domingo, 29 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES
MÉDIUNS E MEDIUNIDADES
Cap. XXVI – Item 10
No falso pressuposto de que haja médiuns e mediunidades mais importantes entre si, recordemos o velho apólogo que Menênio Agripa contou ao povo amotinado de Roma, a fim de sossegar-lhe o espírito em discórdia.
“Se o cérebro, por reter a ideação fulgurante, desprezasse o estômago ocupado na tarefa obscura da digestão, a cabeça não conseguiria pensar; se os olhos, por refletirem a luz, declarassem guerra aos intestinos por serem eles vasos seletores de resíduos, decerto que, a breve tempo, a retina seria espelho morto nas trevas, e se o tronco, por sentir-se guindado a pequena altura, condenasse os pés por viverem ao contato do solo, rolaria o corpo sem equilíbrio.”
E, de nossa parte, ousaríamos acrescentar à antiga fábula que tudo, no campo da seqüência da natureza, é solidariedade e cooperação.
Se os braços desaparecerem, os pés se fazem mais ágeis; em sobrevindo a surdez, acusa o olhar penetração mais intensa; se a visão surge apagada, o tacto mais amplamente se desenvolve; se o baço é extirpado, a medula óssea trabalha com mais afinco, de modo a satisfazer as necessidades do sangue.
Qual acontece no mundo orgânico, a Doutrina Espírita é um grande corpo de revelações e de bênçãos, no qual cada médium possui tarefa específica.
Esse esclarece...
Aquele consola...
Outro pensa feridas...
Aquele outro anula perturbações...
Esse incorpora sofredores angustiados...
Aquele transmite elucidações de instrutores devotados à grande beneficência...
Outro recebe a palavra construtiva...
Aquele outro se incumbe da mensagem santificante...
Como é fácil observar, o passe curativo é irmão da prece confortadora, a desobsessão é o reverso da iluminação espiritual e o verbo fulgente da praça pública é outra face dolivro que o silêncio abençoa.
Em nossa esfera de serviço, portanto, já que prescindimos do profissionalismo religioso, não existem médiuns-pastores, médiuns-gerentes, médiuns-líderes ou médiuns-diretores, porquanto a cada qual de nós cabe uma parte do grande apostolado de redenção que nos foi atribuído pela Espiritualidade Maior.
E se todos nós, em conjunto, temos um mentor a procurar e a ouvir de maneira especialíssima, no plano da consciência e no santuário do coração, esse Mentor é Nosso Senhor Jesus Cristo – o Sol do Amor Eterno – a cuja luz,no grande dia de nossos mais altos ajustamentos, deveremos revelar em nós mesmos a divina
essência da Sua lição divina:
– ”A cada qual por suas obras”
Cairbar Schutel
Cap. XXVI – Item 10
No falso pressuposto de que haja médiuns e mediunidades mais importantes entre si, recordemos o velho apólogo que Menênio Agripa contou ao povo amotinado de Roma, a fim de sossegar-lhe o espírito em discórdia.
“Se o cérebro, por reter a ideação fulgurante, desprezasse o estômago ocupado na tarefa obscura da digestão, a cabeça não conseguiria pensar; se os olhos, por refletirem a luz, declarassem guerra aos intestinos por serem eles vasos seletores de resíduos, decerto que, a breve tempo, a retina seria espelho morto nas trevas, e se o tronco, por sentir-se guindado a pequena altura, condenasse os pés por viverem ao contato do solo, rolaria o corpo sem equilíbrio.”
E, de nossa parte, ousaríamos acrescentar à antiga fábula que tudo, no campo da seqüência da natureza, é solidariedade e cooperação.
Se os braços desaparecerem, os pés se fazem mais ágeis; em sobrevindo a surdez, acusa o olhar penetração mais intensa; se a visão surge apagada, o tacto mais amplamente se desenvolve; se o baço é extirpado, a medula óssea trabalha com mais afinco, de modo a satisfazer as necessidades do sangue.
Qual acontece no mundo orgânico, a Doutrina Espírita é um grande corpo de revelações e de bênçãos, no qual cada médium possui tarefa específica.
Esse esclarece...
Aquele consola...
Outro pensa feridas...
Aquele outro anula perturbações...
Esse incorpora sofredores angustiados...
Aquele transmite elucidações de instrutores devotados à grande beneficência...
Outro recebe a palavra construtiva...
Aquele outro se incumbe da mensagem santificante...
Como é fácil observar, o passe curativo é irmão da prece confortadora, a desobsessão é o reverso da iluminação espiritual e o verbo fulgente da praça pública é outra face dolivro que o silêncio abençoa.
Em nossa esfera de serviço, portanto, já que prescindimos do profissionalismo religioso, não existem médiuns-pastores, médiuns-gerentes, médiuns-líderes ou médiuns-diretores, porquanto a cada qual de nós cabe uma parte do grande apostolado de redenção que nos foi atribuído pela Espiritualidade Maior.
E se todos nós, em conjunto, temos um mentor a procurar e a ouvir de maneira especialíssima, no plano da consciência e no santuário do coração, esse Mentor é Nosso Senhor Jesus Cristo – o Sol do Amor Eterno – a cuja luz,no grande dia de nossos mais altos ajustamentos, deveremos revelar em nós mesmos a divina
essência da Sua lição divina:
– ”A cada qual por suas obras”
Cairbar Schutel
domingo, 22 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA SANCHES
AVISOS DA CRIAÇÃO
Cap. III – Item 19
A Presença Divina constitui verdade perene.
Até o silêncio da pedra fala em Deus.
O Universo repousa na disciplina.
O labirinto da selva revela ordem em cada por menor.
Em a Natureza, tudo pede compreensão e respeito.
O deserto é o cadáver do mar.
Há sabedoria em todas as coisas.
Embora sem tato, a trepadeira sabe encontrar apoio; não obstante sem visão, o girassol descobre sempre o astro rei.
Em tudo existe a feição boa.
As nuvens mais sombrias refletem a luz solar.
Eternidade significa aprimoramento contínuo de repetições.
Sem recapitular movimentos, a Terra desagregar-se-ia.
A fé construtiva não teme a adversidade.
O penhasco no dilúvio é ponto de segurança.
A obediência não dispensa a firmeza.
Humilhada e submissa, a água se amolda a qualquer recipiente, mas, resoluta e perseverante, atravessa o rochedo.
Toda empresa solicita cultura e prática.
Inexperiente, o homem vivo naufraga no bojodas águas; adaptado, o lenho morto navegana superfície do mar.
O aspecto exterior nem sempre denuncia a realidade.
O vento, supostamente vadio, trabalha na funçãode cupido das flores.
Volume não expressa valor.
Apesar de pequenina, a semente é gota de vida.
A palavra feliz constrói invariavelmente.
Na linguagem do pássaro, todo som faz melodia.
Valor e humildade são expressões de inteligência sublime.
Se o cume mais alto recebe a chuva em primeiro lugar, o vale mais baixo recolhe, ao fim, a maior parte da água.
Para revelar-se, o bem não exige trombeta.
Conquanto invisível, a onda de perfume, muita vez, nutre e refaz.
No campo da evolução, a paz é conquista inevitável da criatura.
A escarpa de hoje será planície amanhã.
André Luiz
sexta-feira, 20 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 10
Estirada no leito, chorava
Marita, desconsolada. As revelações ouvidas naquele diálogo, a curta distância,
revolviam-lhe o coração, quais pinças de
fogo. Sentia-se abandonada, desejava morrer.
Então — confirmava-se —, todo
aquele devotamento de Gilberto não passava da superfície.
Apropriara-se-lhe da alma,
empolgara-lhe os sentimentos, para deixá-la sem comiseração.
Recordava-se de que, realmente,
semanas antes, indagara-lhe ele que outros idiomas conhecia.
Algo vexada,
informara que somente conseguira o curso primário. O moço retirara da algibeira
uma composição de Shelley. Lera o inglês e traduzira para ela os vemos lindos.
Em seguida, aconselhara-lhe estudos suplementares à noite.
Poderia auxiliá-la,
relacionava-se com professores distintos. Ela rira-se, queria o lar, a escola do lar com ele. Apenas
ali, na decepção que a molestava, compreendia a extensão do arrufo com que se
despedira. Ah! sim, aspirava ao casamento com moça culta. Ignorante! — dizia
para si mesma — não passo de uma
ignorante.
Marina era diferente, dominava
outras línguas.
Tudo já estava tramado,
deliberado.
À vista disso, a irmã
recusava-lhe intimidade nos dias últimos. Por mais a rodeasse de mimos, mais se afastava.
Agora reconhecia igualmente a
causa de mostrar-se o rapaz enfastiado e irritadiço. Entretanto —
perguntava-se, triste —, se ele a desprezava, assim, por que lhe abusara da confiança? Por que
o arrebatamento com que lhe acorrentara a alma às inesquecíveis impressões da
menina que se faz repentinamente mulher? Não selara com ela um ajuste de
matrimônio? Não lhe testemunhava extrema ternura nos encontros domingueiros,
quando se entregavam a comunhão mais íntima?
Incapaz de duvidar da
legitimidade do carinho que recebera, voltava-se mentalmente para a irmã que lhe
surrupiava as mínimas alegrias. A nova infelicidade — conjeturava —
seria culpa dela.
Com toda a certeza, Marina
cobiçara o rapaz, a envolvê-lo na teia de artimanhas que entretecia como ninguém.
Gilberto caíra-lhe no engodo. Ave no visco. Contudo, ao descobrir toda a trama,
reconhecia-se irremediavelmente lesada. Debatia-se empranto, sob o peso das
considerações familiares. Era imperioso certificar-se de que era enjeitada e ignorante. Nada
sobraria para ela, tudo para a outra. Marina possuía méritos, ela não.
