quinta-feira, 30 de maio de 2013

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE


CAPÍTULO  7


Duas semanas precisamente sobre o desastre em Copacabana e Marita amanheceu preparada à desencarnação.
Moreira inspirava piedade. Aqueles dias abençoados de ensinamento e dor lhe haviam alterado a vida íntima. Percebendo que a menina entrara nos derradeiros lances da decadência orgânica, chorava, consternado.
Marita desligava-se, a pouco e pouco, de toda a relação com o mundo corpóreo.
Nem mesmo o calor daquele amigo generoso que a sustentava, qual se lhe ofertasse um pulmão suplementar, a interessava mais...
Conquanto imóvel, sentia-se agora lúcida, profundamente lúcida. Os olhos que davam quase apagados; no entanto, o apoio magnético  incessante lhe descerrava a luz da visão espiritual.
Nos últimos dois dias, atingira avançada renovação. Assinalava com absoluta clareza as palestras frequentes que Cláudio mantinha com médicos e enfermeiros, gravava as preces e os comentários de Agostinho e Salomão, na hora do passe.
De começo, ao experimentar que as mãos paternas lhe asseavam o corpo, desesperava, clamando de si para consigo que não se conformava com tanta humilhação... Lançava pensamentos de revolta contra o destino que a jungia daquele modo a um homem que odiava; entretanto, à força de perceber-lhe a ternura reverente, expungindo-lhe as excreções que se lhe agarravam à epiderme ferida, acabou plantando no coração um sentimento novo.  Enterneceu-se, transfigurou-se. Ouvia-o falar em Deus e, às vezes, identificava-lhe os dedos a lhe roçarem a fronte, ao mesmo tempo que entremeava afagos  e orações... Num dos minutos comovedores em que ela cismava, sem atinar com os motivos daquela transformação, Félix aproximou-se... Acariciou-lhe paternalmente os cabelos em desalinho e disse, na convicção de quem centralizava todas as energias, a fim de sugerir-lhe, com êxito, a atitude aconselhável:
— Filha, perdoa, perdoa!...
Ela registrou, emocionada, a voz desconhecida e recordou a  mãezinha que a deixara no berço.
Sim — concluía —, somente o amor materno voltaria do túmulo para inclinar-lhe o coração incendiado à fonte da indulgência...
Perdoar — monologou — que outra coisa lhe competia fazer  diante da morte?
Sim, devia partir olvidando mágoas e afrontas... Reconhecia-se na armadura dos ossos, à feição de pinto no ovo. Tênue pancada ou breve movimento conseguiria despejá-la e deveria sair, conquanto não soubesse para onde... Por que não seguir, apagando as labaredas que lhe requeimavam os sentimentos?...
Meditou naquelas mãos que a despiam, enxugando-lhe a pele molhada para vesti-la outra vez, com o carinho apenas visto nas mães quando tocam, de manso, os filhinhos doentes, e concluiu que lhe cabia desculpar, esquecer...
Compadeceu-se, então, diante do pai irrefletido. Perdoar-lhe, sim!... Pensou nisso, com o júbilo de quem achara uma bênção... Ele agora a respeitava, limpava-a, orava... Viveria na Terra, talvez carregando amargas penas, enquanto que ela viajaria para regiões que ignorava, apegando-se, porém,à confiança naquela voz que lhe impelia o espírito atribulado à calmaria do perdão... Rememorou-lhe o pranto da noite em que lhe declarara a paixão despropositada e tocou-se de entendimento. Pobre pai aquele que nunca desfrutava refúgio no próprio lar!... Teria um cérebro normal um homem assim, varado em casa, diariamente, qual se fosse um cão infeliz? Quem poderia saber se ele se aproximara dela na condição de um enfermo buscando lenitivo que não sabia qualificar, na turvação dos próprios sentidos? Provavelmente havia recebido, na pensão de Crescina, o assalto de um louco e não a injúria de um homem!... Por que não justificar o pai que se dementara?... Reconstituiu-lhe, na memória, os gestos de brandura e de amor, nos
brincos da infância. Cláudio lhe fora o único amigo...  Se chorava em pequenina, recolhia-se-lhe ao colo, buscando o regaço de mãe que não tivera. Demorou-se a revê-lo nas telas da imaginação, transportando-a nos braços para que se distraísse, admirando os bichos do jardim zoológico... Degustava, de novo, mentalmente, os sorvetes que ele lhe adquiria, prazeroso, nas tardes de verão... Recordava, recordava.... Não, não! — bradava-lhe a consciência, o pai  não era perverso, era bom... Como recusar-lhe compaixão se Dona Márcia o abandonava, se Marina lhe evitava a presença? Decerto, sofrera muito, antes de conturbar-se... Como não exculpar a loucura de uma noite, num benfeitor de vinte anos? Por que não morrer, abençoando semelhante dedicação? De que modo condená-lo,se ele, Cláudio, prosseguia ali, paciente e abnegado, tolerando-a?...
Recordou a mãe adotiva, imaginou-se à frente da irmã e aspirou, em espírito, à reconciliação com elas... Quem afirmaria que Dona Márcia  e Marina também não estivessem sob desequilíbrios ocultos? quem diria com certeza que não fossem doentes? Naquele instante em que se harmonizava com Cláudio, queria igualmente conciliar-se com ambas. Estavam perdoadas por todas as incompreensões e, no Intimo, pedia-lhes perdão por todos os dissabores que, involuntariamente, lhes tivesse causado!... No desfile das reminiscências, Gilberto não faltou. A figura do rapaz surdiu-lhe na cabeça, envolvida das doces vibrações do sonho que lhe constituíra a luz da vida!... Não conseguiria odiar a quem amava tanto!... Gilberto
teria encontrado razões para afastar-se dela e também, naquelas reflexões graves e extremas, lhe aparecia na ternura revestido com a beleza  de um companheiro amado e limpo!...
Ao enunciar esses pensamentos, Marita sentiu-se mais leve, quase feliz!...
Intentou movimentar-se, gritar ao pai que ela o considerava um homem de bem, que não detinha motivo algum para acusá-lo, que os sucessos  na moradia de Crescina tinham sido apenas um lamentável engano, que ela realmente morreria, rogando-lhe, no entanto, viver e continuar a ser bom!... Contudo, só ao pensar no próprio so erguimento, teve a impressão de que se algemava a uma estátua.
Nenhuma reação favorável nos membros hirtos, nenhuma voz na garganta que lhe parecia de pedra; todavia, tão grande e tão heroico se  lhe externou o esforço da alma renovada, que bagas de pranto lhe rolaram dos olhos semi mortos.
