sexta-feira, 16 de novembro de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
Capítulo 1
Quase cinco da manhã, quando nos
vimos na intimidade dos Nogueiras.
A casa jazia quieta. Peças mudas,
silêncio.
Agitava-se, porém, Dona Márcia,
sob a colcha leve, cansada de vigília. Varara a noite em aflição. Na penumbra do
quarto, apoiava o cotovelo no travesseiro e a cabeça na mão, de pensamento
longe. Tinha os olhos empapuçados de chorar. A filha adotiva não voltara.
Ansiosa, esperava que o dia se levantasse... Telefonaria para a residência dos Torres,
para saber do regresso de Marina. Se preciso, chamaria Teresópolis. Queria
comunicar-se com alguém, desentranhar-se. Sentia medo, o coração palpitava
catástrofe.
Consultei-a mentalmente,
procurando noticias de Cláudio.
Alcancei-lhe a resposta
inarticulada. Supondo reconsiderar os sucessos da noite, passou a lembrar-lhe o
retorno, horas antes, totalmente embriagado. Chegara tateando paredes, esbarrando com
os móveis. Inferira que ele tentara
afogar o remorso em copázios de uísque. Ouvira-lhe os vômitos, escutara-lhe as descomposturas à porta, mas
trancara-se, precavida. Carraspana e ressaca rematando a criminosa aventura...
Não desejava cenas.
Súbito, quebrou a linha de
reflexões em que penetrara. Repeliu-me a influência, convicta de estar reafirmando
para si mesma que atingira o ponto final da tolerância... Nada mais com
Cláudio.
Convertera a mágoa em nojo.
Aspirava a nova atitude, suspirava por desquitar-se, fugir...
Deixamo-la engolfada nas
alegações negativas, buscando o aposento dos fundos. Nogueira aí se despejara
em cama de solteiro, completamente equipado, sem alijar nem mesmo o paletó.
Estirava-se de lado, a expelir
saliva grossa pelo canto da boca,
ressonando, tranqüilo, e, com ele, o
vampirizador, relaxado sob os efeitos do álcool. Ambos largados, embrutecidos.
Demorava-me na inspeção, quando a
campainha do telefone retiniu.
Com certeza, irmão Félix obtivera
meios de abrir-me alguma porta, a fim de que me fosse possível atuar,
favoravelmente. Imprescindível atacar o problema, advogar a proteção de que fora incumbido.
Tornei à sala.
Dona Márcia, em baby-doll, punha
o fone ao ouvido, carregada de escuros pressentimentos.
A voz de um homem simples
repontou no auscultador:
— Estou falando com o “seu”
Cláudio Nogueira?
— Na casa dele.
— Ele está?
Dona Márcia reconhecia de todo
impraticável o ensaio de qualquer conversação com o esposo, escornado àquela
hora, e respondeu, positiva:
— Não, não está.
— Quero falar com ele ou com a
madama.
A interlocutora, experiente
demais em trotes e adestrada no jogo das conveniências sociais, pressupôs
estar em contacto com algum novo despropósito do marido, e indagou, prudente:
— Com quem estou falando?
— Com Zeca, lixeiro. Estou em
Copacabana, preciso dar notícia de um desastre.
— Que desastre?
— A senhora é a dona da casa?
— Não sou, mas trabalho aqui. Sou
empregada...
Dona Márcia receava cair em
complicações, na hipótese de transpor as raias do anonimato, e, a vista disso,
antes que o desconhecido revidasse, acrescentou:
— Os patrões estão ausentes, mas
posso dar o recado.
— Olhe — gaguejou o informante —,
o caso é com Dona Marita, a moça da loja.
- Que há? diga, por favor, que
há?
A senhora Nogueira sentiu-se
traspassada de angústia, enquanto, de minha parte, concluía que Félix
angariara o concurso de um lixeiro prestimoso para transmitir a notícia, preparando
o terreno que me cabia encaminhar ao plantio da compaixão.
— Diga aos patrões que ela foi
atropelada...
— Onde? como? quando?
— Bem, eu não sei como foi, mas
vi que era ela...
— Agora?
— Há uma boa meia hora, aqui
perto, na Avenida Atlântica...
— Está aí?
— Não está, a ambulância já
levou.
— Mas o senhor tem certeza?
— Tenho toda a certeza... Ela
estava sem bolsa, ninguém a reconheceu... Mas eu conheço Dona Marita, foi
sempre amiga de minha mulher desde que veio para cá. Minha mulher é empregada no
edifício da loja... Coitada de Dona Marita, moça tão boa! Ela é que conseguiu
lugar para minhas duas filhas na escola!...