A exposição de Dona Márcia,
naquela hora, insuflara-lhe-a tortura do réu que ouve sentença inapelável. Ainda
assim, chorava, inconformada. A contingência de perder Gilberto induzia-lhe o
sentimento a matar ou desaparecer. Rememorou as tragédias, lidas na imprensa, mas
o fratricídio repugnava-lhe ao coração. A idéia do suicídio, contudo, qual semente a
se lhe ocultar no imo do ser, evocada pelo esboço ligeiro da alma, como que
germinara, de súbito. Acariciou-a, de leve, e a sugestão infeliz ganhou corpo. Divagações
negativas tomaram-na de assalto. Renunciar a Gilberto e largar os planos
feitos doeriam muito mais que morrer — pensava, desolada. Mas seria justo
acovardar-se, assim tanto? Repeliu o estranho apelo e, conquanto as
lágrimas, prometeu coragem a si própria. Lutaria pela felicidade. Explicar-se-ia
com o rapaz, baniriam, juntos, a ameaça pendente.
Entretanto, se Gilberto não lhe
aceitasse os argumentos, que fazer do
destino, se, com o golpe sofrido à frente,
percebia também o fantasma da esquisita inclinação do pai adotivo pela retaguarda?
Por que a peça que a vida lhe
pregava? Devia esquivar-se ao afeto do jovem que amava, numa consagração
natural, para ganhar a paixão do homem maduro que se habituara a respeitar como
pai e que lhe acenava com uma espécie de união para ela inaceitável?
Estarrecia-se ao ouvi-lo naquela hora. Identificava-lhe o tom de alegria triunfante, ao dar-se
conta da felicidade com que se desembaraçaria de Gilberto, no campo em que se
prometia apresá-la.
Cláudio como que lhe falava de
longe, ao dirigir-se à esposa. Aquelas referências louvaminheiras com
que a obsequiava, perante Dona Márcia, confirmavam-lhe a decisão de
dobrá-la, demovê-la. Entre o asco e a
piedade, rememorava-lhe as carícias, que
somente naquela noite conseguira compreender.
Como desvencilhar-se?
Flor sacudida no vento da
provação, perguntava por quê, por quê?...
Sopesando as ocorrências, pela
primeira vez sentia medo daquele ninho familiar a que se reconhecia encadeada por
filha do coração.
De repente, elevou o pensamento à
memória materna... Ah! nunca imaginara que um coração feminino pudesse
encontrar dilemas tão aflitivos, quanto aqueles a que se via largada, de instante
para outro! Que não teria sofrido sua própria mãe, que a deixara no instante do
alvorecer? Nunca soubera, ao certo, as circunstâncias que lhe haviam rodeado o
nascimento. Concluía agora, porém, que talvez a genitora tivesse conhecido o cálice que
ela agora amargava! Que noites de agonia moral atravessara, sozinha, ao
acariciá-la no ventre! Que injúrias padecera, que privações experimentara? Ela, que tudo
desconhecia acerca do pai, refletia no
martírio da genitora, jovem e abandonada,
quando, provavelmente, lhe aguardava, em vão, o carinho e a proteção, noite a
noite.
Dona Márcia, ao biografar-lhe a
mãezinha, dissera «moça brincalhona».
Teria sido mesmo?
Possivelmente, gargalharia para
não soluçar, ansiando abafar em ruídos de festa os gritos da própria
alma... Quem sabe ter-se-ia dedicado a algum homem proibido, empenhado o coração a
algum moço que lhe fora roubado à ternura de menina e mulher?
Nas lágrimas que lhe corriam,
suspirava pôr fazer-se criança... Por que não vivera a mãezinha, a fim de
lutarem juntas? Consagrar-se-iam uma à outra.
Permutariam as próprias mágoas...
Muita vez, na loja a que servia,
escutava apontamentos sobrecomunicações de mortos, inteirava-se de experiências
sobre a continuação davida no Além... Seria aquilo verdade? — indagava-se. Se
Aracélia, libertada, estivesse em alguma parte, indiscutivelmente lhe
acompanharia o calvário, compartilhar-lhe-ia o infortunio...
Mecanicamente, implorava ao
Espírito materno a abençoasse, fortificasse, protegesse...
Conquanto sem qualquer idéia
religiosa definida, formulava prece muda, que valia por funda invocação...
Intentávamos consolá-la, buscando
asserenar-lhe a mente, quando duas senhoras desencarnadas penetraram
no quarto, de improviso.
Saudaram-nos, afetuosamente,
revelando a condição de entidades familiares, vinculadas àquele refúgio
doméstico.
Das recém-chegadas, a que nos
pareceu menos experiente adiantou-se para a menina em oração. Controlava-se,
dificilmente. Tremia, ao enxugar o
pranto silencioso. Inclinou-se para o
leito, como qualquer mãe desventurada e aflita da Terra, quando teme acordar um ser
querido...
Embora sem elucidações prévias,
não nos era licito alimentar qualquer dúvida.
Aquela, era a jovem do retrato
que Marita conservava, em imagem, nas telas do pensamento. Aracélia, amparada
pela doce afeição de venerável amiga, ali estava, diante de nós! Mãe amorosa,
vinha talvez de muito longe para acudir às angústias da filha... Enternecendo-nos, a
pobre mãe ajoelhou-se para beijar-lhe os
cabelos...
E, oh! segredos insondáveis da
Providência Divina!... Quem conseguirá
definir com palavras humanas a essência do
amor que Deus situou nas entranhas maternas?...
A dama inclinou-se, muito de
manso, e abraçou-a, com ternura, à maneira de planta que se fechasse sobre a única
flor que lhe nascera...
A castigada menina acalmou-se, de
súbito. Adivinhando a visita pela qual suspirava, alijou a tensão, percebendo-se
mentalmente ocupada pela presença da genitora, cujos traços tentava,
afetuosa, lembrar e reconstituir.
Outro quadro, entretanto,
superpôs-se, comovedor.
Aracélia, que orava e chorava em
profundo silêncio, buscava em pensamento outra mulher, cuja evocação lhe
renovava as energias.
A mãe desencarnada via-se
pequenina, junto da lavadeira singela
que a trouxera, na reencarnação última,
para o teatro da vida humana. Identificava-se criança, agarrada à saia daquela
moça doente, que mergulhava as pernas no rio para ganhar o pão... Tão fundo
atingia a acústica da memória, que chegava a escutar o ruído daquelas mãos
miúdas, esfregando as peças ensaboadas...
Recolhia-lhe, de novo, o olhar
meigo, em que lhe pedia paciencia... Calada, na areja, por vezes esperava,
esperava, depois que a mãezinha lhe repunha o corpo frágil, à curta distância, a fim
de atender ao serviço...E rememorava o enlevo e o júbilo que sentia, quando os
braços maternos a retomavam, para fazê-la dormir, ao som do velho estribilho, a que se
acostumara no lar de telha vã....
De olhos parados, como se
buscasse, além, no espaço infinito,o colo agasalhante que o tempo
arrebatara, assumiu nova posição, colocando a cabeça da jovem no próprio regaço e,
emocionando-se até às lágrimas, qual se tivesse nos lábios aqueles lábios de mãe,
humilde e enferma, que jamais esqueceria, Aracélia, em pranto resignado, cantou
suavemente diante de nós:
Lindo anjo de meus passos, Descansa, meu doce bem; Dorme, dorme nos meus braços, Enquanto a noite não vem.
Dorme, filhinha querida; Não chores, encanto meu; Dorme, dorme, minha vida,
Tesouro que Deus me deu...
Qual se fora repentinamente
magnetizada, Marita caiu em pesado sono.
Isso feito, a senhora, que
tutelava a companheira, atraiu-a brandamente de encontro ao peito, no manifesto
propósito de consolá-la e, segurando-a,
falou-nos, triste:
— Irmãos, nossa Aracélia ainda
não está em condições de amparar a filha.
E, ajuntou, entre gentil e
desapontada:
— Perdoem-nos a interferência.
Nós, as mães, em certas dificuldades, nada mais temos que alguma velha
canção para dar aos nossos filhos!...
Em seguida, retirou-se, sustendo
Aracélia, que se lhe refugiara nos braços, soluçando...
Ainda não nos refizéramos da
emoção, quando vimos Marita,em espírito, afastar-se do corpo denso,
guardando a inquietação da criança que anseia inutilmente pelo calor materno...
Qual ocorre, porém,à maioria das criaturas encarnadas, no plano físico,
mostrava lucidez oscilante, insegura... Cambaleou no quarto e, percebendo eu que Neves
se dispunha a amimá-la, sustive-lhe o impulso, fazendo-lhe sentir que a nossa
intervenção direta poderia frustrar-lhe os desejos e que, a fim de prestar-lhe auxílio
eficiente, era mister deixá-la à vontade, sob vigilância discreta, de modo a
examinar-lhe as necessidades mais íntimas.
Sucedeu, quase que de imediato, o
que não prevzamos.
Esfumaram-se os arroubos da filha
saudosa, esmaeceram-se atitudes infantis, a menina de Aracélia desaparecera e
ressurgiu nela a personalidade feminina, estuante e clara.
A moça não nos via. Guardava a
mente nebulosa que caracteriza os pequeninos ainda tenros, incapazes de
particularizar as impressões, quando se transferem de lugar; entretanto, qual lhes
acontece, quando ao reterem idéias fixas, quais sejam o brinquedo ou a guloseima,
concentraramse-lhe todos os pensamentos num ponto só: Gilberto.
Queria ver Gilberto, ouvir
Gilberto.
Semelhantes impulsos a se lhe
conglomerarem na cabeça, repetidamente emitidos, galvanizavam-lhe a
vontade, revestindo-lhe o pensamento de uma certa clareza, que a favorecia, porém,
tão só na direção dos seus anseios de
mulher.
Essa penetração parcial como que
lhe conferia agora seguro apoio íntimo, e Marita, figurando-se-nos senhora de si,
conquanto absolutamente presa ao desejo ardente em que se obstinava, largou o
aposento e, descendo os largos trechos da escadaria que contornava o elevador, deixou
para trás o enorme edifício, qual sonâmbula, magnetizada pelos próprios
reflexos.