Desde esse minuto solene de pacificação, começou a distinguir, vagamente, vozes e formas do plano espiritual, entre alegre e amedrontada, qual se estivesse acordando num clarão transpassado de bruma...
Fitando-lhe o semblante orvalhado de lágrimas, Nogueira, reanimado, chamou o médico.
Aquilo não seria indício de reação, de melhora?
O facultativo, porém, meneou a cabeça, circunspecto, e pediu mais tempo de observação, a fim de pronunciar-se, concluindo, no entanto, de si para consigo que a menina se achava em condição pré-agônica, transtornada, delirante...
Clareado o dia que antecedeu a noite da desencarnação,  o clínico prestimoso convidou Cláudio a entendimento e comunicou-lhe, por fim, que a moça não mais viveria muitas horas. Para a Ciência, tudo terminava... Que ele, pai afetuoso e crente, orasse segundo a fé que alimentava no coração, buscando forças...
Nogueira baixou os olhos e agradeceu, humilde. Telefonou para Agostinho e Salomão, participando-lhes o aviso.
Os amigos vieram à noitinha.
Rogou orassem por ele, queria ser digno da fé que aceitara. Pela primeira vez, pediu um passe em favor de si mesmo. Baixou os olhos e espalmou as mãos para recebê-lo, imitando o gesto de uma criança infeliz, suplicando uma esmola.
O velho farmacêutico e o negociante consolaram-no. Não seria justo reter a menina padecente num corpo qual aquele, deprimido e irrecuperável; no entanto, ao se despedirem, achavam-se ambos engasgados de emoção.
Cláudio, mais desolado que nunca, às nove horas solicitou licença para trancar-se. Queria estar só com a filha, dizer-lhe adeus. Ninguém recusou aquele favor suplicado com humildade.
Isolado à frente dela, Nogueira demorou-se a meditar... Recompunha o pretérito na memória, imaginando as estradas percorridas por ruínas das quais se via afastado para sempre. Entretanto, ao fixar a agonizante, pelo amor purificado que lhe passara a dedicar, simbolizava, na existência junto dela, o futuro de que se via distante. Entre o passado que lhe inspirava repugnância e o porvir na comunhão espiritual com a filha querida, sentia-se esmagado, sozinho...
Enternecia-nos as recônditas fibras da alma contemplar aquele homem vergado ao peso do suplício moral, fugindo a recordações para entrar em prece... Os gritos inarticulados do peito jugulado de angústia ao apelarem para Deus, no silêncio do quarto, assemelhavam-se a cânticos de dor que as lágrimas sufocavam!...
Ás onze, o irmão Félix e outros amigos, incluídos Neves e Percília, estavam conosco.
Em todos os semblantes, a expectativa discreta, com exceção de Moreira, que se agitava em pranto.
O instrutor levantou-o num gesto de brandura, comunicando-lhe que a tarefa terminara. Que não se deveria vitalizar, por mais tempo aqueles pulmões que a morte começava a enregelar. O triste amigo obedeceu, em choro convulso.
Em seguida, impondo as mãos naquela cabeça despenteada, Félix transmitiu-lhe subitâneo calor.
Marita senhoreou inopinada agilidade mental. Supunha-se reviver, renascer.
Escutava os ruídos em derredor, com extrema acuidade auditiva...
O benfeitor abeirou-se de Cláudio e segredou-lhe algo. Certo, sugeria-lhe conversar, despedir-se. Ignorando-se tocado pelo mentor espiritual, vimo-lo revestido de estranha coragem.
Nogueira ergueu-se, avançou dois passos e ajoelhou-se ao pé da agonizante...
Pousou a cabeça rente ao corpo imóvel, mas a intensa emotividade traiu-lhe as energias. O pranto abalava-lhe os membros, ao jeito de  tempestade sacudindo os galhos de um tronco prestes a cair.
Marita percebia-lhe o arfar do tórax, na escala ascendente dos soluços, e desejou acariciá-lo; contudo, os braços se lhe afiguraram parafusados à cama.
Amparado nas forças magnéticas de Félix, que passou a apoiá-lo inteiramente, Cláudio cobrou ânimo, recolheu o exemplar de O Evangelho segundo o Espiritismo», que deixara na cadeira próxima, e falou com voz trêmula: — Filha do meu coração, se você me escuta, atenda a seu pai,por piedade!...
Perdoe-me!...
Não sei se você sabe que estou transformado... Conheci Jesus,  minha filha, e sei hoje que Deus é misericórdia, que ninguém morre, ninguém... Sei que a justiça está em nós mesmos, que sofremos pelos males que praticamos, mas Deus não nos recusa o resgate!... Compreendo o mal que fiz a  você, sou um criminoso, mais nada... Pense, minha filha, no remorso que carregarei pelo resto da vida!...
Você sabe que vou agora caminhar sem ninguém, aguentando a solidão que mereço... Onde você estiver, compadeça-se de seu pai!... Confie em Jesus e nos bons Espíritos!...
Eles sabem que você não se suicidou, sabem que sou um assassino... Ah!
minha filha, pense nesta palavra assim tão triste!... Assassino! Auxilie-me a lavar esta mancha da consciência! Rogue por mim aos enviados do Cristo, para que eu tenha a força de fazer o que devo fazer!...
Cláudio fez ligeira pausa, ao ver que o rosto da filha  se cobria de lágrimas e, ansiando reconhecê-la devolvida à própria consciência para que lhe assinalasse a renovação, guardou a íntima certeza de que ela o escutava,em plena lucidez, bem dizendo-lhe os votos de melhoria. Aflito e expectante, na convicção de que estava sendo ouvido e entendido, continuou:
— Apesar de tudo, filha querida, não fique triste com minha súplica!... Sou um réu, mas tenho esperança! Veja a revelação de Jesus que eu achei!...
Em seguida, com as mãos trementes, num gesto de piedosa confiança, colocou-lhe o livro na destra inerme.
A filha desperta registrou a presença do volume sobre os dedos inteiriçados e respondeu com o pranto mais vivo, mais copioso.
Nogueira, encorajado por aquela manifestação de inteligência, levantou a voz e rogou-lhe escutasse o que tinha a dizer...
Declarando saber-se diante de amigos espirituais, que lhe testemunhariam a sinceridade, e certo de que empenhava a própria alma nas afirmações que se dispunha a formular, abriu-se à filha.