— Mas, escute — Dona Márcia
cortou as referências, terrivelmente chocada —, como está ela?
— Dizem que morreu...
Embora calejada contra as
emoções, a esposa de Cláudio abandonou o fone e afastou-se, pálida.
Arremessou-se à cama e agarrou a
própria cabeça, entre as mãos, julgando enlouquecer...
— Morta! Marita morta! —
refletiu, atribulada.
Recordou o ultraje que a pobre
menina experimentara naquela noite que o
dia nascente esfumara, qual se
expulsasse um pesadelo, e a mente divagou... Aracélia, a servidora e amiga...
Vinte anos antes. O suicídio!...
E agora a filha, na mesma tragédia, com o mesmo homem...
Decerto, Marita, envergonhada,
procurara a morte. Inexperiente, sucumbira.
Ajustava argumentos por dedução.
Crescina falara-lhe de encontro com Gilberto, no entanto, apanhara Cláudio em
desconcerto flagrante. Tudo indicava a intromissão dele em algum arranjo dos jovens,
para infligir à filha o imperdoável insulto...
Indubitavelmente, a desventurada
menina preferira morrer...
Nesse entretempo, intervim.
Assimilei-lhe os pensamentos de simpatia e fi-la meditar nas tribulações de
Marita, dentro da noite, esforçando-me por incliná-la à compaixão... Largasse o marasmo,
sacudisse Cláudio, chamasse,
implorasse... Se o marido não estivesse em
condições de compreendê-la, que ela própria saísse à rua... Procurasse a moça...
Telefonasse à Polícia, refletisse nela, como sendo sua própria filha... Corresse ao
Pronto Socorro da Zona Sul, inquirisse funcionários, ouvisse médicos, visitasse a
morgue... Alguém auxiliaria, encontraria a criatura que a Providência Divina lhe
pusera nas mãos... Quem saberia? Talvez que ela ainda estivesse nas raias do fim
a esperar-lhe as mãos piedosas, como quem
aguarda uma bênção!...
Dona Márcia ouviu mentalmente. Ao
recolher-me as sugestões, imaginou a filha estendida no necrotério,
comoveu-se e chorou...
Entretanto, a senhora Nogueira
não era pessoa que renunciasse a peso e medida, em matéria de questões
sociais e domésticas. Reagiu para logo, crendo-se piegas. Não queria afundar-se em
sentimentalismo, confessou, na suposição de que falava consigo mesma. Era
necessário sopesar prós e contras.
Do pesar ao cálculo, mediaram
apenas alguns instantes.
Efetivamente, lastimava Marita e
enojava-se de Cláudio, monologou,
todavia, era mãe. Nada de alhear-se ao
destino da filha. Marina aprumava-se. Os Torres eram ricos, talvez riquíssimos.
Ambas as moças disputavam
Gilberto. Afinal, a morte de Marita surgia por solução. Assim que pudesse chamar
o esposo a brios, combinariam plano certo. Levantariam a hipótese de
acidente, inventariam versão plausível. Ela própria afirmaria que concedera à jovem
permissão para pernoitarem casa de parente enfermo, recomendando-lhe o
regresso tão cedo quanto fosse possível para a obtenção de notícia urgente.
Indispensável maquinar situações,
engenhar detalhes. Os chefes da loja, amigos de Marita, se
interessariam pelos fatos. A imprensa tomaria atenção. Cabia-lhe preparar-se a
fim de facear repórteres e fotógrafos. Pensou no modelo azul com que se apurava na representação a
funerais e vasculhou a memória para saber
onde colocara, distraída, os
óculos escuros.
Quando a manhã se adiantasse,
despertaria o esposo, com vista ao ajuste.
Conversariam seriamente. Até lá,
fantasiaria a história convinhável ao
público, em função da felicidade e do futuro
de Marina. Se a outra estava morta, para que preocupar-se? Importava-lhe agora
a filha, somente a filha... E, depois que a filha se casasse.. nada de Cláudio. Não se
sentia inútil, mas andava cansada de dar no batente, suportando inibições e
contrariedades pôr um esposo que, desde muito, se lhe fizera detestável. Não se
escravizaria. Recebera um convite de Selma, companheira de infância, para
negócio que considerava lucrativo, na Lapa. Na frente um café, acompanhado de
aperitivos e guloseimas e, nos fundos, quartos de aluguel...
Reconhecendo que Dona Márcia se
imobilizava, mentalmente, em digressões esconsas, tornamos à presença de
Félix para a obtenção de roteiros precisos.