Seguimo-la, atentos, não obstante
confiando-a à própria discrição.
Cabia-nos estudar-lhe os ímpetos
extrovertidos, consultar-lhe as inclinações.
Não tivemos, todavia, qualquer
dificuldade para adivinhar-lhe o rumo.
Em tempo reduzido, a filha
adotiva de Cláudio alcançou a residência
de Nemésio, que já se nos fizera
conhecida.
Na certeza instintiva de quem se
endereça a determinada pessoa, pelos recursos do olfato, sem atender a
quaisquer convenções de forma e número, avançou casa a dentro,
acalentando a imagem de Gilberto, que lhe substancializava o pensamento dominante.
Impulsionada pelas percepções
indefiníveis da alma, demandou amplo dormitório, localizado nos fundos
da moradia, e, sem quenos fosse possível avaliar, de pronto, a resolução de
garantir-lhe a liberdade, afim de analisar-lhe as reações, sobreveio o choque doloroso.
Naturalmente sobressaltados,
apenas conseguimos ampará-la pela retaguarda.
Entrando no quarto, Marita
surpreendeu Gilberto nos braços da irmã, e bradou, estarrecida:
— Canalha! Canalha!...
Aquelas imprecações, entretanto,
nem de longe atingiramo jovem par, completamente absorto na permuta
de gratificações afetivas.
Neves e eu não trocamos palavra.
Precipitamo-nos, automaticamente, para a menina atribulada, intentando
anular-lhe a agitação convulsiva.
Mais alguns minutos e despertou
no corpo denso, obrigando-nos a pensar numa pequena fera aguilhoada, retornando
à gaiola. Descerrando as pálpebras, vagarosamente, denotava no olhar
a feição dos loucos, quando relaxam os músculos em seguida a perigoso
acesso de fúria - Tateou, espantada, a fronte suarenta. Fez luz, com fome de
realidade física. Atarantada, sentou-se para fixar as paredes, com mais segurança, e
certificar-se de que se achava no leito e no lar.
A pouco e pouco, readquiriu a
confiança, acalmou-se, refazendo energias; no entanto, acusava uma espécie de
tranqüilidade constrangida e amarga.
Pesadelo? — indagava-se, aterrada
— ou quem sabe os padecimentos simultâneos lhe acarretavam
crises de loucura?
Doía-lhe a cabeça, sentia-se
desajustada, febril. Marita regressara
ao agasalho físico, sob pressa demasiada, sem
que nos fosse possível adotar qualquer providência para anestesiar-lhe a
memória.
Retinha no pensamento
particularidades do quadro visto eouvido, e encarcerada, de novo, entre as
impressões superficiais dos sentidos corpóreos e a noção da verdade profunda, que
não lograva apalpar, entrou em pranto agoniado, para somente dormir, com relativa
calma, aos clarões do dia.
domingo, 15 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA SANCHES
DINHEIRO E AMOR
Cap. XI – Item 9
Diante do bem, não pronuncies a palavra “impossível”.
Certamente, sofres a dificuldade dos que herdaram a luta por preço das menores aquisições. Ainda assim, lembra-te de que a virtude não reside no cofre.
Onde encontrarias ouro puro a fazer-se pão na caçarola dos infelizes?
Em que lugar surpreenderias frágil cobertor tecido de apólices para agasalhar a criança largada ao colo da noite?
Entretanto, se o amor te faz lume no pensamento, arrebatarás à imundície a derradeira sobra da mesa, convertendo-a no caldo reconfortante para o enfermo esquecido, e farás do pano pobre o
abrigo providencial em favor de quem passa, relegado à intempérie.
Uma garganta de pérolas não emite pequenina frase consoladora e um crânio esculpido de pedras raras não deixa passar leve fio de ideação.
Todavia, se o amor te palpita na alma, podes falar a palavra renovadora que exclui o poder das trevas e inspirar o trabalho que expresse o apoio e a esperança de muita gente.
Respeita a moeda capaz de fazer o caminho das boas obras, mas não esperes pelo dinheiro a fim de ajudar.
Hoje mesmo, em casa, alguém te pede entendimento e carinho e, além do reduto doméstico, legiões de pessoas aguardam-te os gestos de fraternidade e compreensão.
Recorda que a fonte da caridade tem nascedouro em ti mesmo e não descreias da possibilidade de auxiliar.
Para transmitir-nos semelhante verdade, Jesus, a sós, sem fiança terrestre, usou as margens de um lago simples, ofertou simpatia aos que lhes buscavam a convivência, confortou os enfermos da estrada, falou do Reino de Deus a alguns pescadores de vida singela e transformou o mundo inteiro, revelando-nos, assim, que a caridade tem o tamanho do coração.
Meimei
Cap. XI – Item 9
Diante do bem, não pronuncies a palavra “impossível”.
Certamente, sofres a dificuldade dos que herdaram a luta por preço das menores aquisições. Ainda assim, lembra-te de que a virtude não reside no cofre.
Onde encontrarias ouro puro a fazer-se pão na caçarola dos infelizes?
Em que lugar surpreenderias frágil cobertor tecido de apólices para agasalhar a criança largada ao colo da noite?
Entretanto, se o amor te faz lume no pensamento, arrebatarás à imundície a derradeira sobra da mesa, convertendo-a no caldo reconfortante para o enfermo esquecido, e farás do pano pobre o
abrigo providencial em favor de quem passa, relegado à intempérie.
Uma garganta de pérolas não emite pequenina frase consoladora e um crânio esculpido de pedras raras não deixa passar leve fio de ideação.
Todavia, se o amor te palpita na alma, podes falar a palavra renovadora que exclui o poder das trevas e inspirar o trabalho que expresse o apoio e a esperança de muita gente.
Respeita a moeda capaz de fazer o caminho das boas obras, mas não esperes pelo dinheiro a fim de ajudar.
Hoje mesmo, em casa, alguém te pede entendimento e carinho e, além do reduto doméstico, legiões de pessoas aguardam-te os gestos de fraternidade e compreensão.
Recorda que a fonte da caridade tem nascedouro em ti mesmo e não descreias da possibilidade de auxiliar.
Para transmitir-nos semelhante verdade, Jesus, a sós, sem fiança terrestre, usou as margens de um lago simples, ofertou simpatia aos que lhes buscavam a convivência, confortou os enfermos da estrada, falou do Reino de Deus a alguns pescadores de vida singela e transformou o mundo inteiro, revelando-nos, assim, que a caridade tem o tamanho do coração.
Meimei
sexta-feira, 13 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE
Capítulo 9
Instalados na sala de visita, os
cônjuges entrefitaram-se de estranha maneira.
Adversários declarados, em
tréguas cordiais.
Dona Márcia definia-se. Espécime
comum das damas que lutam, garbosas,contra as arremetidas do tempo.
Ninguém lhe atribuiriaos quarenta janeirosintegralmente dobados. Os cabelos
abundantes, que os líqUidos medicinais mantinham perfeitamente escuros e
brilhantes, acomodavam-se num penteadogracioso que lhe guarnecia o rosto,
semelhante ao das pessoas que se maquilam para efeitos de arte e que nunca
se deixam analisar realmente sem que a água quantiosa lhes restitua os poros
à carícia da Natureza. Delgada, na magreza característica dos que usam
moderadores do apetite para a manutenção
do peso ideal, apresentava-se em figurino
da alta.
O fundo alvo do linho,
ligeiramente estampado de pequeninas
flores róseas, dava-lhe ao vestido primoroso
certa diafaneidade que lherealçava a beleza quase outoniça.
Era a mesma criatura das telas
mentais de Marina,exibindo-se, porém, de modo diverso, espécie de livro,
claramente identificável, mas exposto numa encadernação mais viva e mais
rica.
Pela herança e pela convivência,
talhara, sem dúvida, o aspecto da filha única, porqüanto, sentada agora,
lembrava Marina em todos os traços, conquanto muito mais asserenada e amadurecida.
Longe de aparentarem a verdadeira condição de mãe e filha, podiam ser
interpretadas à conta de irmãs,salientando-se que Dona Márcia se revelava talvez mais
simpática, pela brandura estudada dos gestos.
Via-se-lhe com tranqüilidade o
sorriso espontâneo, sorriso, no entanto, que mostrava o engenhoso artifício
dos que se distanciam deliberadamente dos problemas alheios para que não
lhes constituam empeço ao avanço. Doçura trabalhada do egoísmo atencioso,
pronto a sorrir, nunca a se incomodar.
Ainda assim, os olhos, ah! os
olhos traíam-lhe a alma sibilina. Fisgados no esposo, pareciam interessados em
agarrar-lhe as mínimas reações, em proveito próprio.
Ela não aspirava a conhecer
qualquer vestígio da conduta dele, anelava encobrir-se. Serena e bem-posta,
renteando o marido, dava a impressão de um viajante hábil, preocupado em
ilaquear o guarda-barreira, a fim de seguir, incólume, caminho adiante, sem largar as
aquisições clandestinas.
Por outro lado, o marido
assemelhava-se ao guarda-barreira, calejado no suborno, mais aplicado em
resguardar-se, que em denunciar viajores, tão matreiros quanto ele próprio. Naquela hora,
sobretudo, em que fora quase detido em
culpa flagrante, esmerava-se em
mesuras.
Amodorrava-se para ouvi-la, com a
pachorra de um cão astucioso que parasse de caminhar, atento às falcatruas
do gato.
Para Cláudio, em tal
circunstância, valia estudar tudo, ouvir tudo. Afinal, aquilo era inevitável. Márcia chegara ao
quarto de Marita num momento
psicológico.
Imperioso esfumar-lhe qualquer
dúvida ocorrente, à custa de uma
tolerância que não mais praticava, desde muito.
Para isso, estirava-se, ali, sossegado e complacente.
