quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ESTUDO DO LIVRO ENTRE A TERRA E O CÉU - CAP. 28 - ORADOR ALEXANDRE X. CAMARGO



28 – Retorno

Preocupados com o caso de Júlio, no dia imediato indagamos do orientador sobre a planificação do serviço reencarnatório, ao que Clarêncio informou, conciso:
– O problema é doloroso, mas é simples. Trata-se tão somente de ligeira prova necessária. Júlio sofrerá o aflitivo desejo de permanecer na Terra, com o empréstimo do corpo físico a prazo longo; entretanto, suicida que foi, com duas tentativas de autoaniquilamento, por duas vezes deverá experimentar a frustração para valorizar com mais segurança a bênção da vida terrestre.
Depois de estagiar por muitos anos nas regiões inferiores de nosso plano, confiando-se inutilmente à revolta e à inércia, já passou pelo afogamento e agora enfrentará a intoxicação. Tudo isso é lastimável, no entanto...
E mostrando significativa expressão fisionômica, ajuntou:
– Quem aprenderá sem a cooperação do sofrimento?
– Penso, contudo, no martírio dos pais... – considerou Hilário, hesitante.
– Meus amigos – falou o Ministro, generoso –, a justiça é inalienável.
Não podemos iludi-la. Com o desequilíbrio emocional de Amaro e Zulmira, no pretérito, Júlio arrojou-se a escuro despenhadeiro de compromissos morais e, na atualidade, reabilitar-se-á com a cooperação deles. Ontem, o casal, por esquecê-lo, inclinouo à queda; hoje, por amá-lo, garantir-lhe-á o soerguimento.
A palestra esmoreceu, talvez porque o assunto nos compelisse a severa meditação.
Hilário e eu, refletindo na absoluta harmonia da Lei, calamonos cismarentos, à espera da noite, quando integraríamos a caravana da amizade que restituiria a criança enferma ao ninho antigo.
Com efeito, avizinhava-se a madrugada, quando alcançamos a residência do ferroviário, envolvida em sombra.
Odila trazia nos braços o filho irrequieto e gemente, enquanto o Ministro, Irmã Clara, Blandina, Mariana, Hilário e eu rodeávamos ambos, em silêncio.
Penetramos a sala humilde.
Qual se houvera sorvido invisível anestésico, o menino emudeceu.
Junto de nós, o orientador, solícito, explicou:
– O doentinho encontra grande alívio em contacto com os fluidos domésticos. O reequilíbrio da alma no ambiente que lhe é familiar no mundo constitui base firme para o êxito da reencarnação.
Não prosseguiu, contudo.
Irmã Clara fez expressivo aceno e o nosso instrutor penetrou, sozinho, a câmara conjugal, sem dúvida para certificar-se quanto à conveniência de confiarmos o pequenino à sua futura mãe.
Transcorridos alguns minutos, Clarêncio veio ao nosso encontro, convidando-nos a entrar.
Enternecedor espetáculo desdobrou-se à nossa vista.
Zulmira em Espírito estendeu-nos braços fraternos. Estava bela, radiante de alegria... E, quando recebeu Júlio, conchegandoo ao próprio peito, pareceu-me sublimada madona, aureolada por maternidade vitoriosa.
Odila chorava.
Clarêncio ergueu os olhos para o Alto e orou, em voz comovedora:
– Senhor, abençoa-nos!... De almas entrelaçadas na esperança em teu infinito amor e no júbilo que nasce da obediência aos teus desígnios, aqui nos achamos, acompanhando um amigo que volta à recapitulação! Dá-lhe forças para submeter-se resignado à cruz que lhe será a salvação!... Ó Pai, sustenta-nos na grande estrada redentora em que o obstáculo e a dor devem ser nossos guias, fortalece-nos o bom ânimo e a serenidade e modera-nos o coração para que saibamos servir-te em qualquer circunstância!... Sobretudo, Senhor, rogamos-te auxilies a nossa irmã que investe sagradas aspirações femininas no apostolado maternal! Santifica-lhe os anseios, multiplica-lhe as energias para que ela se honre contigo na divina tarefa de criar!...
A palavra do Ministro, saturada de paternal amor, desse amor que nos atinge o espírito até à fonte oculta das lágrimas, levaranos à comoção.
Zulmira, todavia, sensibilizou-nos ainda mais. Atraída pelo poder magnético da oração, avançou com o menino colado ao regaço até junto de nosso orientador, e ajoelhou-se.
Aquela humildade ingênua lembrava-me a narração evangélica da viúva de Naim com o filho morto aos pés do Cristo e não pude conter o pranto que me vertia do coração.
Igualmente tocado por aquele gesto espontâneo de confiança e fé, o Ministro voltou-se para ela e afagou-lhe a cabeça, transfigurado.
Algo de sublime devia ter acontecido na alma daquele missionário da abnegação que me habituara a querer com extremado carinho.
