Nemésio
intentava esconder na conversação deleitosa. A inflexão apaixonada com que o
viúvo esmaltava cada frase, no momento
em que as flores no sepulcro da morta não
haviam emurchecido, dispensava para ela quaisquer circunlóquios. Aquele homem
lhe mencionava a filha, não na expectativa do admirador ingênuo, mas sim com a
certeza do amante consolidado.
A que estouvamentos se entregara
Marina, no lar dos Torres? — conjeturava, inquieta. Se empolgara o próprio
chefe, enredando-lhe o espírito nas teias de lamentável alucinação, que
procedimento adotara perante o jovem, alterando-lhe os rumos? Inferindo, porém, que as
qualidades de Nemésio, com os cabedais financeiros de que se seguiam,
não eram, em seu conceito, um partido
para desprezar, ouvia tudo,
imobilizando um sorriso complacente no rosto.
Quando se dispunha, no entanto, a
mergulhar no assunto,o telefone chamou.
A campainhada valeu-lhe por
desafogo. Intervalo providencial que lhe modificava o pensamento,
conferindo-lhe tréguas para analisar os episódios em curso.
Era o médico amigo, em aviso
confidencial.
Satisfazendo-lhe a solicitação,
formulada dias antes, participava-lhe a piora de Marita. Se desejasse vê-la com
vida, não atrasasse a visita. Cláudio não compreendia a gravidade do
problema e ainda sonhava com o
reerguimento da moça; entretanto, nele, cínico
amadurecido, já não havia lugar à esperança.
Reportou-se à peritonite, ao
processo renal, à caquexia, às feridas que haviam surgido das contusões...
Dona Márcia agradeceu e fez-se
pálida, a tal ponto, que Nemésio se viu forçado a correr de um lado para outro, a
fim de ampará-la. Inteirando-se do que
ocorria, ofereceu-se para conduzi-la até o
leito da filha. Explicou que usufruiria não somente a satisfação de acompanhá-la,
como também aproveitaria o ensejo para cumprimentar a jovem acidentada e
levar um abraço pessoal ao pai de
Marina, que considerava, antecipadamente,
um amigo e familiar.
Assustada, aflita, a senhora
Nogueira aceitou e, a breves instantes,
os dois se punham de automóvel, a caminho do
hospital, com as aparências de um casal elegante e feliz, rolando sobre o
asfalto para uma visita de cerimônia.