Nos dois, porém, flutuava a
desconfiança recíproca. Duas bocas que se entendiam, duas cabeças que
discordavam uma da outra. Cadafrase vinha pré-fabricada na garganta,
dissimulando o pensamento.
Adocicando a voz, a esposa
comentou os aborrecimentos no bufet do baile beneficente em que havia
funcionado. Muita gente. Alguns jovens embriagados, forjando obstáculos. Garotos
furtando. Por tudo isso, estafara-se.
Desconfiando que o marido, não
obstante mostrar-se quase afetuoso, não
se inclinaria a longa conversação,
quis reter o momento raro, tornando-se mais terna.
Afável, estendeu-lhe prateada
carteira.
Cláudio agradeceu. Não queria
fumar. Ela, no entanto, bateu, várias vezes, a ponta do cigarro, de encontro a
pequenina bolsa metálica, fez fogo num isqueiro diminuto, e, após envolver-se em
baforadas, relaxou-se na poltrona, sugerindo a intenção de exprimir-se mais à
vontade.
— Imagine você — aduziu,
cuidadosa —, que embora o sarau esteja longe de terminar, larguei tudo. O leilão
de prendas esperava por mim, qualldo senti um constrangimento esquisito.
Tive medo. Passei minhas
obrigações para Dona Margarida e voltei.
Atormentava-me, supondo houvesse
algo atrapalhado em casa, alguma ligação elétrica esquecida, a presença de
algum malfeitor. Vejo, porém, que você talvez tenha tido o mesmo palpite e
chegou antes, retificando o fogão...
Felizmente, tudo passou... Mesmo assim, reconheço
que o meu regresso foi providencial, pois, desde muitos dias, venho espreitando um
momentinho em que você esteja calmo e
bem-humorado, como agora, para tratarmos, juntos, de assunto sério... Coisa que
nos toca de perto, que não posso
decidir sem você...
Neves e eu notamos, para logo, o
regime de choques e contra choques em que respiravam aquelas duas almas
adversas, aprisionadas socialmente uma à outra, por exigências da provação.
Inferindo que a companheira se
lhe aproveitaria da benevolência eventual para chamá-lo a questões de
responsabilidade, Cláudio despiu a máscara afetiva com que a brindara, de inicio, e,
taciturno, colocou-se em guarda. Do sorriso, tornou ao sobrecenho. Fino sarcasmo
tisnou-lhe os modos. Comandou a palavra, buscando, em vão, disfarçar o azedume.
Afirmou-se fadigado, alegouesgotamento adquirido em horários de serviço extra e
rematou, pedindo à esposa resumisse,
quanto possível, o que tinha a
dizer-lhe. Queria ler, pensar, refazer-se.
A esposa fingiu não ver o olhar
irônico que ele lhe endereçava e começou referindo-se ao cansaço de que se
sentia possuída.
Possivelmente, ele próprio
ignorasse; entretanto, submetera-se a vários exames, por solicitação do
ginecologista. Desde muito, atravessava as noites em claro, sofria palpitações,
sufocações, sensação estranha de peso, calores no peito.
O médico acreditava em menopausa
precoce e receitara. Ela, contudo, supunha-se depauperada, neurastênica.
Exauria-se nos problemas domésticos. A arrumadeira despedira-se. E, desde que se
fora, via-se obrigada a passar roupa, encerar, e, de certo modo, auxiliar no fogão
para que Dona Justa não esmorecesse. O conserto da geladeira custara um dinheirão.
As contas, no fim do mês,haviam aumentado.
Marina trouxera duas
gratificações que recebera em serviço
extraordinário, mas, ainda assim, estava onerada.
Tinha necessidade de quinze mil cruzeiros.
Nesse tópico da entrevista, o
interlocutor fitou-a, sarcástico, e indagou:
— É só?
A interrogação, carregada de
zombaria, pairou no ar damesma forma que uma chicotada cortante.
Dona Márcia emudeceu, ao impacto
da desconsideração inesperada.
O marido não dispensara sequer a
mínima atenção aos padecimentos orgânicos de que se queixara.
Desconhecia-lhe, de propósito, os achaques. Enquanto relacionava os incômodos de que
se via acometida, assustara-se ao
divisar-lhe a dura expressão dos olhos frios.
Conhecia aquela atitude gelada de profundo
desdém. Ao passo que se
lamentava, tinha a impressão de que ele, Cláudio, lhe perguntava em pensamento: «por
que não acaba você de morrer?» Em outras ocasiões, chegara a enunciar
semelhante inquirição, com palavras redondas, claramente pronunciadas e
repetidas. Por que tanto ódio? indagava
a si mesma. Não
contava receber uma ternura que
os atritos incessantes haviam incinerado entre ambos; contudo, cria-se com
direito a pequeno retalho de acatamento. Se ele adoecia, de leve, conquanto não o
amasse, vigiava-lhe a cabeceira. Zurzia o clínico da família pelo telefone. Todas
as providências à hora. Entretanto, ao
referir-lhe o tratamento que reputava
importante, a fim de evitar uma cirurgia comprometedora, recebia dois monossílabos secos
que o marido lhe pespegava no rosto, como se a repelisse com dois calhaus.
Persistindo o silêncio que se
alongava, Cláudio fez menção de
retirar-se; contudo, a esposa frustrou-lhe o
impulso, exclamando, agora irritadiça:
— Não saia. É preciso que você
fique. Esta casa não é minha só. Acaso,
não está vendo?
Marina e Marita... Criam-se os
filhos com desvelo, com carinho... Em crianças, são anjos; crescidos, são
pesadelos. Tenho sofrido calada, mas
agora... Isso não pode continuar sem que você se
mexa. Entre uma e outra, não é possível
a indiferença. Acolhi essa menina
estranha em meus braços como se fosse minha
própria filha. Suportei afrontas,
esqueci minha saúde, meu tempo... Não me poupei, fiz o que pude... Nada lhe
faltou, entretanto, hoje...
— Hoje, o quê? — revidou o
esposo, admirado.
— Pois você não percebe a
humilhação a que Marina se expõe? — acentuou a companheira, em lágrimas súbitas,
qual se estivesse habituada a chorar, quando quisesse. — Você não enxerga as
dificuldades de nossa filha?
Cláudio riu-se, como quem
decidira zombetear.
— Márcia, deixe de cenas... Você
fala em Marina, como se a nossa desmiolada estivesse na forca. Não entendo.
Vejo-a feliz e desorientada, como nunca. Se me detiver em qualquer problema
dela, será para admoestá-la, reprimi-la. Não fosse você com o desregramento de suas
concessões e com os seus maus exemplos, haveria de corrigi-la, ainda que
obrigado a interná-la no hospício...
— Que ouço, meu Deus? — gritou a
senhora.
Estancara-se-lhe o pranto,
alarmada que se achava, ao verificar o rumo improviso do entendimento.
— Você ouve a pura verdade —
prosseguiu Cláudio, implacável.— Ainda ante ontem, impelido por dever da
profissão a comparecer num coquetel, oferecido a um dos chefes, numa casa de
regalias noturnas, fui constrangido a pretextar uma enxaqueca e afastar-me. Sabe por
quê?
Nossa filha, que você pretende inculcar
por santa, estava lá, positivamente nos braços de um cavalheiro maduro e
bem-posto, que não a beijava paternalmente.
Senti tanta vergonha, que pedi a
um colega me representasse, e sai, à pressa, antes que Marina me percebesse.
— Oh! a pobrezinha! ... — objetou
Dona Márcia, faces em fogo, tremendamente revoltada.
Naquele instante, os dois
tiravam, mecanicamente, os últimos disfarces.
Postavam-se, em espírito, um à
frente do outro, com rudeza indissimulável. Dois inimigos soberanos, aversão contra
aversão.
E o diálogo azedo continuou:
— Pobrezinha, por quê?
A esposa mediu-o, de alto a
baixo, com um olhar de zombaria, e passou a acusá-lo:
— Não quero discutir agora a sua
presença de homem velho e casado, numa casa de tolerância, pois não
acredito nessa história de homenagens a chefes, em horas avançadas da noite.
Você foi sempre imoral, indigno,
mentiroso, mas, por amor à família, esqueço tudo isso, para que você conheça
toda a situação...
Refletindo na conveniência de
sensibilizá-lo para os efeitos a que se propunha, Dona Márcia baixou calculadamente
a escala de rispidez, abrandando a inflexão da voz que se tornara por demais
agressiva.
— Cláudio, atenda — continuou
quase melíflua —, Marina, obediente, nunca me ocultou a verdade. Não proceda
com malícia; desde a piora da esposa do senhor Nemésio, vem repartindo,
caridosamente, o tempo, entre as obrigações do emprego e o lar do chefe, onde a infeliz
senhora vem morrendo, pouco a pouco... Impossível que você não lhe admire a
abnegação, porque, de modo algum, precisaria
interessar-se pela vida íntima da
família Torres, a ponto de velar junto deles, por várias noites consecutivas, por
simples espírito de sacrifício...Não sei se você chega a vê-la, quando volta de
manhã, mostrando fundas olheiras e faces pisadas.
Na mente inventiva do
interlocutor, entretanto, operava-se complicada reviravolta. Assinalando as
palavras injuriosas de Dona Márcia, sentira ímpetos de esbofeteá-la. A indignação
ruborizara-o; todavia, conteve-se. Não que desistisse de revidar chasqueando, mas
permanecia convicto de que Marita escutava. Aspirava a
conquistá-la a qualquer preço.
Mormente agora que se declarara, não estava inclinado a recuar. Prosseguiria.
Dona Márcia, enganada, aceitara a
versão do pesadelo e acreditava que a moça dormisse, de vez que lhe recebera
a presença no quarto sem dizer palavra.
Ele, porém, sabia-se ouvido,
examinado. Não adotaria qualquer procedimento incompatível com a galanteria que
começara a desenvolver. Se esbravejasse, agravaria a distância. Deliberou
agüentar remoques e insultos, fossem quais fossem, estudando como
orientar-se na conversa para tirar o melhor partido.
