sexta-feira, 3 de maio de 2013
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
CAPÍTULO 6
Valendo-nos da condução, seguíamos
igualmente para o hospital, em objetivo de serviço.
Enquanto o automóvel chispava, a
senhora Nogueira fitava Nemésio ao volante, apreciando-lhe a sisudez aparente
e o porte desempenado. Inquietava-se consigo mesma, de vez que refletia
naquilo em que não queria pensar. À vista daquele tipo galhardo, indagava-se por que
razão Marina preferira o filho ao pai, se o genitor, cavalheiro dinheiroso e
simpático, era, em tudo, a pessoa capaz
de assegurar-lhe independência e posição.
De quando em quando, envolvia-lhe
o perfil numa olhadela mais comprida e concluía, de si para consigo, que
a juventude não tinha lógica.
Mais alguns minutos e penetramos
no estabelecimento, onde o par foi recepcionado pelo facultativo com
quem Dona Márcia se comunicara, momentos antes.
O médico, gentil, notificou ter
avisado Cláudio quanto à possibilidade
da surpresa, mas Dona Márcia
desconversou, para não dar ao pai de Gilberto a impressão de que se dispusera a
vir até ali pela primeira vez. Referiu-se à temperatura, comentou
particularidades do ambiente, qual se repetisse observações corriqueiras. E o clínico, longe
de perceber-se a servir de instrumento, respondia-lhe às perguntas calculadas,
atendendo-lhe, involuntariamente, aos fins em pauta.
Foi assim que, ao transpor a
entrada do aposento indicado, Nemésio guardava a convicção de acompanhar um
símbolo vivo de ternura materna.
Cláudio, abatido, acolheu, a seu
turno, os recém-chegados, entre sóbrio e atento. A princípio, o
desconforto íntimo... Depois, a
conformação. Sofria demais para escolher discutir e
aprendera o suficiente, naqueles dias de angústia, para inclinar-se a
reclamações. Aliás, ao facear com Nemésio, endereçou-lhe o olhar do homem atribulado que roga a outro
homem comiseração e socorro.
Recebeu-lhe o amplexo franco,
depois das apresentações promovidas pela mulher, e imaginou-se na condição
de um aluno em exame.
Torres, que ele conhecia tão bem,
conquanto a distância, figurou-se-lhe diferente. Sabia-o ostentando-lhe
a filha em noitadas vadias e vezes diversas sopitara o ímpeto de esmurrá-lo,
ao retirar-se humilhado de recintos alegres para não aguentar desacatos;
entretanto, agora lhe contemplava o rosto, imbuído de sentimentos novos.
Identificava-se num teste de compreensão e de tolerância. Num átimo, associou os ensinamentos
espíritas cristãos que lhe metamorfoseavam o íntimo com Marita em decúbito,
fixou Nemésio e Márcia, e deduziu que
não lhe competia julgar aquele homem que lhe explorava a
família. Mecanicamente recordou Jesus e a lição da primeira pedra...
Estabele eu confronto rápido e catalogou-se em nível inferior.
Torres entretinha-se com uma jovem que
lhe dava liberdade, e filha de outro
homem. Ele, porém, não vacilara em
abusar da própria filha, depois de encantoá-la na
sombra, através de embuste soez. Com que direito assumiria, ante a própria vítima
tombada, o papel de censor?
Indubitavelmente — concluía em
reflexões instantâneas —, amigos espirituais traziam-lhe o negociante
detestado, experimentando-lhe a renovação. E a ele próprio, também — considerou,
humilde — cabia o dever de sopesar as
próprias reações, categorizar-se tal qual
era, no fundo da consciência.
Naquela prova de segundos, volveu
o olhar para a esposa e não mais encontrou em Dona Márcia a inimiga cordial
de tantos anos. Aquele semblante embonecado por excessiva maquilagem, na
presença das concepções novas que passara a nutrir, mascarava um coração
insatisfeito, cujos desastres haviam sido provocados por ele mesmo. Exterminara-lhe os
sonhos, logo após o casamento. Recordou-se de como se enfadara, desapiedado,
da esposa, então menina cândida e espontânea, tão só por vê-la
disforme, na gravidez de que Marina sobreviera, e de como transferira, na direção de
Aracélia, os instintos de homem selvagem. Desde o choque em que se vira coagida a
criar duas filhas, em vez de uma, a personalidade real de Márcia desaparecera.
