sexta-feira, 8 de março de 2013
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
CAPÍTULO 4
Debaixo da agressão, Marina
experimentou irreprimível mal-estar. Empalideceu.
Sentia-se sufocar. Registrava
todos os sintomas de quem recebera pancada forte no crânio. Jogou a cabeça para
trás, na poltrona, esforçando-se por esconder a indisposição, mas debalde. Os Torres, pai e filho, perceberam-lhe a vertigem
e acorreram, pressurosos.
Nemésio tomou a palavra,
atribuindo o desmaio à fadiga de quem se movimentara durante a noite
inteira, sem o mínimo descanso no decorrer do dia anterior, ao redor da dona da
casa, cujo corpo se consumia com dolorosa lentidão, ao passo que Gilberto trazia água
fresca, antes de telefonar para o médico.
No ambiente espiritual, o impacto
não foi menos constrangedor.
Neves fitou-me, irrequieto, como a rogar socorro para não
explodir. Conhecia Moreira, de nossa primeira visita
ao Flamengo; entretanto, ignorava os acontecimentos que nos apoquentavam, desde a antevéspera.
Pelo olhar de censura que nos arremessou, concluí que julgava o
aposento da filha invadido por malfeitores desencarnados, numa investida sem qualquer
significação, incapaz de ajuizar quanto às causas que
impeliam o ex-conselheiro de Cláudio
àquele gesto de revolta, para o qual arrebanhara
colegas infelizes, efetuando um ataque categorizado por ele à conta de empreitada punitiva e
justiceira.
Uma das senhoras desencarnadas,
que aguardava o momento de acolher Beatriz, liberta, abordou-me,
pedindo providências.
Moreira e os aderentes despejavam
ditérios e obscenidades, injuriando a dignidade do recinto, depois de
haverem burlado a vigilância mantida em torno da casa. Não formulava o pedido para
que se articulasse a contenção deles, a propósito de preconceitos
humanos. Aceitava os recém-chegados na
posição de credores da maior comiseração; no
entanto, a senhora Torres estava nas derradeiras orações, em vias de partir.
Esmolava tranquilidade, silêncio.
Em determinadas terapêuticas, não
se pode restabelecer a normalidade orgânica senão removendo o centro
de infecção, e, ali, o pivô da
desarmonia era Marina.
Afastada a moça, retirar-se-iam
com ela os agentes da desordem.
Abeirei-me da menina carecedora
de piedade. Supliquei-lhe saísse. Fosse repousar. Não teimasse ante a solicitação nossa em seu
proveito.
Ela obedeceu a contragosto.
Pediu licença aos amigos, a fim
de esperar o médico na dependência dos fundos, e acompanhei-a.
O bando, porém, renteou comigo e
Moreira interpelou-me. Queria saber de minha simpatia pela jovem que ele
hostilizava. Indagava, desabrido, se eu
não a conhecia suficientemente, se não
lhe assistia às bacanais entre pai e filho e por que me interessava de modo tão
especial por aquela a que ele chamava bisca, bonita por fora e devassa por dentro.
Ironizando-me a escassa inclinação
à conversa, reportou-se, com enérgicas rabecadas, à dama que nos havia
rogado a execução de medidas para afastá-lo do quarto, declarando que não era
covarde para incomodar moribundos, e perguntou, insolente, por que razão as
entidades veneráveis e amigas, que ele
apelidava por «aquelas mulheres», nos compeliam
a retirá-lo, quando ali deixavam Marina respirar à vontade, acentuando que, por
ser franco e áspero, não se considerava pior.
Crivou-me de objurgações
repassadas de fel. Desafiando-me,por fim, a enunciar o meu ponto de vista,
utilizando palavras que colocavam em jogo a confiança com que me honrava,
desde a véspera, arrisquei-me a ponderar que Marina, apesar de tudo, era filha
de Cláudio Nogueira e irmã de Marita, aos quais tributávamos ambos calorosa
afeição. Qualquer fracasso em prejuízo dela seria desastre para eles. Não me cabia
reprovar corrigendas, capazes de lhe fortalecer a vigilância, com manifesta
vantagem para ela; no entanto,por amizade aos Nogueiras, não concordaria em que
fosse massacrada.
Ele sorriu e obtemperou que as
apreciações não eram de todo desprovidas de senso, prometendo que amainaria o
desforço, mas não desistiria da correção.
Despachou os cooperadores,
recomendando aos quatro lhe aguardassem as ordens no pátio lateral, e
acompanhou-nos, segurando-a, descortês.
Indiferente a qualquer ideia de
companhia espiritual,Marina penetrou na câmara, encostou a porta e
ajeitou-se no leito, cerrando os olhos.
Relaxou-se.
Aspirava a dormir, descansar...
Mas não conseguiu.