Além disso, o amigo desencarnado,
ao lado dele, acalentava-lhe a rijeza de alma, insuflando-lhe idéias. A
fabulação de um complementava-se no outro.
Concluíam, juntos, que se fazia
mais razoável para eles examinar minudências e falar com intenção. Manejariam
Márcia para alcançar Marita. A interlocutora ser-lhes-ia instrumento.
Usá-la-iam por trampolim, rumo ao alvo.
Todas essas considerações
relampeavam no espírito de Cláudio, enquanto a senhora se empenhava
justificar-se, na defesa da filha. Dominado pelos novos pensamentos, não sorriu, mas
suavizou a expressão, como quem se
resigna aos ditames da paciência.
Algo desarmada por aquela
impassibilidade que se lhe figurava benevolência, Dona Márcia continuou:
— Acontece que o senhor Torres se
encontra francamente desarvorado, diante da tragédia que a fortuna dele
não pode conjurar. Dinheiro farto e coração abatido, negócios prosperando e morte à
vista. Nossa menina compadeceu-se. Tanto amparou a doente que acabou
descobrindo os sofrimentos do homem que se aproxima, conscientemente, da
viuvez... É por isso que vem buscando revigorá-lo, como pode...
— Mas, assim como estão fazendo?
Afogando-se em bebidas e prazeres noturnos, em que os dois se
assemelham a duas crianças destemperadas? Não os vi rezando pela tranqüilidade da
enferma...
— Deixe de ironias. Você, com
toda a certeza, numa situação igual, não se consolaria com lágrimas,
procuraria distrações. Não há inconveniente algum em que o senhor Torres, numa hora
dessas, se dirija para um ambiente alegre, a fim de ganhar forças, e não vejo maldade
em que trate Marina por filha dele
próprio,
afagando-a por boneca mimada que
sempre foi. Muito justo, muito claro. Dona Beatriz e o esposo conseguiram
somente um filho, não tiveram, como nós, a ternura de uma filhinha no lar e nem
adotaram alguma pequenina estranha a eles. Marina dá conta a mim, que sou mãe, de
tudo o que se passa. Você sabe que ela é profundamente sensível e
carinhosa. Tem muita pena do chefe e tenta reconfortá-lo...
— Reconfortá-lo? — gracejou
Cláudio, retomando a galhofa.
— Não adiantam sarcasmos — rogou
Dona Márcia, afetando desapontamento.
— Nossa filha vem agindo
corretamente. Tanto assim que a nossa conversa deve esclarecer grave assunto.
E, alterando o tom de voz, que se
fez mais persuasivo e mais doce:
— Você não ignora que Marita se
enamorou, há meses, de Gilberto, o filho dos Torres.
Vendo, de minha parte, os dois,
em ligação constante, acreditei piamente que o jovem nutrisse por ela uma
inclinação segura.
Misturando reserva e malícia,
passou a historiar-lhe as entrevistas, os passeios, os telefonemas, os bilhetes...
Salientou que se afligira ao apanhálos, a sós, numa excursão domingueira, em plena
floresta da Tijuca, dias atrás. Admitia
que seria preciso examinar-lhes o caso.
Aborrecera-se ao descobri-los, assim,
positivamente
isolados, sob as árvores. Mulher
e mãe, inquietava-se ao pensar na filha adotiva...
Cláudio, nessa altura,
marcava-lhe os avisos, de olhos em fogo e coração aos saltos.
Então Márcia também sabia...
Aquele jeito arisco da esposa nas confidências não o enganava.
Indubitavelmente, ela senhoreava
minúcias que preferia esconder. Não chegava Paquetá. A mataria, igualmente,
fora teatro dos colóquios e beijos que detestava.
Não esperava aquele noticiário
miúdo na própria casa. Não supunha a mulher, assim, consciente da situação de
que se conjeturava exclusivo conhecedor...
Naquele minuto, olvidava a menina
que se lhe desenvolvera-nos braços, anulava-se na condição do pai, chamado a
zelar-lhe o nome. Irrompia nele o animal ferido, o homem selvagem que lhe dormia
habitualmente na polidez, espicaçado pelo ciúme.
Esfregando os dedos contra as
palmas das mãos, num gesto que lhe particularizava o desagrado,
levantou-se, deu alguns passos pela sala e resmungou:
— Ingratidão!
A esposa usufruia a cena com a
volúpia de quem alcançava os próprios fins, porqüanto, desde o princípio da
conversação, aspirava a estabelecer um clima favorável à filha legítima, a
detrimento da outra. Julgava que o marido, com semelhante exprobração, resumia
numa palavra o asco que provavelmente albergaria contra o procedimento
da pupila que desejava arredar. Muito distante da realidade, não percebia que a
indignação dele se arraigava no azedume do apaixonado que se vê preterido e,
por isso, ensaiava um sorriso triunfante...
Nós, porém, conseguíamos
analisar-lhe as telas mentais e verificar quanto lhe doía o desprezo.
Via-se, espiritualmente, ao pé do
jovem, medindo forças. Ah! se lhe fosse dado enxergá-lo, naquela hora, ao
alcance das mãos! Certo lhe despejaria todo o peso da cólera na constituição de menino
e moço, esfrangalhando-lhe os ossos...
— Comove-me a sua reação contra
Mana!... Registrando a frase retícenciosa da companheira, deu-se conta do
papel desaconselhável que começava a assumir.
Quase que se denunciara, de todo.
Ultrapassara os limites da circunspeção que lhe cabia conservar no próprio
interesse e deliberou recompor-se. Reconheceu que Márcia lhe apreciava a repulsa,
crendo vê-lo unicamente nolugar de pai, machucado pelas circunstâncias, e
deixou que ela se acomodasse a essa
interpretação, encastelando-se,
mentalmente, na defensiva. Reprimiu o desespero que o possuia, sentando-se, de
novo, a relaxar os nervos tensos. Apagou exteriormente todos os sinais de
excitação, aparentou calma súbita.
A senhora, que ambicionava
amontoar vantagens para a filha, longe de imaginar-se iludida naquele jogo,
em que marido e mulher se nos representavam dois parceiros astuciosos, nos
golpes estudados um contra o outro, falou serena, presumindo controlar agora toda a
situação:
— Sua atitude respeitável de pai
me encoraja e me alegra. Graças a Deus, sinto em você o chefe da casa e da família.
Cláudio ouvia, atento.
É necessário que você saiba —
prosseguiu ela — que Gilberto não quer coisa nenhuma com Marita, que vive a
derreter-se sem razão, O rapaz é apaixonado por Marina e tudo indica
possibilidades de um casamento vantajoso, que não podemos jogar fora.
O interlocutor ardiloso deduziu
que chegara para ele a oportunidade da vingança. Fingindo desconhecer a
trama de sentimentos em que ambas as jovens se enredavam, comentou, em voz
alta, os novos aspectos do problema, a fim de ser claramente escutado por Marita,
que sabia de atalaia, no quarto próximo. Depois de
encarecer a excelência do caráter
da filha adotiva, destacando o apreço e a ternura com que se dedicaria a
protegê-la, acentuou, jocoso:
— Ah! o biltre!... então, essa
farsa de vaguear com Marita, arrastando-a por aí, não é senão alcovitice e
trampolinagem... O peralta está carambolando. E’ o bilhar dos namorados, bate-se numa bola
para acertar em outra...
E relacionou pobres moças,
traídas na confiança, explicou que Marita era suscetível de uma psicose de
duras conseqüências. Se Gilberto estava propenso a desposar Marina, que se
manifestasse. Não oporia embargos,no entanto, exigia franqueza.
Dona Márcia, repentinamente
lisonjeada, ao colher-lhe as disposições
tão favoráveis, arrolou as
confidências da filha.
O rapaz confessara-se.
Admirava-lhe não só os encantos pessoais, mas gabava-lhe a educação fina. De
começo, apenas se cumprimentavam, de quando em quando. Ele, porém, tivera
necessidade da cooperação de alguém que o auxiliasse na tradução de alguns
textos franceses.
Marina expusera a competência
adquirida, O trabalho realizado erigia-se em característicos tão primorosos
que obtivera louvor na Embaixada. Desde essa empresa, trabalhavam quase que
unidos. Marina revelara-lhe que o próprio senhor Nemésio, sempre solícito, passara
a nomeá-la por nora.
Cláudio, acintosamente, dizia, de
quando em quando:
— Márcia, não estou ouvindo bem,
fale um pouco mais alto.
A companheira, elevando sempre a
modulação da voz, contou que os dois, embora a situação constrangedora
da saúde de Dona Beatriz, no momento, traduziam poesias deliciosas de
autores ingleses, marginando-as de trechos sentimentais que lhes expressavam
a ternura recíproca, compondo lindo álbum cuja leitura lhe arrancara lágrimas de
enternecimento. O amor entre ambos era claro como água. Indispensável apoiarem
a filha, na concretizaçãode suas esperanças.
Afirmava-se confortada em
reconhecer, a tempo, que a cultura de Gilberto não se compadecia com as deficiências
de Marita, para quem o moço não seria, por isso, um partido feliz.
Asseverava, convicta, que competia a ele, Cláudio, e a ela a orientação do assunto. Ponderou
ainda que o auxílio dispensado por Marina a Dona Beatriz estreitara as relações
entre os jovens, e, supondo o esposo agastado à vista de contrariedades prováveis para
a filha adotiva, acrescentou, entre desabrida e chistosa, que Marita se
arranjaria, na época oportuna. Inclinações de moças, problemas delas.