Desequilibrara-se. E ele, ao
invés de regenerar-se, recuperando-a, jamais regressara da caça de aventuras.
Como exigir contas da mulher, se devia acusar-se? Nada lhe impedia fugir do
auto exame, abraçando conversas triviais; entretanto, inferiu que não conseguiria
ausentar-se da própria alma. Mais justo esquadrinhar-se, suportar-se...
Percebeu que Nemésio e Márcia, expectantes, lhe estranhavam a atitude e, muito mais para não
incomodá-los que por subtrair-se a qualquer crítica, dirigiu o olhar para a filha
desfigurada, que somente as energias de Moreira conjugadas com a alimentação
artificial retinham no corpo físico, e falou para o genitor de Gilberto, com inflexão de
profundo sofrimento:
— Veja o senhor... Nossa filha
está muito mal...
Os recém-chegados fitaram,
atônitos, aquele cadáver que ainda respirava...
Sentiu-se Dona Márcia esmagada de
assombro, mesclado de piedade, mas reprimiu-se.
Torres, por sua vez, apertou os
dedos contra as palmas das mãos, num gesto peculiar de nervosismo. A moça
descarnada devolvia-lhe a imagem de Beatriz. Recuou, automaticamente,
procurando o pai de Marina a fim de
exprimir-lhe amizade, mas deparou com Cláudio,
de lenço ao rosto, tentando, debalde, sofrear o pranto que lhe escorria do queixo
hirsuto.
A senhora Nogueira fez as honras.
Conquanto abalada, não somente ao
consignar a de cadenciada pupila, mas igualmente ao testificar a
inesperada sensibilização do marido, controlou-se o bastante para falar com
desembaraço.
Doseou as verdades que ouvira do
médico, respeitando o pesar do esposo, recapitulou a versão do acidente
que ela mesma engenhara, para satisfazer aos amigos, e rogou desculpas pelo
traumatismo com que Cláudio se apresentava.
Confessava-se também machucada —
observou, polidamente —; contudo, ao ver o marido subjugado pelo desgosto,
não tivera outro recurso senão
reabilitar a resistência própria, a fim de que
não escasseasse comando à situação.
O esposo, em lágrimas copiosas,
compreendeu que ela mentia para impressionar e que enfileirava
frases bem-postas, no intuito de dar a entender que não arredava pé do hospital; no
entanto, não lhe rebateu as afirmativas.
Limitava-se a chorar em silêncio.
Em lugar da indignação a que se rendia,
em outros tempos, quando a via fingir,
penalizava-se agora. Imaginava-se na
posição do viajor que houvesse espalhado
farpas em todo o caminho,por onde seria fatalmente impelido a
regressar...
Confirmando-lhe as impressões,
Dona Márcia levantou-se e, contendo a repugnância que o cheiro
desagradável do leito lhe causava, ajeitou os travesseiros da filha inanimada, derramou
algumas palavras de carinho e, verificando que Nemésio se mantinha constrangido
no ambiente que as exalações do processo renal tresandava, conclamou ao
regresso.
Não seria licito reter o senhor
Torres por mais tempo, alegou. Quanto a ela, que
Cláudio a esperasse. Voltaria mais tarde.
Despedidas e protestos de
solidariedade surgiram à tona.
O irmão Félix, presente, seguira
o encontro em todas as minúcias e
ponderou que se eu volvera ao
estabelecimento, em objeto de serviço,pela mesma razão me aconselhava o retorno ao lar de
Nemésio, a fim de socorrer Marina, cujo problema obsessivo se agravava. Conviria,
porém — acrescentou —, acompanhar ambos os visitantes, de maneira
estudar-lhes as reações, com fins de auxílio.
Aboletei-me no carro para a
volta.
Torres, dominando-se, escolheu
caminho mais longo, em marcha lenta.
A tortura de Nogueira
suscitava-lhe falsas impressões. Cotejando-se com ele, qualificava-se por homem de rija
têmpera que, dias antes, assistira à morte da própria companheira, sem
quebrar-se, ao passo que o genitor de Marina se derretia ao pé de uma filha adotiva, cuja
situação, naquela hora, pedia a tranquilidade do necrotério.