Confessou ali, diante dela, todas as faltas de que se acusava; relatou-lhe o drama de Aracélia; asseverou que sinceramente ignorava fosse ela filha dele, o que apenas viera a saber por informação de Márcia, porquanto, leviano e inconsequente qual fora, na mocidade, admitia, erroneamente, que Aracélia desempenhara o papel de companheira para vários homens; participou-lhe que a  esposa o chamara à realidade, na noite horrível em casa de Crescina; descreveu como se abatera, atormentado pelo arrependimento, desde que a vira prostrada, implorava-lhe perdão por havê-la induzido ao suicídio... Comunicou-lhe haver lido e aprendido muito sobre reencarnação, desde o primeiro dia de hospital, e asseverou-se persuadido de que ambos se achavam ligados, através de múltiplas existências; disse que a paixão alimentada por ele teria sido fruto da invigilância e da crueldade que ainda trazia no coração... Acrescentava, porém, ali, ante os padecimentos dela que lhe constituíam sentença de dor inapelável, que prometia regenerar-se, por mais áspero o reajuste...
Finda a longa exposição, que Marita assinalou, compungidamente, frase por frase, Nogueira retirou o livro da mão pequenina e descarnada, rematando em choro convulsivo:
— Tenho orado e tenho recebido a misericórdia de Deus para mim, malfeitor...
Mas se a Bondade Infinita me pode favorecer ainda com nova esmola, abençoe-me, filha querida, dê-me um sinal de benevolência, antes de partir... Se você está ouvindo o réu que sou, acompanhe-me neste desejo... Ore  também!... Rogue a Deus forças... Mova um dedo, um dedo só para que eu saiba que você perdoou a seu pai!... Não me deixe na incerteza, agora que vou recomeçar o destino, entregue às consequências de minhas próprias faltas!.
Registrando os soluços paternos, que lhe revolviam a alma, a jovem associou-se-lhe aos votos. Desejou ansiosamente, veementemente, satisfazer-lhe o pedido...
Perdão!... Perdão!... A palavra ressoava-lhe no espírito, à maneira de cântico que descesse do céu, ecoando nas paredes em torno!... Perdão!... Aquelas seis letras, enfileiradas em forma de sons, pareceram-lhe música da eternidade, que estivesse sendo executada no firmamento, em trompas de estrelas, cujos brandos acentos lhe aliviavam o coração!...
A pobre menina concentrou todas as energias num pensamento de confiança e de gratidão a Deus e rogou, mentalmente: — «Perdão, Senhor!... Perdão para meu pai, perdão para mim!... Perdão para todos os que erraram!... Perdão para todos os que caíram!... »
Aguçaram-se-lhe as percepções e sentiu-se como que banhada de alegria inefável... Contemplou Cláudio, distintamente agora,  fitou Moreira em lágrimas e, alongando a atenção mais serenamente em derredor do leito, viu-nos a todos. Félix, em silêncio, endereçou-lhe eflúvios magnéticos a determinada área cerebral, e Cláudio, atônito, viu a destra inerme levantar-se...
Agoniado e reconhecido, tomou avidamente aqueles pequenos dedos frios e quis dizer «obrigado, meu Deus!», tentando, debalde, movimentar a garganta que os soluços embargavam; contudo, em lugar da palavra dele,  foi a voz de Félix que se ergueu, de nosso lado, arrebatando nos em prece:
— Senhor Jesus, nós te agradecemos a felicidade que nos concedeste na lição do sofrimento, nestes dias de trabalho e de expectação!...
Obrigado, Senhor, pelas horas de aflição que nos clarearam a alma, pelos minutos de dor que nos despertaram as consciências! Obrigado por estas duas semanas de lágrimas que realizaram por nós o que não nos  foi possível fazer em meio século de esperança!..
Em te alçando nosso agradecimento e louvor pedimos ainda!... Lança, por misericórdia, a tua bênção na irmã que se despede e no companheiro que ficará.
Transfunde-lhes o pesar em renovação, a mágoa em regozijo!... Recebe-lhes o pranto, como sendo a oração que te elevam, aguardando-te a paz no caminho!...
Entretanto, Mestre, não te exoramos a piedade somente para eles, irmãos bem-amados, que consideramos filhos da própria alma!... Suplicamos-te arrimo para todos os que resvalaram nos enganos do sexo desorientado, quando nos ofereceste o sexo por estrela de amor a brilhar, assegurando-nos a  alegria de viver e garantindo-nos os recursos da existência!...
Consente, Senhor, possamos relacionar, diante de ti, aqueles irmãos que as convenções terrestres tantas vezes se esquecem de nomear, quando te dirigem o coração.
Abençoa os que se tresmalharam na insana ou no infortúnio, em nome do amor que não chegaram a conhecer!
Socorre nossas irmãs entregues à prostituição, já que todas  nasceram para a felicidade do lar, e corrige com tua munificência os que as impeliram para a viciação das forças genésicas; acolhe as vítimas do aborto, arrancadas violentamente ao claustro materno, dentro dos prostíbulos ou em recintos que a impunidade acoberta, e retifica, sob teu auxílio, as mães que não vacilaram asfixiar-lhes ou degolar-lhes
os corpos em formação; restaura as criaturas sacrificadas pelas deserções afetivas, que não souberam encontrar outro recurso senão o suicídio  ou o manicômio para ocultarem o martírio moral que lhes transcendeu a capacidade de resistência, e compadece-te de todos aqueles que lhes escarneceram da ternura, transformando-se, quase sempre, em carrascos sorridentes e empedernidos; protege os que renasceram desajustados, no clima da inversão, suportando constrangedoras tarefas ou padecendo inibições regenerativas, e recupera os que se reencarnaram nessa prova, sem forças para sustentar as obrigações assumidas, afogando a existência em devassidão; recolhe as crianças que foram seviciadas e renova, com
a tua generosidade, os estupradores que se animalizaram,  inconscientes; agasalha os que rolaram na desencarnação prematura, por efeito de golpes homicidas, nas tragédias da insatisfação e do desespero, e ampara os que  se lhes tornaram os verdugos padecentes, vergastados pelo remorso, seja na liberdade atenazada de angústia ou no espaço estreito dos calabouços!...