Jorro estelar descia da Altura, inflamando-lhe a fronte e da destra que acariciava a irmã genuflexa, projetavam-se raios de safirina luz...
Maravilhosos instantes de expectação correram sobre nós.
Em seguida, sustentando-a nos braços, Clarêncio reergueu-a, conduzindo-a ao leito com a criança.
Zulmira, desde então, afigurou-se-nos integralmente concentrada no filhinho, que se enlaçou a ela, instintivamente, à maneira de um molusco a acomodar-se na própria concha.
Júlio dormira placidamente, enfim.
Abraçado ao colo materno, parecia fundir-se nele.
De outras vezes, acompanhara trabalhos preparatórios de reencarnação, que exigiam concurso ativo de técnicos do assunto e de benfeitores da vida superior, mas ali o fenômeno era demasiado simples. O corpo sutil do menino como que se justapunha aos delicados tecidos do perispírito maternal, adelgaçando-se gradativamente aos nossos olhos.
Irmã Clara e as companheiras oscularam a futura mãezinha, que tentava recuperar o corpo denso, conduzindo consigo o pequeno confortado e desfalecente e retiramo-nos, tomados da alegria que nasce, pura, da obrigação bem cumprida.
Odila encarregou-se da assistência a Zulmira, e Clarêncio prometeu seguir, de perto, os serviços naturais daquela gravidez incipiente.
Quando nos vimos, de novo, a sós, as indagações surgiram, imperiosas.
O Ministro, com a paciência admirável de todos os dias, tomou a palavra e esclareceu:
– A reencarnação no caso de Júlio não reclama de nossa esfera cuidados especiais. É uma descida experimental ao campo da matéria densa, com interesse tão somente para ele mesmo e para os familiares que o cercam.
Todavia, se a existência do filho de Amaro estivesse destinada, no momento, a influenciar a comunidade, se ele fosse detentor de méritos indiscutíveis, com responsabilidades justas nos caminhos alheios, o problema seria efetivamente outro. Forças de ordem superior seriam fatalmente mobilizadas para a interferência nos cromossomos, garantindo-se o embrião do veículo físico de maneira adequada à missão que lhe coubesse...
– E se o reencarnante fosse um homem de larga intelectualidade?
– inquiriu Hilário, estudioso.
– Merecer-nos-ia cautelosa atenção na estrutura cerebral, para que lhe não faltasse um instrumento à altura de seus deveres na materialização do pensamento.
– E se fosse um médico? um grande cirurgião por exemplo? – perguntei por minha vez.
– Receberia assistência aprimorada na formação do sistema nervoso, assegurando-se-lhe pleno domínio das emoções.
Porque não mais indagássemos especificamente, o instrutor continuou:
– Contudo, em milhares de renascimentos, na Terra, os princípios embriogênicos funcionam, automáticos, cada dia. A lei de causa e efeito executa-se sem necessidade de fiscalização da nossa parte. Na reencarnação, basta o magnetismo dos pais, aliado ao forte desejo daquele que regressa ao campo das formas físicas.
De retorno ao corpo físico, estamos invariavelmente animados de um propósito firme... seja o anseio de alijar a dor que nos atormenta, a aspiração de conquistas espirituais que nos facilitem o acesso à Vida Superior, o voto de recapitular serviços mal feitos ou o ideal de realizar grandes tarefas de amor entre aqueles a
quem nos afeiçoamos no mundo. De modo geral, a maioria das almas que reencarnam satisfazem à fome inquietante de recomeço.
Quem não atendeu com exatidão ao trabalho que a vida lhe delegou, depressa se rende ao impositivo de repetição da experiência e o ressurgimento na luta física aparece por bênção salvadora.
Milhões de destinos se reestruturam dessa forma, qual se refaz uma grande floresta. A sementeira cresce, estimulada pelo magnetismo do solo; a existência corpórea germina de novo, incentivada pelo magnetismo da carne...
Ante a pausa ligeira do Ministro, Hilário perguntou, respeitoso:
– O seio maternal, desse modo...
Nosso mentor completou-lhe a definição, respondendo:
– É um vaso anímico de elevado poder magnético ou um molde vivo destinado à fundição e refundição das formas, ao sopro criador da Bondade Divina, que, em toda a parte, nos oferece recursos ao desenvolvimento para a Sabedoria e para o Amor.
Esse vaso atrai a alma sequiosa de renascimento e que lhe é afim, reproduzindo-lhe o corpo denso, no tempo e no espaço, como a terra engole a semente para doar-lhe nova germinação, consoante os princípios que encerra. Maternidade é sagrado serviço espiritual em que a alma se demora séculos, na maioria das vezes aperfeiçoando
qualidades do sentimento.
A palestra prosseguia valiosa, mas o tempo nos convocava a outros misteres e, em razão disso, fomos constrangidos a interromper o nosso entendimento, em torno do que havíamos visto.