De vez em vez, deitava olhares
furtivos para Dona Márcia, supondo compreendê-la melhor. A mãezinha
daquela que pretendia desposar, perfeitamente comparável à filha em beleza e
inteligência, não seria feliz junto daquele cavalheiro chorão.
O comerciante esperto retomara as
características próprias. Apouco e pouco, olvidou a menina acidentada e o
bancário arrasado que classificava por maricão e passou a exaltar o encantamento
do dia em curso, qual se aspirasse a
despertar Dona Márcia para a convicção de
que se achava no auto, sob o patrocínio de um companheiro compreensivo e
vigoroso, capaz de assegurar-lhe a euforia. Indagou se ela frequentava os passeios
cariocas mais estimáveis. Referiu-se aos almoços suculentos das Paineiras, aos
piqueniques da Pedra do Conde, aos banhos em Copacabana, à vista inigualável
no Pico da Tijuca nos dias ensolarados,
onde o binóculo parecia trazer a
restinga de Marambaia para dentro dos olhos...
Dona Márcia conhecia todos os
sítios mencionados, quanto a palma das mãos; contudo, fez-se de ingênua.
Sabia, de experiência própria, que os homens da casta de Nemésio preferem as mulheres
frágeis e acanhadas, que se voltem para
eles com a bisonhice das criaturas
necessitadas de proteção. Declarou nada conhecer dos pontos guanabarinos mais frequentados,
além do Pão de Açúcar, que visitara numa excursão, aliás muito
rápida, junto das filhas ainda pequeninas.
Afetando-se novata, em matéria de
experiências romanescas, informou que se casara muito nova e que, desde
então, a existência lhe fora um suplício entre escovões e panelas, com a
obrigação de tolerar um marido resmelengo, segundo ele próprio, Nemésio, pudera
verificar. Que lhe avaliasse o martírio de mulher acorrentada a um matrimônio
infeliz pela mostra de Cláudio choramingas, a recebê-los sem uma palavra de
cordialidade e de apreço.
Torres gostou das definições.
Riu-se. Falou em psicoses. Reportou-se a neurologistas distintos.
Dona Márcia debuxou um sorriso
malicioso, fitou-o demoradamente, e disse que era muito tarde para tratamentos,
que havia muito tempo vivia separada do esposo,embora continuassem sob o mesmo
teto.
Acostumara-se a sofrer, declarava
suspirando. Nemésio entendeu a insistência daqueles olhares e experimentou
recôndita satisfação ao averiguar-se requestado.
A presença da futura sogra não
lhe desagradava. Não fosse Marina —
pensou —, e não hesitaria atraí-la a
convívio mais íntimo. A manhã toda, na companhia daquela mulher que reputava
formosa e inteligente, constituíra-lhe um tônico.
Esquecera-se, distraíra-se. Mesmo
assim, não julgou conveniente precipitar-se.
Puxou o relógio e, verificando
que faltavam apenas cinco minutos para
meio-dia, convidou-a para o almoço.
Conhecia excelente restaurante no Catete.
A senhora Nogueira aceitou. E a
refeição transcorreu alegre.
Esforçava-se a convidada em
pressentir as escolhas do anfitrião, de modo a compartir-lhe os pratos
prediletos. Sóbria, acomodou-se à água mineral e, no cardápio, comeu pouco. Em
compensação, pensou muito e falou o possível, no intuito de cativar o companheiro.
Em dado momento, refletiu nos riscos a que Marina se expunha e, abemolando a
voz, provocou a deixa.
Prevendo a despedida próxima,
asseverou não desejar o encerramento daquele encontro feliz sem agradecer-lhe
o devotamento à filha. Além disso, rogava-lhe permissão para assinalar que a
moça era demasiado jovem, que temia pela inexperiência dela...
Torres, lisonjeado, reiterou a
confiança na escolhida, não sem um gesto significativo para a
interlocutora, como a dizer-lhe que,embora lhe aguardasse a filha, no lar, não queria que a
sogra lhe olvidasse a dedicação de amigo certo. A esposa de Cláudio apanhou a
sugestão no ar e asseverou, de modo galante,
que, na qualidade de mãe abnegada, anelava para a filha a felicidade que o
mundo não lhe pudera conceder.