Mestre, digna-te reconduzir ao caminho justo os homens e as mulheres, nossos irmãos, que, dominados pela obsessão ou traídos pela própria fraqueza, não conseguiram manter os compromissos de fidelidade ao tálamo doméstico; reequilibra os que fazem da noite pasto à demência; conforta os que exibem mutilações e moléstias resultantes dos excessos ou dos erros passionais que praticaram nesta ou em outras existências; reabilita a cabeça desvairada dos que exploram o filão de trevas do lenocínio; regenera o pensamento insensato dos que abusam da mocidade, propinando-lhe entorpecentes; e sustenta os que rogaram antes da reencarnação as lágrimas da solidão afetiva e as receberam na Terra, por medida expiatória aos desmandos sexuais, a que se afeiçoaram, em outras vidas, e que, muitas vezes, sucumbem de inanição e desalento, em cativeiro familiar, sob o desprezo de parentes insensíveis, a cuja felicidade consagraram a juventude!...
Senhor, estende também a destra misericordiosa sobre os corações retos e enobrecidos!
Desperta os que repousam nos ajustes legais, acatados nas organizações terrestres, e esclarece os que respiram em lares, revestidos pela dignidade que mereceram, a fim de que tratem com humanidade e compaixão os que ainda não podem guardar-lhes os princípios e imitar-lhes os bons exemplos!... Ilumina o sentimento das mulheres engrandecidas pelo sacrifício e pelo trabalho, para que não desamparem aquelas outras que, até agora, ainda não conquistaram a maternidade premiada pelo respeito do mundo, e que, tantas vezes, lhes suportam a brutalidade dos filhos nos lupanares! Sensibiliza o raciocínio dos homens que
encaneceram honrados e puros, de modo a que não abandonem os jovens
desditosos e transviados!...
Senhor, não consintas que a virtude se converta em fogo no tormento dos caídos e nem permitas que a honestidade se faça gelo nos corações!...
Tu, que desceste às vielas do mundo para curar os enfermos, sabes que todos aqueles que jornadeiam na Terra, atormentados pela carência de alimentação afetiva ou alucinados pelos distúrbios do sexo, são doentes  e infelizes, filhos de Deus, necessitados de tuas mãos!...
Inspira-nos em nossas relações uns com os outros e clareia-nos o entendimento para que saibamos ser agradecidos à tua bondade, para sempre!... Quando Félix emudeceu, o compartimento demorava-se invadido pelo clarão que se lhe exteriorizava do peito; contudo, não éramos somente nós, os comandados dele, que trazíamos, ali, o espírito subjugado por intensa emoção!...
Todas as entidades desencarnadas, em serviço no estabelecimento, mesmo as que se vinculavam a outros cultos religiosos, se perfilavam à frente do acanhado recinto, discretas e atenciosas... Espíritos ignorantes e vampirizadores, em trânsito nos sítios adjacentes, acorreram para junto de nós, atraídos pelos jorros de luz solar que o aposento irradiava em todas as direções, e, muitos deles, a curta distância, baixavam a fronte, emocionados e reverentes. Aquele quarto da venerável instituição socorrista, em plena noite, na rua do Resende, assemelhava-se a fulgurante coração de alvenaria, constelado de amor!...
Cláudio nada ouvia, mas, empolgado pelas vibrações balsâmicas do ambiente, chorava, de manso, percebendo a mão gélida que se colara  às dele, afrouxando a pressão do adeus. Agoniado, fitou o semblante da filha e notou que o palor da morte nele esboçava o derradeiro sorriso... Levantou-se e cerrou,cuidadosamente, aquelas pálpebras fatigadas, orvalhando-as de lágrimas; no entanto, renteando com ele, Moreira não continha os soluços.
Telmo aplicava passes anestesiantes à jovem e um médico espiritual, que se nos incorporara ao trabalho de equipe, cortou os últimos ligamentos que ainda retinham a alma cativa ao corpo inerme.
Quando viu Marita liberta e agasalhada nos braços de Félix, figurando-se uma criança cansada e adormecida, Moreira, na aflição e na humildade dos que se olvidam integralmente, para destacarem os que mais amam,indagou, desolado: — Irmão Félix, que farei doravante, inútil como sou?
— Moreira — respondeu o instrutor, abençoando-o com o olhar —, somos uma família só.
Muito em breve, terás o necessário, de modo a retomar o  convívio de Marita, que pede agora paz e refazimento; mas, antes, somos nós os companheiros que te pedem auxílio! Marina sofre... Precisamos libertá-la. Contamos contigo como quem tudo espera de um amigo, de um irmão!...
O ex-assessor de Cláudio, ansiando patentear correta submissão, pôs-se genuflexo e deixou pender a fronte, confundido ao reconhecer que o orientador lhe rogava sanar uma brecha que ele, Moreira, havia agravado, e prometeu, em pranto, atender à obrigação que se lhe indicava. Tudo o que anelava agora, acentuou, era aprender, auxiliar, dedicar-se ao bem, trabalhar, .......
Felizes da Terra! Quando passardes ao pé dos leitos de quantos atravessam prolongada agonia, afastai do pensamento a ideia de lhes acelerardes a morte!...
Ladeando esses corpos amarrotados e por trás dessas bocas mudas, benfeitores do plano espiritual articulam providências, executam encargos nobilitantes, pronunciam orações ou estendem braços amigos!
Ignorais, por agora, o valor de alguns minutos de reconsideração para o viajor que aspira a examinar os caminhos percorridos, antes do regresso ao aconchego do lar.
Se não vos sentis capacitados a oferecer-lhes uma frase de consolação ou o socorro de uma prece, afastai-vos e deixai-os em paz!... As lágrimas que derramam são pérolas de esperança com que as luzes de outras auroras lhes rociam a face!.
Esses gemidos que se arrastam do peito aos lábios, semelhando soluços encarcerados no coração, quase sempre traduzem cânticos de alegria, à frente da imortalidade que lhes fulgura do Além!...
Companheiros do mundo, que ainda trazeis a visão limitada aos arcabouços da carne, por amor aos vossos sentimentos mais caros, dai consolo e silêncio, simpatia e veneração aos que se abeiram do túmulo! Eles não são as múmias torturadas que os vossos olhos contemplam, destinadas à lousa que a poeira carcome... São filhos do Céu, preparando o retorno à Pátria, prestes a transpor o rio da Verdade, a cujas margens, um dia, também vós chegareis!...
Ao entardecer, Agostinho e Salomão acompanharam Cláudio e os despojos da filha até ao Caju.
Cerimônia simples que a prece consagrou.
De volta, Nogueira, acabrunhado, despediu-se dos amigos,  na Cinelândia, e tomou táxi para o Flamengo.
Alcançou o prédio, subiu e, sequioso de companhia, abriu  a porta. Vasculhou peça por peça e sentiu frio no corpo e na alma...
No apartamento deserto não havia ninguém.