Acomodada num leito de
emergência, Marita figurava-se em coma.
Félix, assistido agora por dois
médicos desencarnados, em serviço na grande instituição socorrista, se
mantinha sereno, apesar da tristeza que lhe velava o semblante.
Acolheu-me, paciente. Ouviu-me.
De posse das informações de que
me fizera mensageiro, recomendou-me esperá-lo alguns minutos. Sairíamos,
à cata de reforço.
Enquanto isso, auscultei a jovem
acidentada, que jazia inconsciente, em terrível depressão.
Escassas reações dos centros
nervosos, anoxemia, sensíveis alterações
dos capilares, lesões no peritônio.
Os esfincteres descontrolados davam
passagem a líquidos e excrementos que
empastavam a veste.
Félix mobilizou as providências
cabíveis e rogou aos colegas desencarnados nos substituíssem por instantes.
Demandamos a residência de
Cláudio.
A caminho, notei que o benfeitor,
em silêncio, adensava a própria forma, transfigurando-se na
apresentação. A ocorrência, que eu conseguia apenas depois de paciente elaboração mental,
obtinha-a Félix com esforço ligeiro. Rápidos momentos e imprimiu ao corpo
espiritual novo ritmo vibratório.
O instrutor assumira as
características de um homem vulgar.
Por que a transformação?
— André — respondeu,
assimilando-me os pensamentos —, ninguém pode fazer tudo senão Deus. Você é
também médico e não ignora que, em certas ocasiões, é imperioso pedir
remédio ao pilriteiro. Na Terra, às vezes, para socorrer um santo é necessário dosar um
veneno. Marita, em súbita decadência física, precisa agora dos préstimos de
alguém que a ame infinitamente. Chegou a hora de esmolar para ela o socorro dos
que a feriram amando...
A voz do amigo carregava-se de
pesar; contudo, não nos era possível comentar a filosofia que enunciava, de vez
que atingíramos o prédio em que se dependurava o ninho dos Nogueiras, banhado
pelo sol recém-vindo.
Subimos.
Qual aconteceu comigo na véspera,
o instrutor bateu à porta semicerrada.
Após reiterados chamamentos,
Moreira veio atender, como qualquer ser humano estremunhado.
Não me via, porquanto de tempo
não dispusera eu para a metamorfose necessária, mas, renteando com
Félix, desenrolou comprida fieira de insultos, que o benfeitor recebeu com humildade.
Quando terminou, algo desenxabido
pela ausência de qualquer resposta que lhe alimentasse a ira gratuita, Félix
comunicou-lhe o acidente. Sabia-o interessado na proteção da moça, rogava-lhe
amparo. Diante da incredulidade com que era acolhido, solicitou-lhe fizesse a
gentileza de verificar se amenina amanhecera no lar.
Moreira correu ao interior e
voltou, coçando a cabeça. Sim, atenderia ao apelo, mas não despertaria o dono da
casa enquanto não averiguasse a realidade.
Carrancudo, ladeou o instrutor,
sem dizer palavra, do Flamengo ao estabelecimento de socorro
público, mas, topando a moça, entregue à miserabilidade orgânica, o peito
se lhe explodiu numa torrente de
lágrimas, semelhante a rocha que se
partisse de repente para revelar uma fonte.
Rodou sobre os calcanhares e
arrancou-se qual flecha.
Félix, confortado, explicou que,
pelo visto, Cláudio não tardaria, informando-me de que, segundo lhe era lícito
ajuizar, Marita conseguira pequena moratória. Mais alguns dias no corpo amarfanhado,
quinze a vinte no máximo... Tempo de meditação, preparo valioso ante a vida
espiritual... O cérebro seria protegido, mas não recuperado. Desorganizara-se.
Dentro de algumas horas, a moça poderia
pensar e ouvir com regularidade, reaver
alguns recursos da sensibilidade e enxergar imprecisamente; entretanto, não
mais contaria com o centro da fala.
Naquele estado, aditou ele, permaneceria
facilmente, na esfera física, por muito tempo ainda, mas o peritônio sofrera contusões de
efeitos irreversíveis. Não valeriam antibióticos, por maior fosse a carga. Ainda assim,
sentia-se reconhecido aos supervisores espirituais, que haviam advogado
a pequena dilação. As horas finais ser-lhe-iam preciosas. Desfrutaria o ensejo
de aprontar-se para a renovação, enquanto que Cláudio, Márcia e Marina talvez
reconsiderassem caminhos.