Entre ambos, o contrato afetivo
não apresentava qualquer dúvida, apesar de todos os itens do acordo se
evidenciarem por entrelinhas e alusões,
suspiros e reticências.
Quando o genitor de Gilberto
disse adeus, no Flamengo,retomou o volante admitindo-se visitado mentalmente
pela imagem da senhora Nogueira. Fugindo-lhe à influência, opunha-lhe a figura
da filha. À face disso, entrou em casa, decidido a encontrar-se com Marina, de
pronto.
Recolhido ao quarto particular,
tomou o pijama, calçou os chinelos silenciosos e, absorto, andou, de manso, na
direção do compartimento, em que
pretendia surpreendê-la, comunicar-lhe
impressões e, sobretudo, dissipar os pensamentos intrometidos que Dona Márcia lhe
suscitara.
Espalmou, de leve, a maçaneta e
abriu a porta, sem ruído; no entanto, fez força para não cair, garroteado de
assombro. Gilberto e a moça beijavam-se em amplexo apaixonado, efusivo. De costas
para a entrada, o filho não lhe assinalou a presença; todavia, Marina, a situar-se de
frente, cruzou o olhar com o dele, viu-lhe o rosto crispar-se, esverdiado, e
desmaiou.
A cena foi rápida.
Retirou-se Nemésio, à maneira de
um cão espancado, arrastando-se em terrível asfixia.
Dificilmente, ganhou o quarto e
precipitou-se no leito, a sentir-se arrasado de sofrimento.
Ponderações contraditórias
vararam-lhe o crânio - Como deslindar o enigma doloroso? Teria Gilberto abusado
da menina enfraquecida ou dividia-se a jovem pelos dois? Intentou erguer-se,
mas, como se houvesse recebido uma pedrada por dentro do coração, doía-lhe o
peito, suava frio, sufocava-se.
Decorrido um quarto de hora, Gilberto,
insciente do vulcão de lágrimas que o pai se empenhava a esconder, veio
participar-lhe que Marina piorara, depois de ligeiro delíquio. Voltara da síncope,
francamente possessa. Gritava, chorava, mordia-se, feria a si mesma...
Nemésio, porém, pousou nele os
olhos magoados e pediu-lhe comandar as medidas necessárias. Chamasse o
médico, telefonasse para o Flamengo e insistisse com a genitora para
vir, e explicou, não sem esforço, que ele também tornara da rua,
incompreensivelmente abatido...
Aplicando-me a socorrer Marina,
reconheci a obsessão instalada. Os vampirizadores que Moreira
trouxera, coadjuvados por outros, haviam dominado, de todo, a jovem desprevenida. O
choque experimentado esbarrondara-lhe as últimas resistências. Marina, sob o jugo
dos malfeitores desencarnados, jazia hipnotizada, vencida...
Em breve tempo, Dona Márcia, em
pessoa, renteava com a filha, que a recebeu, dementada, irreconhecível.
O médico optou pela
hospitalização imediata, que Nemésio declarou patrocinar com a impassibilidade de quem
cumpre um dever. Dona Márcia, por desencargo de consciência, entendeu-se com
Cláudio pelo fio, suavizando a notícia.
Inteirava-o de que a filha se extenuara em
trabalho excessivo, arrojara-se a grande fadiga mental e o facultativo indicava ligeira
estação curativa, numa clínica de repouso. Ela, com a
responsabilidade de mãe, não
opunha qualquer embargo;entretanto, não lhe seria lícito deixar de ouvi-lo,
aguardava-lhe a opinião.
Nogueira não contraditou e Dona
Márcia deu-se pressa em confiar Marina a estabelecimento psiquiátrico de
nomeada, cujos portais a menina transpôs, inspirando cuidado e compaixão.
Regressando à bela vivenda,
depois de dois dias, encontramos Gilberto atarantado e infeliz; contudo,
mais dedicado à moça que antes. Nemésio,
porém, ruminava a antiga concepção do
amor como sendo chinelo no pé e, apenas decorridas quarenta e oito horas
sobre o acontecimento, já permutava confidências com a senhora Nogueira, em torno
dos fatos novos, e ambos,na maior intimidade, já haviam encontrado motivos para
desculpar aquilo a que chamavam doçuras
da mocidade», cultivando consolações
um no outro.