domingo, 26 de maio de 2013

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES

NA VIAGEM DA VIDA
Cap. IX – Item 4


Evitas a compra do fruto deteriorado, defendendo a saúde.
Varres o lixo doméstico, purificando o ambiente.
Lavas a roupa suja, garantindo a limpeza.
Usas o remédio preciso, conjurando a enfermidade.
Livra-te também das palavras que desçam da informação à maledicência, preservando o equilíbrio.
Bloqueias o fogo.
Diriges a força elétrica.
Isolas o veneno.
Governa a explosão.
Controla igualmente as palavras suscetíveis de converter a energia em crueldade, resguardando a segurança.
Verbo deprimente gera a viciação.
Verbo desvairado cria a loucura.
A existência terrestre pode ser comparada a laboriosa viagem.
O corpo é a embarcação.
O pensamento é a força.
A língua é o leme.


Emmanuel

segunda-feira, 20 de maio de 2013

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES

RENASCER E REMORRER
Cap. V – Item 12

Usufruímos na Espiritualidade o continente sem limites de onde viemos; no Universo Físico, o mar sem praias em que navegamos de quando em quando, e, na Vida Eterna, o abismo sem fundo em que desfrutamos as magnificências divinas.
No trajeto multimilenário de nossas experiências, aprendemos, entre sucessivos transes de nascimento e desencarnação, a alegria de viver, descobrindo e reconhecendo a necessidade e a compensação do sofrimento, sempre forjado por nossas próprias faltas.
Já renascemos e remorremos milhões de vezes, contraindo e saldando obrigações, assinalando a excelsitude da Providência e o valor inapreciável da humildade, para saber, enfim, que toda revolta humana é absurda e impotente.
Se as lutas do burilamento moral não têm unidade de medida, a ação do amor é infinita na solução de todos os problemas e na medicação de todas as dores.
Tolera com paciência as inevitáveis, mas breves provas de agora, para que te rejubiles depois.
Nos compromissos espirituais, todos encontramos solvibilidade através do esforço próprio. Aproveitemos a bênção da dor na amortização dos débitos seculares que nos ferreteiam as almas, perseverando resignadamente no posto de sentinelas do bem, até que o Senhor mande render-nos com a transformação pela morte.
Sempre trazemos dívidas de lágrimas uns para com os outros.
Vive, assim, em paz com todos, principalmente junto aos irmãos com os quais a tua vida se intercomunica a cada instante, legando, por testamento e fortuna, atos de amor e exemplos de fé, no fortalecimento dos espíritos de amigos e descendentes.
Se há facilidade para remorrer, há dificuldades para renascer.
As portas dos cemitérios jamais se fecham; contudo, as portas da reencarnação só se abrem com a senha do mérito haurido nas edificações incessantes da caridade.
As dores iguais criam os ideais semelhantes.
Auxiliemo-nos mutuamente.
O Evangelho – o livro luz da evolução – é o nosso apoio. Busquemos a Jesus, lembrando-nos de que o lamento maior, o desesperado clamor dos clamores, que poderia ter partido de seus lábios, na potência de mil ecos dolorosos, jamais chegou a existir.

Lins de Vasconcellos

quarta-feira, 8 de maio de 2013

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER

ANTE A NECRÓPOLE

Assistia, enfim, ao sepultamento de minhas vísceras cansadas. A solenidade,  referentemente à qual tanta vez  me reportara, descortinava-se-me ao olhar possuído de assombro.
De envolta com as relações afetiva do mundo compacta  assembleia  de desencarnados se pôs em movimento.  Nosso grupo continuava reduzido, mas aumentara. Outros amigos se reuniram  a nós, abraçando-me. Declarava-me desejosos de me acompanhar na passagem para a esfera próxima.
Intensa curiosidade dominava-me as emoções, quando o cortejo estacou.
Era a entrada para a necrópole, afinal.
Todo o local se enchia de gente desencarnada.  Francamente, intentei seguir para dentro, mas Bezerra, num abraço fraternal, recomendou, compassivo:
–  Meu amigo, não tente a lição agora. Recordemos a parábola e deixemos aos mortos o cuidado de enterrar os mortos.
Em seguida, solicitou aos novos circunstantes nos deixassem  a sós, até o instante da retirada definitiva.
Percebendo-me o desapontamento, observou-me, bem-humorado:
–  Jacob, você não sabe o que está desejando. Por enquanto, os enterros muito  concorridos impõem grandes perturbações à alma. Além disso, não desconhece que as vibrações daqueles que o amam procura-lo em qualquer parte.
Em virtude do parecer respeitável, afastei-me do corpo moto, no momento em que penetrava a nova moradia.

A PASSAGEM

Quantas vezes; julguei que morrer constituísse mera libertação, que  a alma, ao  se desvencilhar dos laços carnais, voejaria em plena atmosfera usando as faculdades  volitivas! Entretanto, se é fácil alijar o veículo físico, é muito difícil abandonar a velha morada do mundo.
Posso hoje dizer que os elos morais são muito mais fortes que os liames da carne e, se o homem não se preparou, convenientemente, para a renúncia aos hábitos  antigos e comodidades dos sentidos corporais, demorar-se-á preso ao mesmo campo  de luta em que a veste de carne se decompõe e desaparece. E se esse  homem  complicou o destino, assumindo graves compromissos à frente dos semelhantes,  através de ações criminosas, debater-se-á, chorará e reclamará embalde, porque as  leis que mantêm coesos os astros do Céu e as células da Terra lhe determinam o encarceramento nas próprias criações inferiores.
Se o bem salva e ilumina, o mal perde e obscurece.
Livremo-nos do débito, para que não venhamos a mergulhar no resgate laborioso, e corrijamos o erro, enquanto a hora é favorável, evitando a retificação muita vez dolorosa.

NA EXPECTATIVA INQUIETANTE

Agora, que me desembaraçara do corpo grosseiro, então restituído à terra, mãe comum das formas mortais, intrigava-me o próprio destino.
Abandonamos o cemitério e, preocupado, reparei que Marta sorria afavelmente  para mim.  Bezerra e o Irmão Andrade despediram-se com afetuoso abraço, declarando  que nos esperariam dentro de duas horas, em determinado sítio fronteiro ao mar.
Minha filha respondeu por mim, afirmando que não faltaríamos. Sozinhos, agora, perguntou-me se não pretendia dizer adeus ao antigo ninho doméstico.