Arrecadava-lhe o otimismo,
comovidamente. Transcorridos pouco mais de cinquenta minutos, Cláudio,
seguido por médico que se lhe afeiçoara à família e que conhecia Marita, desde muito,
deu entrada no posto de assistência. Márcia, sob a pressão de Moreira e
interrogada pelo marido, liberara as informações de que
dispunha.
O facultativo recém-chegado
deixou o bancário no vestíbulo para efetuar a inspeção, identificando a menina
sem maiores dificuldades. Feito isso, tomou providências, junto aos colegas,
para que a Jovem fosse imediatamente transferida para o Hospital Central dos
Acidentados, com vistas ao tratamento urgente e minucioso. E depois de ligações
telefônicas, no preparo da instalação necessária, determinou as medidas inadiáveis.
Que limpassem Marita, que se lhe purificasse o ambiente, que mesmo acreditada em
coma fosse tratada com o máximo apreço.
Seja dito, no entanto, que não se
registrara, ali, qualquer desleixo. As condições precárias da moça exigiam
repouso, quietação. Justo observá-la, antes de qualquer alteração suscetível de
agravar-lhe os constrangimentos.
Com efeito, iniciada a laboriosa
remoção que Cláudio e Moreira seguiram, de longe, a cabeça, pendida para
trás, impeliu o sangue a movimento
retrógrado e surgiu a possibilidade de
asfixia.
Félix controlou, quanto pôde, as
mãos dos condutores, e, tão logo a vimos ajustada em novo leito, vali-me
do socorro magnético de profundidade que as circunstâncias exigiam.
Sentei-me, de maneira a guardar aquele
corpo abatido em meus braços, envolvendo-o no meu
próprio hálito, numa operação que nos permitiremos nomear aqui por
adição de força, cujos resultados se destacam surpreendentes, quando a criatura
retida no envoltório físico se mostra
nos últimos lances da resistência.
Nesse ínterim, Félix aconselhou
que eu me adensasse na apresentação, a fim de que Moreira me enxergasse os
exercícios. Conservava a esperança de vê-lo oferecer-se para manter a
respiração da moça em boa ordem.
Orei, empenhando-me na consecução
do objetivo, e quando. Nogueira e o acompanhante vararam a porta do
quarto em que a administração nos localizara, o vampirizador deitou-me olhar
espantadiço.
Cambalearam sensibilizados,
aflitos...
Incoercível emoção me tomou a
alma.
Cláudio abeirou-se, trêmulo, da
filha e rompeu em soluços.
Tanto quanto me era dado
perceber, aquela hora significava para ele doloroso balanço de consciência.
Instintivamente, tornou à
infância e à mocidade... Lembrou as leviandades primeiras.
Irreflexões do passado
corporificaram-se-lhe na memória. Enfileirou na imaginação os desvarios sexuais
das trilhas percorridas. Cada jovem que
iludira, cada mulher de cujas fraquezas
abusara repontavam-lhe na tela mental, como que a lhe perguntarem pela filha que
a vida lhe trouxera...
Aquele homem que me inspirava
sentimentos contraditórios e de quem
teria desejado distanciar-me, tocado de
aversão, me insuflava agora um enternecimento que somente as lágrimas
exprimiam!...
Perante a enfermeira
impressionada, Cláudio ajoelhou-se e, com ele, pôs-se Moreira genuflexo... Em choro
convulso, o pai alisou aqueles cabelos despenteados, contemplou a fisionomia de cera
que a morte parecia estar modelando, mirou a face e os lábios intumescidos por
equimoses, aspirou o ar deteriorado que se lhe
exalava dos pulmões e,
mergulhando a cabeça nos lençóis, gritou, vencido:
— Ah! minha filha!... minha
filha!...
Quase no mesmo instante, a fronte
de Moreira vergou, como se esmagada de sofrimento...
Ambos jaziam, ali, debruçados,
rente aos meus joelhos, com a mesma rendição dentro da qual Marita se me
conchegava ao regaço.
Reconheci que a Providência
Divina, em seus desígnios, não me aproximava unicamente da vitima. Os verdugos
também pediam amor. Segurando a moça inerme, à altura do peito,
afaguei-os com a destra, sustentando-me em prece... E a prece clareava-me o pensamento,
corrigindo-me a visão!... Sim, tentando
consolar aqueles dois homens que o remorso
dobrava em tormento indizível, refleti nos meus próprios erros e compreendi os
propósitos da vida!... Não!... Eles não eram os estupradores, os obsessores, os
inimigos, os carrascos que eu detestara na véspera!... Eles eram meus
amigos, meus irmãos!...