Moreira, insensível, indicando o
propósito de arrasar em mim qualquer simpatia pela contadora indefesa,
participou-me que ia submetê-la a interrogatório, em torno de Marita, para que eu lhe
ouvisse o depoimento inarticulado e avaliasse o caso por mim mesmo.
Suspirei pela obtenção de
respostas que enobrecessem o inquérito mental em preparo; contudo, minhas
esperanças se desvaneceram no nascedouro.
O indesejável patrocinador de
Marita, erguido por si mesmo à condição de juiz, pespegou um pejorativo
contundente aos ouvidos da moça e reclamou-lhe a opinião, sobre a irmã
hospitalizada.
Que se manifestasse, que
expusesse o seu ponto de vista, quanto àquele suicídio comovedor.
Marina, embora debilitada,
conjeturou-se tangida pelos próprios pensamentos a lhe buscarem atenção para a irmã
acidentada e, presumindo monologar, deixou que os pensamentos lhe pululassem do
cérebro, sem o travão da autocrítica.
Compadecia-se da irmã —
parafusava, calculista —, no entanto, confessava-se agradecida ao destino por se ver
livre dela. Indiscutivelmente, não teria tido coragem de impeli-la à morte;
todavia, se ela própria deliberara
desaparecer, cedendo-lhe posição, sentia-se
aliviada. Gilberto inteirara-a de um telefonema que recebera na noite da antevéspera.
Confiara-lhe as impressões.
Nada de trote. Pelo jeito,
deduziram que Marita lhe imitara a voz,
efetuando sondagem...
Convencida de que o rapaz não a
desejava, preferira morrer. Gilberto fora claro.
Pelos tópicos da conversação pelo
fio, dos quais lhe transmitira os mínimos pormenores, Marita
investigara-lhe os sentimentos, no intuito de arrancar-lhe uma declaração indireta. Desiludida,
optara pela renúncia. Em razão de tudo
isso, não lhe cabia perder-se em
divagações. Se o jovem Torres a amava, no mesmo grau de carinho com que se lhe entregara,
e se a outra resolvera sumir, nenhum motivo para ralar-se. O próprio Gilberto,
semanas antes, perguntara-lhe, de estranha maneira, pelas esquisitices da irmã.
Julgava-a desequilibrada, neurótica, ao que se lhe referira à paternidade anônima. O
filho de Nemésio acreditava em sífilis na cabeça, asseverando que Marita não servia
para casar.
Após ligeira pausa no pensamento,
como quem apaga uma luz e a reacende, alterando o cenário, a jovem do
Flamengo seguiu pensando, memorizando...
Telefonara para casa, durante a
noite, e a mãezinha informara que Manta ainda não havia morrido; contudo, o
médico esclarecera a ela, Dona Márcia, em ligação confidencial, que a
Ciência não dispunha de meios para recuperá-la e que o óbito era questão para da! a
alguns dias. O facultativo solicitara-lhe atenções especiais para Cláudio, esmagado
de angústia. Recomendara-lhe nada dizer ao marido, quanto à opinião aberta
que expunha, parecer que formulava apenas para com ela, ao reconhecê-la mais
calma, diante do sofrimento. Que ela, na condição de mãe, se premunisse contra emoções
muito fortes, a fim de sustentar a família, no transe que sobreviria, a qualquer
momento.
Aquelas elucidações, no silêncio,
feriram Moreira nas últimas fibras.
As notícias médicas, assim
desdobradas, portavam para ele os efeitos de um tiro.
Não se resignava à ideia de
perder Marita, no plano físico. Ela, inconscientemente, despendia
recursos fluídicos que se casavam com os dele, fornecendo-lhe sensações de
euforia, robustez.
Retirava dela os estimulantes
mentais que lhe vigorizavam a masculinidade, tanto quanto se valia
habitualmente de Cláudio, para viver
sobre a Terra como qualquer ser humano.
Entre a frustração e a
inconformidade, designou Marina com um
nome chulo e justificou-se, diante de mim,
quanto à determinação de puni-la.
Infantilizado, colérico, bradou que nós ambos
víamos, juntos, o regozijo com que cismava no infortúnio da outra; que eu não
lhe podia negar a frieza de sentimentos; que a minha palavra apoiasse a dele, em
momento oportuno; que eu lhe servisse de testemunha.
Marina, porém, continuava
meditando, aclarando, qual se aditasse, espontaneamente, impressões
marginais ao tema que Moreira lhe propusera.
Amava a Gilberto, sim. Apenas a
ele. Descobriria recursos para desvencilhar-se de Torres, pai. Quanto mais
corria o tempo, com maior segurança afiançava a si mesma pertencer ao rapaz.
Anelava desposá-lo, ser-lhe a
mulher em casa e mãe de seus filhos...