AQUIESCI, CONTENTE

Com que ansiedade tornei ao ambiente familiar! Contemplei enternecido, tudo o  que fora amontoado pela ternura das filhas em derredor das minhas necessidades de  velho e, de permeio com o pranto  que me assomou abundante aos olhos, aí espalhei os meus pensamentos e votos de paz e reconhecimento.
Visitei o núcleo de trabalho em que tantas vezes fora beneficiado pela graça  divina, abracei espiritualmente alguns amigos e pus-me a caminho, na direção da praia.
A que destino me conduzia?  Desencarnado como me achava, por que motivo não me vinha à lembrança, de  súbito, toda a trama da reminiscência do passado? Por que razão não me recordava da  anterior libertação espiritual? Onde se localizaria minha nova habitação? Na região  europeia em que eu reencarnara ou na zona americana em que fora servido pelas  benditas oportunidades do serviço e da experiência?
Marta assinalou-me a inquietude e recomendou-me paciência.  Teria os problemas solucionados, pouco a pouco.
Em rápidos minutos, alcançamos a praia.
Para onde me dirigiria?

domingo, 5 de maio de 2013

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES

PERDOA, SIM!?
Cap. X – Item 15

O desconhecido passou, de carro, enlameando-te a veste, como se toda a rua lhe pertencesse... Compadece-te dele. Corre, desabalado, à procura de alguém que lhe socorra o filhinho nos esgares da morte.
Linda mulher, que pérolas e brilhantes enfeitam, segue a teu lado, parecendo fingir que te não percebe a presença... Compadece-te! Ela tem os olhos embaciados depranto e não chegou a ver-te.
Jovem, admiravelmente bem posto, cruzou contigo, endereçando-te palavra de sarcasmo e de injúria... Compadece-te! Ele tem os passos no caminho do hospício e ainda não sabe.
O amigo que mais amas negou-te um favor... Compadece-te dele! Não lhe vês a dificuldade encravada no coração.
Companheiros do mundo!... Estarão contigo, notadamente no lar, onde guardam os nomes de pai e mãe, esposo e esposa, filhos e irmãos... Muita vez, levantam-se de manhã, chorosos e doloridos, aguardando um sorriso de entendimento, ou chegam do trabalho, fatigados e tristes, esmolando compreensão.
Todos trazem consigo aflições e problemas que desconheces.
Ergue a própria alma e auxilia sempre!... Indulgência para todos! Bondade para com todos!...
E, se algum deles te fere diretamente a carne ou a alma, não levantes o braço ou a voz para revidar.
Busca no silêncio a inspiração do Senhor, e o Mestre, como se estivesse descendo da cruz em que pediu perdão para os próprios verdugos, te dirá compassivo:
– Perdoa, sim! Perdoasempre, porque, emverda de, aqueles que não perdoam também não sabem o que fazem...