O marido não acreditou em tópico
nenhum do que ouvira. Pai, desiludira-se coma filha. As investidas noturnas
pelos recantos boêmios, as maneiras inconfessáveis, no trato com o chefe de serviço,
não lhe deixavam dúvidas. Ao revés, as
noticias entusiásticas de Márcia
acordavam-no para realidades mais agressivas. Inferia que Marina andava sem escrúpulos
entre o velho e o moço. De outro modo, na condiçãode esposo, não lograria
embair-se. A companheira figurava-se-lhe a mulher desleal aos compromissos domésticos,
mulher que ele mesmo plasmara comos seus exemplos de homem refratário ao
equilíbrio emotivo. Impossível queixar-se. Com a tarimba da sociedade menos digna,
fizera-se Márcia astuciosa, cruel. Dissimulava para ganhar. Certamente, não lhe
confiava quanto sabia. Estaria informada de todas as ligações escusas da filha com
o senhor Torres, tanto quanto ele próprio.
Capearia as inconveniências,
incentivaria, talvez, a leviandade com propósitos de lucro; entretanto, aquele era o
momento de atrair a confiança de Marita
e, à face dessa razão que se lhe alteava no
ânimo empedernido, calou a revolta e partilhou a farsa, afiançando confiar na
menina que amavam por filha. Tentaria distraí-la, renová-la, e, de acordo com ela,
Márcia, procuraria incluí-la num roteiro de turismo aBuenos Aires, para o qual fora
convidado por amigos, no banco. Marita esqueceria, esqueceria.
O entendimento avançava, mas o
serviço nos convocou ao aposentopróximo, onde a mágoa da jovem explodia,
inarticulada, em vibrações de intensa dor.
domingo, 8 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA SANCHES
A RIGOR
Cap. I – Item 7
Espírito Santo – Falange dos Emissários da Providência que
superintende os grandes movimentos da Humanidade na Terra e no Plano Espiritual.
Reino de Deus – Estado de sublimação da alma, criado por ela própria, através de reencarnações incessantes.
Céu – esferas espirituais santificadas onde habitam Espíritos
Superiores que exteriorizam, do próprio íntimo, a atmosfera de paz e felicidade.
Milagre – Designação de fatos naturais cujo mecanismo famili-ar à Lei Divina ainda se encontradefeso ao entendimento fragmentário da criatura.
Mistério – Parte ignorada das Normas Universais que, paulatinamente, é identificada e compreendida pelo espírito humano.
Sobrenatural – Definição de fenômenos que ainda não se incorporam aos domínios do hábito.
Santo – Atributo dirigido a determinadas pessoas que aparentemente atenderam, na Terra, à execução do próprio dever.
Tentação – Posição pessoal de cativeirointerior a vícios instintivos que ainda não conseguimos superar por nós mesmos.
Dia de Juízo – Oportunidade situada entre dois períodos de existência da alma, que se referem à sementeirade ações e à renovação da própria conduta.
Salvação – Libertação e preservação do espírito contra o perigo de maiores males, no próprio caminho, a fim de que se confie à construção da própria felicidade, nos domínios do bem, elevando-se a passos mais altos de evolução.
O Espiritismo tem por missão fundamental, entre os homens, a reforma interior de cada um, fornecendo explicações ao porquê dos destinos, razão pela qual muitos conceitos usuais são por ele restaurados ou corrigidos, para que se faça luz nas consciências e consolo nos corações. Assim como o Cristo não veio destruir a Lei, porém cumpri-la, a Doutrina Espírita não veio desdizer os ensinos do Senhor, mas desenvolvê-los, completá-los e explicá-los “em termos claros e para toda a gente, quando foram ditos sob formas alegóricas”.
A rigor, a verdade pode caminhar distante da palavra com que aspiramos a traduzi-la.
Renove, pois, as expressões doseu pensamento e a vida renovar-se-lhe-á inteiramente, nas fainasde cada hora.
André Luiz
Cap. I – Item 7
Espírito Santo – Falange dos Emissários da Providência que
superintende os grandes movimentos da Humanidade na Terra e no Plano Espiritual.
Reino de Deus – Estado de sublimação da alma, criado por ela própria, através de reencarnações incessantes.
Céu – esferas espirituais santificadas onde habitam Espíritos
Superiores que exteriorizam, do próprio íntimo, a atmosfera de paz e felicidade.
Milagre – Designação de fatos naturais cujo mecanismo famili-ar à Lei Divina ainda se encontradefeso ao entendimento fragmentário da criatura.
Mistério – Parte ignorada das Normas Universais que, paulatinamente, é identificada e compreendida pelo espírito humano.
Sobrenatural – Definição de fenômenos que ainda não se incorporam aos domínios do hábito.
Santo – Atributo dirigido a determinadas pessoas que aparentemente atenderam, na Terra, à execução do próprio dever.
Tentação – Posição pessoal de cativeirointerior a vícios instintivos que ainda não conseguimos superar por nós mesmos.
Dia de Juízo – Oportunidade situada entre dois períodos de existência da alma, que se referem à sementeirade ações e à renovação da própria conduta.
Salvação – Libertação e preservação do espírito contra o perigo de maiores males, no próprio caminho, a fim de que se confie à construção da própria felicidade, nos domínios do bem, elevando-se a passos mais altos de evolução.
O Espiritismo tem por missão fundamental, entre os homens, a reforma interior de cada um, fornecendo explicações ao porquê dos destinos, razão pela qual muitos conceitos usuais são por ele restaurados ou corrigidos, para que se faça luz nas consciências e consolo nos corações. Assim como o Cristo não veio destruir a Lei, porém cumpri-la, a Doutrina Espírita não veio desdizer os ensinos do Senhor, mas desenvolvê-los, completá-los e explicá-los “em termos claros e para toda a gente, quando foram ditos sob formas alegóricas”.
A rigor, a verdade pode caminhar distante da palavra com que aspiramos a traduzi-la.
Renove, pois, as expressões doseu pensamento e a vida renovar-se-lhe-á inteiramente, nas fainasde cada hora.
André Luiz
sexta-feira, 6 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " LIBERTAÇÃO - JULIANA SOLARE E MARIA J. SANCHES
Reencontro
A noite ia avançada, mas o nosso instrutor, vagueando o
olharem torno, parecia consultar a paisagem externa, ensimesmado, pensativo...
Logo após, fitou, enternecido, a filha espiritual que
passara aconvalescer em brando e defendido repouso. Orou, longamente, junto dela, na câmara íntima e, em seguida, veio
anunciar-nos o instante da partida.
Aves tornando ao ninho de esperança e de paz, deveríamos, agora, transportar conosco outros pássaros de asas
semimutiladas que a tormentadas paixões ameaçava. Todos os corações, ali socorridos, demandariam, junto de nós, outros campos de ação regenerativa e redentora. Aquelas entidades sofredoras e amigas, ainda mesmo as que se conservavam nas mediações da loucura pelos desequilíbrios
do sentimento a que se haviam confiado, tinham lágrimas de
alegria e reconhecimento nos olhos. Em cada uma palpitava o anseio
de retificação e de vida nova. Por isto mesmo, talvez, cravavam
o olhar inquieto e jubiloso em nosso orientador, como que a
lhe devorarem as palavras.
– Todos os companheiros incorporados à nossa missão destes dias – avisava Gúbio, paternal –, desde que se mantenham
perseverantes no propósito de auto-restauração, seguem ao nosso lado, com acesso aos círculos de trabalho condigno, onde
estudantes do bem e da luz lhes acolherão, com simpatia, as aspirações de
vida superior. Espero, contudo, que não aguardem milagres na
esfera próxima. O trabalho de reajustamento próprio é artigo de lei irrevogável, em todos os ângulos do Universo. Ninguém
suplique protecionismo a que não fez jus, nem flores de mel às
sementes amargas que semeou em outro tempo. Somos livros vivos de quanto pensamos e praticamos e os olhos cristalinos da
Justiça Divina nos lêem, em toda parte. Se há um ministério humano,
na Crosta da Terra, determinando sobre as vidas inferiores da
gleba planetária, temos, em nossas linhas de ação, o ministério
dos anjos, dominando em nossos caminhos evolutivos. Ninguém trai os princípios estabelecidos. Possuímos agora o que ajuntamos
no dia de ontem e possuiremos amanhã o que estejamos buscando
no dia de hoje. E como emendar é sempre mais difícil que fazer,
não podemos contar com o favoritismo, na obra laboriosa do
aprimoramento individual, nem provocar solução pacífica e imediata para problemas que gastamos longos anos a entretecer. A
prece ajuda, a esperança balsamiza, a fé sustenta, o entusiasmo
revigora, o ideal ilumina, mas o esforço próprio na direção do bem é a
alma da realização esperada.
Em razão disso, ainda aqui, a bênção
do minuto, a dádiva da hora e o tesouro das oportunidades de
cada dia hão de ser convenientemente aproveitados se pretendemos santificadora ascensão. Felicidade, paz, alegria, não se
improvisam. Representam conquistas da alma no serviço incessante de renovar-se para a execução dos Desígnios Divinos.
Felizmente, desde agora estamos abrigados no santuário da boa vontade e, ainda neste instante, cabe-nos não esquecer a promessa
evangélica: “quem perseverar até ao fim, será salvo”. A Graça Celestial, sem dúvida, é um sol permanente e sublime. Urge, porém, a
criação de qualidades superiores em nós, para fixar-lhe os raios e recebê-los. Doce intervalo mostrou-nos o júbilo reinante.
Salutar otimismo transbordava de todos os rostos.
Saldanha, de olhos fitos em nosso dirigente, confundia-nos pelo pranto de contrição purificadora, a correr-lhe,
abundante, dos olhos.
Antes que o nosso instrutor pudesse retomar o fio da palavra encorajadora e vigilante, algumas irmãs entoaram formoso hino de louvor à bondade do Cristo, com visível desassombro no
olhar firme, dantes ansioso e dorido, enchendo-nos o coração de
intraduzível bem estar.
Raios de safirina luz derramaram-se profusamente sobre nós, enquanto as vozes harmoniosas e singelas se espalhavam, em derredor, tangendo-nos as fibras mais recônditas, nos
recessos do ser.