No entanto, quando o esboço do
lar futuro se lhe configurou na imaginação, o meu interlocutor arremeteu-se
contra ela e bramiu:
— Nunca!... Você nunca será
feliz!... Você matou sua irmã... Assassina! Assassina!...
Agredida sem que me fosse
permitido protegê-la, porquanto a minha interferência isolada se fazia
desaconselhável, a benefício dela mesma,
a jovem experimentou-se invadida de
estranho mal-estar.
Aquelas incriminações
percutiam-lhe fundo, qual se alguém lhe varasse o pensamento.
Ofegou em desassossego.
Começou a refletir, acerca de
Marita, sob novos aspectos, estabelecendo confrontos. Debalde esgrimia ideias,
tentando impugnar o remorso que se lhe infiltrava na consciência.
Julgava contraditar-se. Gemia em desconforto. Ignorava-se em luta com uma Inteligência que
se lhe mantinha invisível, a pedir-lhe contas do
proceder. Á medida, porém, que o
adversário martelava as censuras, às quais aderia por saber-se culpada,
passou a perder posição. Enevoava-se-lhe o raciocínio, mobilizou todas as
energias para não desmaiar,temia a loucura...
O contendor desafiara a
fortaleza, proclamando-lhe as brechas. A fortaleza resistiria, incólume, se fosse
inteiriça; entretanto, as brechas existiam e, por elas, o inimigo lançava petardos de
maldição e sarcasmo, gerando a demência e invocando a morte.
Em vão, diligenciei no silêncio,
articulando agentes mentais de auxílio para que a vítima se libertasse;
contudo, a menina, bastante hábil para movimentar-se, entre os homens, sem
comprometer-se na superfície das circunstâncias, jazia desarmada de conhecimento
enobrecedor, com que se advertisse, recuando natrilha percorrida para adotar
direção diferente.
Marina, à mercê da força que lhe
espatifava os recursos psíquicos, sentia-se derrotada...
Da impassibilidade ante o
desastre ocorrido com a irmã, transferiu-se à opressão, ao temor...
Ao toque do inquisidor que lhe
vasculhava a cabeça, começou a imaginar
que Marita, em verdade, não
intentaria o suicídio, se nela houvesse
achado uma companheira honesta e piedosa.
Rememorou a noite em que divisara
Gilberto pela primeira vez. O jovem saía de um cinema, em companhia da irmã,
amparando-a contra a chuva. Tamanha a doçura daqueles olhos, tão grande
o carinho daqueles braços!... Julgou encontrar Nemésio mais moço. Comprometida
com Torres, pai, presumia enxergar no filho os atributos de juvenilidade que lhe
faltavam... Capricho ou afeição, apaixonara-se pelo rapaz, cortejara-o abertamente.
Enlaçara-o com os dotes de inteligência, até acender-lhe na alma entusiasta o
anseio de compartilhar-lhe sonhos e emoções.
Convidara-o a entretenimentos,
agarrara-lhe o coração. Instalara nele anecessidade dela, tornara-o
dependente, escravo. Manobrava-o, inteiramente, o quea irmã, inexperiente e sincera,
não se animara a fazer,conquanto lhes conhecesse, através dele próprio, o
compromisso oculto.
Ao sabê-lo aprisionado à outra,
requintara-se, aliás, nos processos de sedução.
Acariciava-o, impunha-se, manietava-o,
à maneira da aranha entretecendo o fio veludoso para cativar o inseto
que se dispõe a devorar...
Perante o libelo do juiz
inesperado, perguntava-se pela tranquilidade própria.
Examinando escrupulosamente, as
atitudes que assumira, verificava, espantada, que lesara a si mesma. O remorso
figurou-se-lhe trado invisível a verrumar-lhe o crânio. Lágrimas abundantes lhe
subiram do peito aos olhos, lembrando jorros de água que a broca somente consegue
arrancar, ao subsolo, ao tatear lençóis mais fundos.
O médico, assistido pessoalmente
pelo dono da casa, apanhou-a em crise de pranto. Não obstante apreensivo,
consolou-a, erguendo-lhe o ânimo. Falou em cansaço. Elogiou-lhe a
pontualidade e o devotamento de enfermeira, prescreveu-lhe tranquilizantes. Que ela
repousasse, que não desamparasse a si mesma.
Marina, porém, não ignorava que a
consciência se debatia em pânico, que
era inútil qualquer tentame para
largar o foro íntimo. Quando o
facultativo se despediu, retomou o choro convulso, diante
de Nemésio que, intimidado, trancou a porta e se abicou, junto dela, no intuito de
confortá-la e confortar-se.
Constrangido a facear com a cena
de ternura, sem fundamentos de afeição recíproca, inquietei-me por
Moreira, que zombeteava, lançando frases ultrajantes.