Meimei

sexta-feira, 3 de maio de 2013

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE



CAPÍTULO 6

Valendo-nos da condução, seguíamos igualmente para o hospital, em objetivo de serviço.
Enquanto o automóvel chispava, a senhora Nogueira fitava Nemésio ao volante, apreciando-lhe a sisudez aparente e o porte desempenado. Inquietava-se consigo mesma, de vez que refletia naquilo em que não queria pensar. À vista daquele tipo galhardo, indagava-se por que razão Marina preferira o filho ao pai, se o genitor, cavalheiro dinheiroso e simpático, era, em tudo, a pessoa  capaz de assegurar-lhe independência e posição.
De quando em quando, envolvia-lhe o perfil numa olhadela mais comprida e concluía, de si para consigo, que a juventude não tinha lógica.
Mais alguns minutos e penetramos no estabelecimento, onde o par foi recepcionado pelo facultativo com quem Dona Márcia se comunicara, momentos antes.
O médico, gentil, notificou ter avisado Cláudio quanto  à possibilidade da surpresa, mas Dona Márcia desconversou, para não dar ao pai de Gilberto a impressão de que se dispusera a vir até ali pela primeira vez. Referiu-se à temperatura, comentou particularidades do ambiente, qual se repetisse observações corriqueiras. E o clínico, longe de perceber-se a servir de instrumento, respondia-lhe às perguntas calculadas, atendendo-lhe, involuntariamente, aos fins em pauta.
Foi assim que, ao transpor a entrada do aposento indicado, Nemésio guardava a convicção de acompanhar um símbolo vivo de ternura materna.
Cláudio, abatido, acolheu, a seu turno, os recém-chegados, entre sóbrio e atento. A princípio, o desconforto íntimo... Depois, a  conformação. Sofria demais para escolher discutir e aprendera o suficiente, naqueles dias de angústia, para inclinar-se a reclamações. Aliás, ao facear com Nemésio, endereçou-lhe o olhar do homem atribulado que roga a outro homem comiseração e socorro.
Recebeu-lhe o amplexo franco, depois das apresentações promovidas pela mulher, e imaginou-se na condição de um aluno em exame.
Torres, que ele conhecia tão bem, conquanto a distância,  figurou-se-lhe diferente. Sabia-o ostentando-lhe a filha em noitadas vadias e vezes diversas sopitara o ímpeto de esmurrá-lo, ao retirar-se humilhado de recintos alegres para não aguentar desacatos; entretanto, agora lhe contemplava o rosto, imbuído de sentimentos novos. Identificava-se num teste de compreensão e de tolerância. Num átimo, associou os ensinamentos espíritas cristãos que lhe metamorfoseavam o íntimo com Marita em decúbito, fixou Nemésio e Márcia,  e deduziu que não lhe competia  julgar aquele homem que lhe explorava a família. Mecanicamente recordou Jesus e a lição da primeira pedra... Estabele eu confronto rápido e catalogou-se em nível inferior. Torres entretinha-se com  uma jovem que lhe dava liberdade, e filha de outro homem. Ele, porém, não  vacilara em abusar da própria filha, depois de encantoá-la na sombra, através de embuste soez. Com que direito assumiria, ante a própria vítima tombada, o papel de censor?
Indubitavelmente — concluía em reflexões instantâneas —, amigos espirituais traziam-lhe o negociante detestado, experimentando-lhe a renovação. E a ele próprio, também — considerou, humilde — cabia o dever de  sopesar as próprias reações, categorizar-se tal qual era, no fundo da consciência.
Naquela prova de segundos, volveu o olhar para a esposa e não mais encontrou em Dona Márcia a inimiga cordial de tantos anos. Aquele semblante embonecado por excessiva maquilagem, na presença das concepções novas que passara a nutrir, mascarava um coração insatisfeito, cujos desastres haviam sido provocados por ele mesmo. Exterminara-lhe os sonhos, logo após o casamento. Recordou-se de como se enfadara, desapiedado, da esposa, então menina cândida e espontânea, tão só por vê-la disforme, na gravidez de que Marina sobreviera, e de como transferira, na direção de Aracélia, os instintos de homem selvagem. Desde o choque em que se vira coagida a criar duas filhas, em vez de uma, a personalidade real de Márcia desaparecera.
Desequilibrara-se. E ele, ao invés de regenerar-se, recuperando-a, jamais regressara da caça de aventuras. Como exigir contas da mulher, se devia acusar-se? Nada lhe impedia fugir do auto exame, abraçando conversas triviais; entretanto, inferiu que não conseguiria ausentar-se da própria alma. Mais justo esquadrinhar-se, suportar-se... Percebeu que Nemésio e Márcia, expectantes, lhe estranhavam a atitude e, muito mais para não incomodá-los que por subtrair-se a qualquer crítica, dirigiu o olhar para a filha desfigurada, que somente as energias de Moreira conjugadas com a alimentação artificial retinham no corpo físico, e falou para o genitor de Gilberto, com inflexão de profundo sofrimento:
— Veja o senhor... Nossa filha está muito mal...
Os recém-chegados fitaram, atônitos, aquele cadáver que ainda respirava...
Sentiu-se Dona Márcia esmagada de assombro, mesclado de piedade, mas reprimiu-se.
Torres, por sua vez, apertou os dedos contra as palmas das mãos, num gesto peculiar de nervosismo. A moça descarnada devolvia-lhe a imagem de Beatriz. Recuou, automaticamente, procurando o pai de Marina a  fim de exprimir-lhe amizade, mas deparou com Cláudio, de lenço ao rosto, tentando, debalde, sofrear o pranto que lhe escorria do queixo hirsuto.
A senhora Nogueira fez as honras.
Conquanto abalada, não somente ao consignar a de cadenciada pupila, mas igualmente ao testificar a inesperada sensibilização do marido, controlou-se o bastante para falar com desembaraço.
Doseou as verdades que ouvira do médico, respeitando o pesar do esposo, recapitulou a versão do acidente que ela mesma engenhara, para satisfazer aos amigos, e rogou desculpas pelo traumatismo com que Cláudio se apresentava. 
Confessava-se também machucada — observou, polidamente —; contudo, ao ver o marido subjugado pelo desgosto, não tivera outro recurso  senão reabilitar a resistência própria, a fim de que não escasseasse comando à situação.
O esposo, em lágrimas copiosas, compreendeu que ela mentia para impressionar e que enfileirava frases bem-postas, no intuito de dar a entender que não arredava pé do hospital; no entanto, não lhe rebateu as afirmativas.
Limitava-se a chorar em silêncio. Em lugar da indignação  a que se rendia, em outros tempos, quando a via fingir, penalizava-se agora. Imaginava-se na posição do viajor que houvesse espalhado farpas em todo o caminho,por onde seria fatalmente impelido a regressar...
Confirmando-lhe as impressões, Dona Márcia levantou-se e, contendo a repugnância que o cheiro desagradável do leito lhe causava, ajeitou os travesseiros da filha inanimada, derramou algumas palavras de carinho e, verificando que Nemésio se mantinha constrangido no ambiente que as exalações do processo renal tresandava, conclamou ao regresso.
Não seria licito reter o senhor Torres por mais tempo, alegou. Quanto a ela, que Cláudio a esperasse. Voltaria mais tarde.
Despedidas e protestos de solidariedade surgiram à tona.
O irmão Félix, presente, seguira o encontro em todas as  minúcias e ponderou que se eu volvera ao estabelecimento, em objeto de serviço,pela mesma razão me aconselhava o retorno ao lar de Nemésio, a fim de socorrer Marina, cujo problema obsessivo se agravava. Conviria, porém — acrescentou —, acompanhar ambos os visitantes, de maneira estudar-lhes as reações, com fins de auxílio.
Aboletei-me no carro para a volta.
Torres, dominando-se, escolheu caminho mais longo, em marcha lenta.
A tortura de Nogueira suscitava-lhe falsas impressões. Cotejando-se com ele, qualificava-se por homem de rija têmpera que, dias antes, assistira à morte da própria companheira, sem quebrar-se, ao passo que o genitor de Marina se derretia ao pé de uma filha adotiva, cuja situação, naquela hora, pedia a tranquilidade do necrotério.