Terminado o cântico melodioso e tocante que nos recordava os pensamentos sublimes de inolvidável Salmo de David, o instrutor retomou a palavra e informou que, não obstante as
santificadas alegrias daquela hora, a batalha não estava finda.
Faltava-nos o epílogo, esclareceu com inflexão mais grave na voz.
Matilde antecipara-se, de modo a esperar-nos em região
intermediária, em cujo clima vibracional lhe seria possível materializar-se,
de novo, aos olhos de todos, realizando o sonhado reencontro espiritual com o
filho deoutras eras que, a breve tempo, nos procuraria na condição de vingador.
Evidenciando manifesta preocupação no olhar muito lúcido, o nosso orientador prosseguiu esclarecendo que Gregório, ciente das novidades havidas no drama de Margarida e informado
acerca da renovação de muitos companheiros e colaboradores dele,
agora francamente inclinados ao bem, entediados da ignorância e doódio, da perversidade e da insensatez, se revoltara contra
ele, Gúbio, dispondo-se a buscá-lo para um ajuste de que se
julgava credor. Explicou, emocionado, que num duelo espiritual, como aquele a esboçar-se, esperava de todos nós o auxilio
eficiente da prece e das emissões mentais de amor puro. Não deveríamosreceber os doestos e insultos de Gregório por ofensas
pessoais, nem levar suas atitudes à conta de maldade ou grosseria.
Competia-nos observar-lhe nos gestos de incompreensão a dor que se lhe cristalizara no Espírito oprimido e inconformado, vendo-lhe
nas palavras, não a maldade deliberada, mas, sim, a eclosão de
uma revolta doentia e infeliz que não poderia prejudicar e ferir
senão a ele próprio.
O pensamento é uma força vigorosa, comandando os mínimos impulsos da alma e, se nos entregássemos à reação espiritual, armada de ódio ou desarmonia, pactuaríamos com a violência, impedindo, não só a manifestação providencial de Matilde, a benfeitora, mas também a renovação de Gregório, que guardava a inteligência centralizada no mal. Emissões de mágoa ou revide colocar-nos-iam em trabalho contra producente. As vibrações de amor fraternal, quais as que o Cristo nos legou, são as verdadeiras energias dissolventes da vingança, da perseguição, da indisciplina, da vaidade e do egoísmo que atormentam a experiência humana.
O pensamento é uma força vigorosa, comandando os mínimos impulsos da alma e, se nos entregássemos à reação espiritual, armada de ódio ou desarmonia, pactuaríamos com a violência, impedindo, não só a manifestação providencial de Matilde, a benfeitora, mas também a renovação de Gregório, que guardava a inteligência centralizada no mal. Emissões de mágoa ou revide colocar-nos-iam em trabalho contra producente. As vibrações de amor fraternal, quais as que o Cristo nos legou, são as verdadeiras energias dissolventes da vingança, da perseguição, da indisciplina, da vaidade e do egoísmo que atormentam a experiência humana.
Além disso, tornou o instrutor bondoso, cumpria-nos
considerar que aquela mente transviada do trilho divino se
caracterizava muito mais pela moléstia do orgulho ferido e impenitente,
que pela perversidade. Gregório era tão somente um infeliz,
quanto nós mesmos em passado próximo ou remoto, acicatado por
rebeliões e remorsos interiores a lhe desajustarem os sentimentos.
Merecia, por isso mesmo, nossa dedicação carinhosa e
confortadora, ainda mesmo que nos visitasse com aparênciasde celerado ou de louco. Nossa conduta, aliás, nada apresentava de surpreendente,
em semelhante capítulo, porque não fora para ensinar-nos outras lições que o Cristo trabalhara em benefício de todos
e padecera na cruz, sem ninguém.
Notificou-nos, ainda, que o sacerdote das sombras se faria acompanhar, em sua vinda até nós, de muitos companheiros tão envenenados mentalmente quanto ele, e que, contra essa equipe
de criaturas inimigas da luz, cabia-nos formar um todo de
defesa harmônica, através da fraternidade legitima, da oração
intercessora e do amor espiritual que se compadece e age em favor da
restauração do bem.
Valendo-se da pausa que se impusera, natural, Saldanha
perguntou ao nosso mentor se não devíamos organizar pelo menos um movimento coordenado de repulsão enérgica, ao que o
dirigente, sábio e amigo, respondeu, sorrindo:
– Saldanha, em companhia do Mestre que abraçamos, só há lugar para o trabalho sadio, com entendimento das lições de
sacrifício e iluminação que nos deixou. Não acredites que um golpe possa desaparecer com outro golpe. Não se cura a ferida,
aprofundando o sulco da carne em sangue. A cicatriz abençoada surge sempre à custa de enfermagem, remédio ou retificação, com
ascendentes de amor. Quem pretende o Reinado do Cristo entrega-se a Ele. Somos
servos. A defesa, qualquer que seja, pertence ao Senhor.
O ex-perseguidor calou-se, humilde.
Decorridos alguns minutos, algo constrangidos afastamo-nos, em bloco, da vivenda em que tantos ensinamentos preciosos havíamos recebido.
Amparados os mais doentes naqueles que se mostravam mais fortes, retiramo-nos, cautelosos, pondo no caminho da zona pré-estabelecida.
Duas horas de jornada, sob a supervisão de Gúbio
perfeitamente treinado em experiências daquela natureza, conduziram-nos ao local desejado.
O campo, em torno, era singularmente belo.
Verdejante planalto, coroado deluar, convidava-nos à
meditação e à prece, e brisas ligeiras e frescas da madrugada como que nos bafejavam o cérebro convidando-nos a reconfortar as
fontes do pensamento.
Nosso instrutor fez sentar em semi-círculo, compelindo-nos a recordar várias cenas evangélicas e informou, com visível
emoção, que, segundo mensagem particular por ele registrada, Gregório e os
dele já se haviam colocado em nosso encalço e que, se alguns dos companheiros procurassem evitar-lhe a presença,
qualquer fuga, em nosso agrupamento, se fazia impraticável,
em virtude de a elevada percentagem de peregrinos, ali
reunidos, se revelarem incapazes de volitação em alto plano, pela
densidade do padrão mental em que se mantinham.
Cabia-nos, pois, agora, a atitude de oração e expectativa
amo-rosa de quem sabia compreender, ajudar e perdoar.
Do zimbório estrelejado desciam valiosos estímulos para nós.
Constelações tremeluziam distantes, enquanto a Lua,
silenciosa e bela, parecia disposta a testemunhar-nos o esforço cristão.
Reparei que o nosso dirigente, insulado na relva macia,
assumia a mesma posição de instrumento mediúnico, qual acontecera na reunião que vínhamos de efetuar, porque me entregou,
confiante, a direção da assembléia, o que aceitei, dentro de preocupação extrema, embora sem hesitar.
Providenciada semelhante medida, Gúbio passou a elevada condição mental, por intermédio da oração.
Acompanhamo-lo, reverentes. Não havia gosto para
conversações estranhas ao problema delicado daquela hora.
Demorávamo-nos em observação expectante, quando ruído longínquo nos anunciou a alteração dos acontecimentos.
O instrutor, não obstante palidíssimo, dando-nos a idéia de que já se achava em comunicação com entidades superiores e imperceptíveis ao nosso olhar, mais uma vez nos exortou ao
silêncio, à paciência, à serenidade e à prece, recomendando-nos seguir todos os fatos, sem revolta, sem mágoa e sem
desânimo.
Não foi preciso esperar muito.
Alguns minutos se desdobraram apressados e Gregório, com algumas dezenas de assalariados, surgiu em campo,
investindo-nos com palavrões que se caracterizavam pela dureza e violência.
Os recém-chegados apareceram acompanhados de grande cópia de animais, em maioria monstruosos.
Noutras circunstâncias, sem a bênção do aviso salutar,
provavelmente teríamos debandado, mas Gúbio, cuja superioridade conhecíamos por experiência própria, ali se mantinha,
resoluto e imperturbável, emitindo ondas deluminosidade intensa,
veiculando forças magnéticas, imponderáveis, que, dirigidas sobre nós, como que nos supria de recursos necessários ao procedimento irrepreensível.
Por mim, ao reparar as máscaras sinistras que se abeiravam de nós, confesso que, em tempo algum, senti tamanha ameaça de medo e tão profundo contágio de confiança.
O sacerdote das sombras avançou para o nosso orientador, à semelhança de general parlamentando na praça, antes de
começar a batalha, e acusou sem rodeios:
– Miserável hipnotizador de servos ingênuos, onde se
alinham tuas armas para o duelo desta hora? Não contente em prejudicar-me os
projetos mais íntimos, num problema de ordem pessoal, aliciaste numerosos
colaboradores meus, em nome de um Mestre que não ofereceu aos que o acompanharam senão
sarcasmo, martírio e crucificação! Acreditas, porventura, esteja eu disposto, por minha vez, a aceitar princípios que relaxam a
dignidade humana? Admites, acaso, permaneça, a meu turno, fascinado pelos feiticeiros de tua estirpe? Traidor da palavra
empenhada, confundir-te-ei os poderes de bruxo desconhecido! Não creio
no amor açucarado que elegeste por senha de luta! Creio na
força que governa a vida e que te dobrará, igualmente, aos meus pés!
Percebendo que o nosso orientador não se erguia, como que chumbado ao solo, compelido por indefinível prostração, não obstante cercado de intensa luz, o sacerdote dos mistérios
negros, acariciando os copos da espada luzente, acentuou, irado:
– Covarde, não te levantas para ouvir-me a acusação justa e digna? Perdeste também o brio, semelhando-te a quantos te
antecederam no movimento de humilhação que persiste no mundo, há quase dois mil anos? Também, noutra época, acreditei na
celestial proteção através da atividade religiosa, nos ideais em que
hoje te empenhas. Entendi, contudo, a tempo, que o Trono Divino
paira distante demais para que nos preocupemos em alcançá-lo. Não
há um Deus misericordioso e, sim, uma Causa que dirige. Essa
causaé inteligência e não sentimento. Encastelei-me, assim, na
força determinativa para não soçobrar. O “querer”, o “mandar” e o “poder” estão em minhas mãos. Se tuas mágicas prevalecem acima dos princípios que consagro e defendo, aceita a luva
que te lanço à face! Combatamos!