Nemésio rogava à moça tratar-se,
refazer-se. Tivesse paciência, que se regozijassem ambos.
Nada além de mais alguns poucos
dias e estaria em pessoa, no Flamengo, para os derradeiros arranjos do
casamento. Contava com ela e queria fazê-la feliz.
Encantado, beijava-lhe o rosto
molhado, qual se aspirasse a sorver-lhe as lágrimas, enquanto que a jovem, francamente
conturbada, lhe arremessava olhares de esguelha, entremeados de
compaixão e repulsa.
Convidei Moreira à retirada. Ele,
porém, desapiedado,indagou se me falhava a coragem para conhecer Marina,
tanto quanto ele, e, porque me inclinasse a defendê-la, acrescentou que não
se achava ali na posição de carrasco. Escarninho, recomendou-me não acusá-lo,
asseverando que detinha tanta culpa na indisposição da jovem quanto aquela que teria
um bisturi na ablação de um tumor.
Pedi-lhe, em consideração a
Cláudio, nos auxiliasse a proteger-lhe a filha, menina recruta na guerra contra o
mal, embora se acreditasse suficientemente sabida.
Por que não nos conservarmos a
porta, resguardando-a? Um momento talvez chegasse em que passaríamos a
rogar-lhe concurso. Não obstante alegar que nunca se acomodara à alcovitice,
que não tinha vocação para capa de
malfeitores, aquiesceu e saímos. Do lado
externo, porém, à vista de referir-me à hipnose, no campo afetivo, expendendo
considerações ao redor da paciência, que nos toca exercer, junto de todas as
pessoas em distúrbios do sexo, ele riu-se abertamente e comentou, galhofeiro, que não me
adiantava falar grego, diante de obscenidades que para ele possuíam nomes
próprios, e advertiu-me que quando o pai se retirasse viria o filho e que eu perderia a
graça e o latim de qualquer jeito.
Efetivamente, quando o chefe da
casa se retirou, o rapaz,cansado da vigília noturna, veio em nossa direção e
entrou no quarto.
O colega endereçou-me olhar
significativo; contudo, antes que se
desregrasse na crítica, apareceu alguém com
bastante simpatia e piedade para desfocar-nos a mente.
Era o irmão Félix.
Através da expressão, dava-me a
perceber que se inteirara de todos os sucessos em curso; no entanto,
abriu os braços para Moreira, à feição
do pai que reencontra um filho. O amigo, que
volvera ao desequilíbrio sentimental, por sua vez, reconheceu-se invadido por
eflúvios regenerativos e recordou, sensibilizado, o primeiro encontro em que o
benfeitor lhe solicitara colaboração para Marita, e enterneceu-se.
Félix, sem um gesto que lhe
exprobrasse a deserção, apelou para ele com absoluta confiança:
— Ah! meu amigo, meu amigo!...
Nossa Marita!...
E, ante as indagações do
interlocutor, que o tratava como de igual para igual, esclareceu que a menina piorara. Dores agudas
lhe mortificavam o corpo.Afligia-se, fatigada.
Desde o momento em que ele,
Moreira, se afastara, tudo indicava que a pobrezinha entrara em regime de carência. A
sofredora criança necessitava dele, esperava por ele, a fim de aliviar-se.
Ante as frases sinceras que o
atingiam no fundo, o ex-assessor de Cláudio acudiu, incontinenti, regressando
em nossa companhia para o hospital, onde realmente a moça se estirava em
situação lastimável.
Quatro horas haviam escoado,
modificando-nos a tela de serviço.
Averiguamos que o pedido de Félix
não se alicerçava num artifício piedoso.
Escorada por Telmo, que lhe
insuflava energias, Marita não lhe assimilava a influência com tanta segurança.
Sem qualquer propósito de censura,
é licito registrar que faltava entre eles aquela harmonia necessária às
crenas das rodas de engrenagem determinada, num plano de sustentação. Telmo, rico
de forças, apoiando-a, lembrava um sapato novo e precioso em pé doente. Cedendo
lugar ao recém-chegado que o rendeu, pronto, verificou-se, de imediato, alguma
desopressão. Marita ajustou-se, mecanicamente, aos cuidados que Moreira lhe
oferecia. Ainda assim, a peritonite instalava-se, dominante.
Aumentara o mal-estar.
A filha de Aracélia gemia sob a
atenção atribulada de Cláudio, que a observava, azorragado de sofrimento íntimo.
Entretanto, agora, o ex-vampirizador do Flamengo encontrava enorme diferença.
Acicatada pelos padecimentos físicos, Marita não dispunha de facilidades para
pensar senão nas próprias dores, contundida,
suarenta, amarfanhada... E o
martírio corporal que lhe transfundia todos os impulsos, num gemido que não
conseguia articular, provocava em Moreira, unicamente, simpatia e compaixão.