De vez em vez, deitava olhares furtivos para Dona Márcia, supondo compreendê-la melhor. A mãezinha daquela que pretendia desposar, perfeitamente comparável à filha em beleza e inteligência, não seria feliz junto daquele cavalheiro chorão.
O comerciante esperto retomara as características próprias. Apouco e pouco, olvidou a menina acidentada e o bancário arrasado que classificava por maricão e passou a exaltar o encantamento do dia em curso, qual se  aspirasse a despertar Dona Márcia para a convicção de que se achava no auto, sob o patrocínio de um companheiro compreensivo e vigoroso, capaz de assegurar-lhe a euforia. Indagou se ela frequentava os passeios cariocas mais estimáveis. Referiu-se aos almoços suculentos das Paineiras, aos piqueniques da Pedra do Conde, aos banhos em Copacabana, à vista inigualável no Pico da Tijuca nos dias  ensolarados, onde o binóculo parecia trazer a restinga de Marambaia para dentro dos olhos...
Dona Márcia conhecia todos os sítios mencionados, quanto a palma das mãos; contudo, fez-se de ingênua. Sabia, de experiência própria, que os homens da casta de Nemésio preferem as mulheres frágeis e acanhadas, que  se voltem para eles com a bisonhice das criaturas necessitadas de proteção. Declarou nada conhecer dos pontos guanabarinos mais frequentados, além do Pão de Açúcar, que visitara numa excursão, aliás muito rápida, junto das filhas ainda pequeninas.
Afetando-se novata, em matéria de experiências romanescas, informou que se casara muito nova e que, desde então, a existência lhe fora um suplício entre escovões e panelas, com a obrigação de tolerar um marido resmelengo, segundo ele próprio, Nemésio, pudera verificar. Que lhe avaliasse o martírio de mulher acorrentada a um matrimônio infeliz pela mostra de Cláudio choramingas, a recebê-los sem uma palavra de cordialidade e de apreço.
Torres gostou das definições. Riu-se. Falou em psicoses. Reportou-se a neurologistas distintos.
Dona Márcia debuxou um sorriso malicioso, fitou-o demoradamente, e disse que era muito tarde para tratamentos, que havia muito tempo vivia separada do esposo,embora continuassem sob o mesmo teto.
Acostumara-se a sofrer, declarava suspirando. Nemésio entendeu a insistência daqueles olhares e experimentou recôndita satisfação ao averiguar-se requestado.
A presença da futura sogra não lhe desagradava. Não fosse  Marina — pensou —, e não hesitaria atraí-la a convívio mais íntimo. A manhã toda, na companhia daquela mulher que reputava formosa e inteligente, constituíra-lhe um tônico.
Esquecera-se, distraíra-se. Mesmo assim, não julgou conveniente precipitar-se.
Puxou o relógio e, verificando que faltavam apenas cinco  minutos para meio-dia, convidou-a para o almoço. Conhecia excelente restaurante no Catete.
A senhora Nogueira aceitou. E a refeição transcorreu alegre.
Esforçava-se a convidada em pressentir as escolhas do anfitrião, de modo a compartir-lhe os pratos prediletos. Sóbria, acomodou-se à água mineral e, no cardápio, comeu pouco. Em compensação, pensou muito e falou o possível, no intuito de cativar o companheiro. Em dado momento, refletiu nos riscos a que Marina se expunha e, abemolando a voz, provocou a deixa.
Prevendo a despedida próxima, asseverou não desejar o encerramento daquele encontro feliz sem agradecer-lhe o devotamento à filha. Além disso, rogava-lhe permissão para assinalar que a moça era demasiado jovem, que  temia pela inexperiência dela...
Torres, lisonjeado, reiterou a confiança na escolhida, não sem um gesto significativo para a interlocutora, como a dizer-lhe que,embora lhe aguardasse a filha, no lar, não queria que a sogra lhe olvidasse a dedicação de amigo certo. A esposa de Cláudio apanhou a sugestão no ar e asseverou, de  modo galante, que, na qualidade de mãe abnegada, anelava para a filha a felicidade que o mundo não lhe pudera conceder.
Entre ambos, o contrato afetivo não apresentava qualquer dúvida, apesar de todos os itens do acordo se evidenciarem por entrelinhas e  alusões, suspiros e reticências.
Quando o genitor de Gilberto disse adeus, no Flamengo,retomou o volante admitindo-se visitado mentalmente pela imagem da senhora Nogueira. Fugindo-lhe à influência, opunha-lhe a figura da filha. À face disso, entrou em casa, decidido a encontrar-se com Marina, de pronto.
Recolhido ao quarto particular, tomou o pijama, calçou os chinelos silenciosos e, absorto, andou, de manso, na direção do compartimento,  em que pretendia surpreendê-la, comunicar-lhe impressões e, sobretudo, dissipar os pensamentos intrometidos que Dona Márcia lhe suscitara.
Espalmou, de leve, a maçaneta e abriu a porta, sem ruído; no entanto, fez força para não cair, garroteado de assombro. Gilberto e a moça beijavam-se em amplexo apaixonado, efusivo. De costas para a entrada, o filho não lhe assinalou a presença; todavia, Marina, a situar-se de frente, cruzou o olhar com o dele, viu-lhe o rosto crispar-se, esverdiado, e desmaiou.
A cena foi rápida.
Retirou-se Nemésio, à maneira de um cão espancado, arrastando-se em terrível asfixia.
Dificilmente, ganhou o quarto e precipitou-se no leito, a sentir-se arrasado de sofrimento.
Ponderações contraditórias vararam-lhe o crânio - Como deslindar o enigma doloroso? Teria Gilberto abusado da menina enfraquecida ou dividia-se a jovem pelos dois? Intentou erguer-se, mas, como se houvesse recebido uma pedrada por dentro do coração, doía-lhe o peito, suava frio, sufocava-se.
Decorrido um quarto de hora, Gilberto, insciente do vulcão de lágrimas que o pai se empenhava a esconder, veio participar-lhe que Marina piorara, depois de ligeiro delíquio. Voltara da síncope, francamente possessa. Gritava, chorava, mordia-se, feria a si mesma...
Nemésio, porém, pousou nele os olhos magoados e pediu-lhe comandar as medidas necessárias. Chamasse o médico, telefonasse para o Flamengo e insistisse com a genitora para vir, e explicou, não sem esforço, que ele também tornara da rua, incompreensivelmente abatido...
Aplicando-me a socorrer Marina, reconheci a obsessão instalada. Os vampirizadores que Moreira trouxera, coadjuvados por outros, haviam dominado, de todo, a jovem desprevenida. O choque experimentado esbarrondara-lhe as últimas resistências. Marina, sob o jugo dos malfeitores desencarnados, jazia hipnotizada, vencida...
Em breve tempo, Dona Márcia, em pessoa, renteava com a filha, que a recebeu, dementada, irreconhecível.
O médico optou pela hospitalização imediata, que Nemésio declarou patrocinar com a impassibilidade de quem cumpre um dever. Dona Márcia, por desencargo de consciência, entendeu-se com Cláudio pelo fio, suavizando a  notícia. Inteirava-o de que a filha se extenuara em trabalho excessivo, arrojara-se a grande fadiga mental e o facultativo indicava ligeira estação curativa, numa clínica de repouso. Ela, com a
responsabilidade de mãe, não opunha qualquer embargo;entretanto, não lhe seria lícito deixar de ouvi-lo, aguardava-lhe a opinião.
Nogueira não contraditou e Dona Márcia deu-se pressa em  confiar Marina a estabelecimento psiquiátrico de nomeada, cujos portais a menina transpôs, inspirando cuidado e compaixão.
Regressando à bela vivenda, depois de dois dias, encontramos Gilberto atarantado e infeliz; contudo, mais dedicado à moça que  antes. Nemésio, porém, ruminava a antiga concepção do amor como sendo chinelo no  pé e, apenas decorridas quarenta e oito horas sobre o acontecimento, já permutava confidências com a senhora Nogueira, em torno dos fatos novos, e ambos,na maior intimidade, já haviam encontrado motivos para desculpar aquilo a que  chamavam doçuras da mocidade», cultivando consolações um no outro.