Gregório espraiou torvo olhar pela assistência muda e
exclamou:
– Aqui descansam inermes, ao teu lado, os meus colaboradores
que adormeceram, vergonhosamente, ao teu cântico sedutor; entretanto, cada qual deles me pagará, muito caro, a
defecção e a desobediência.
Fixou, com mais atenção, os olhos felinos na assembléia, mas, exceto eu, que deveria permanecer atento à tarefa
direcional que me fora cometida, ninguém ousou modificar a atitude de profunda concentração nos propósitos de humildade e amor a
que fôramos conclamados.
Demonstrando acentuado desapontamento, em face dos insultos
sem resposta, o temível diretor de legiões sombrias abeirou-se, mais estreitamente, de nosso instrutor sereno e bradou:
– Levantar-te-ei, por mim mesmo, usando os sopapos que
mereces.
Antes, porém, que conseguisse ligar o intento à ação,
delicado aparelho luminoso surgiu no alto, à maneira de garganta improvisada
em fluidos radiantes, como as que se formam nas sessões de voz direta, entre
os encarnados, e a voz cristalina e terna de Matilde ressoou, acima de nossas cabeças, exortando-o,
com amorosa firmeza:
– Gregório, não enrregeles o coração quando o Senhor te
chama, por mil modos, ao trabalho renovador! O teu longo período de dureza e secura está terminado. Não intentes contra os
abençoados aguilhões de nosso Eterno Pai! O espinho fere, enquanto o
fogo o não consome; e a pedra mostra resistência, enquanto o fio
d’água a não desgasta! Para a tua alma, filho meu, findou a noite
em que a tua razão se eclipsou no mal. A ignorância pode muito; no
entanto, é simples nada quando a sabedoria espalha os seus avisos.
Não admitas que os monstros danegra magia te alimentem o coração com a felicidade desejável!
O temido perseguidor mantinha-se confundido, semi-aterrado,
ao passo que nós mesmos, os circunstantes ligados à missão de Gúbio, não conseguíamos dissimular a imensa
surpresa que nos dominava, ante o quadro imponente e inesperado.
Compreendi que a benfeitora sevalia dos fluidos vitais de nosso orientador para exprimir-se, naquele plano, qual o
fizera, horas antes, na residência de Margarida.
O sacerdote transviado, num complexo de espanto, rebelião e amargura, tinha agora o aspecto de uma fera enjaulada.
– Acreditas, porventura – prosseguiu a voz materna,
adulçorada –, que o amor pode alterar-se no curso do tempo? Supuseste, um dia, que eu te pudesse esquecer? Olvidaste a imantação de nossos destinos? Peregrine minh'alma através de mil mundos, suspirarei sempre pela integração de nossos espíritos. A luz
sublime do amor que nos arde nos sentimentos mais profundos pode resplandecer nos precipícios infernais, atraindo para o
Senhor aqueles que amamos. Gregório, ressurge!
E, numa inflexão de lágrimas que desarmaria o raciocínio mais enrijecido, acentuou:
– Lembra-te! Deixaste morrer nos séculos os projetos de amor
que traçamos na Toscana e na Lombardia distantes? Esqueceste nossos votos ao
pé dos altares humildes? Olvidaste as cruzes de pedra que nos ouviam as orações? Não prometemos ambos trabalhar em comum pela purificação dos santuários de Deus na Terra? Sempre grande e belo no combate à política venal dos homens, cristalizaste na mente os desvarios do orgulho e da
vaidade, adquiridos ao contacto deuma coroa putrescível. Afogaste ideais preciosos na corrente de ouro mundano e perdeste a
visão dos horizontes divinos, mergulhando-te na sombra dos
cálculos pela extensão do império de teus caprichos. Incensaste a
grandeza dos poderosos do mundo em desfavor dos humildes, incentivaste a tirania espiritual, crendo-te possuidor de autoridade
infalível, e supunhas que o Céu, além da morte, nada mais fosse que
simples cópia dos Tribunais e das Cortes da Terra. Tremendos
desenganos surpreenderam-te o despertar e,embora humilhado e padecente, coagulaste os pensamentos no ácido venenoso da revolta e
eleges-te a escravização das inteligências inferiores por única posição digna de conquistar. Durante séculos, tens sido apenas rude
disciplinador de almas criminosas e perturbadas que o túmulo encontrou na
imprudência e no vício. Não te doerá, porém, filho meu, a triste condição de gênio desprezível? Semelhante pergunta
não morre sem resposta. Falam por ti o imenso tédio do mal e a
profunda solidão interior que presentemente te invadem as horas.
Aprendeste com infinito desapontamento que os tesouros
divinos não repousam em frias arcas de valores amoedados e sabes,
agora, que Jesus dispõe de escasso tempo para freqüentar basílicas
suntuosas, não obstante respeitáveis, porque da escura senda humana emergem soluços de peregrinos sem luz e sem lar, sem arrimo
e sem pão...
Via-se que a benfeitora, quase asfixiada pela emoção,
apresentava enorme dificuldade para continuar, mas, após longa pausa, que
ninguém ousou interromper, prosseguiu, comovida:
– Como pudeste esquecer, por alguns dias de autoridade
efêmera na Terra, as nossas redentoras visões do Cristo angustiado na cruz? Aderiste aos Dragões do Mal pela simples
verificação de que a tiara passageira não te poderia aureolar a cabeça nos
domínios da vida eterna a que a morte nos arrebatou; entretanto, o
Divino Amigo jamais descreu das nossas promessas de serviço
e espera por nós com a mesma abnegação do princípio. Vamos!
Sou Matilde, alma de tua alma, que, um dia, te adotou por filho
querido e a quem amaste como dedicada mãe espiritual.
Calou-se a voz da mensageira, interditada pela corrente de pranto.
Foi então que Gregório, fazendo quanto lhe era possível por manter-se de pé, gritou, como ansioso por fugir a si mesmo.
– Não creio! não creio! Estou só! Consagrei-me ao serviço das sombras e não tenho outros compromissos.
Transbordava-lhe da voz menos altiva um tom de pavor
indescritível. Parecia disposto à fuga, francamente transformado.
Mas, ante a assembléia extática e silenciosa, mantinha-se
magnetizado pela palavra da benfeitora que se fazia ouvir, austera e doce, bela e terrível, escalpelando-lhe a consciência.
Espraiou o olhar de leão ferido através de todos os ângulos do campo
que nos situava e, sentindo-se no centro de quantos assistiam, ali,
atônitos, à cena inesperada, exteriorizou na expressão fisionômica
todo o desespero extremo que lhe vagava n'alma, arrancou a espada
da bainha e bradou encolerizado:
– Vim para combater, não para argumentar. Não temo
sortilégios. Sou um chefe e não posso perder os minutos com palavras tergiversantes. Não admito a presença de minha mãe
espiritual de outras eras. Conheço as artimanhas dos fascinadores e não
tenho outra alternativa senão duelar.
Fitando a delicada forma de luz que pairava no espaço,
acrescentou:
– Por quem és! Anjo ou demônio, aparece e combate! Aceitas meu desafio?
– Sim... – respondeu Matilde, com ternura e humildade.
– Tua espada? – trovejou Gregório, arquejante.
– Vê-la-ás dentro em breve...
Após alguns momentos de ansiosa expectativa, apagou-se a garganta luminosa que brilhava sobre nós, mas leve massa
radiante e disforme surgiu, não longe, à nossa vista.
Compreendi que a valorosa emissária se materializaria, ali mesmo, utilizando os fluidos vitais que o nosso orientador
lhe forneceria.
Júbilo e assombro dominavam a assembléia.
Em poucos instantes, erguia-se Matilde, a nosso olhar, de
rosto velado por véu de gaze tenuíssima. A túnica alva e luminescente, aliada
ao porte esguio e nobre, sob a auréola de safirina luz de que se tocava, traziam à lembrança alguma encantada madona
da Idade Média, em repentina aparição.
Adiantava-se, digna e calma, na direção do sombrio
perseguidor; todavia, Gregório, perturbado e impaciente, atacou-a de longe e empunhou a lâmina em riste, exclamando, resoluto:
– Às armas! às armas!...
Matilde estacou, serena e humilde, embora imponente e bela, com a majestade de uma rainha coroada de Sol.
Decorridos alguns instantes ligeiros, movimentou-se
novamente e, alçando a destra radiosa até ao coração, caminhou para ele, afirmando, em voz doce e terna:
– Eu não tenho outra espada, senão a do amor com que sempre
te amei!
E de súbito desvelou o semblante vestalino, revelando-lhe a individualidade num dilúvio de intensa luz.
Contemplando-lhe, então, a beleza suave e sublime, banhada de lágrimas, e
sentindo-lhe as irradiações enternecedoras dos braços que, agora, se lhe abriam, envolventes e acolhedores, Gregório deixou cair a
lâmina acerada e de joelhos se prosternou, bradando:
– Mãe! Minha mãe! Minha mãe!...
Matilde enlaçou-o e exclamou:
– Meu filho! Meu filho! Deus te abençoe! Quero-te mais que nunca!
Verificara-se, ali, naquele abraço, espantoso choque entre a luz e a treva, e a treva não resistiu...
Gregório, como que abalado nos refolhos do ser, regressara à fragilidade infantil, em pleno desmaio da força que o
sustinha.
Finalmente, iniciara sua libertação.
A benfeitora, enlevada, recolhera-o, enlanguescido, nos
braços, enquanto numerosos membros da sombria falange fugiam espavoridos.
Matilde, vitoriosa, agradeceu em palavras que nos faziam
vibrar as fibras mais recônditas da alma e, em seguida, confiou aos nossos cuidados o filho vencido, asseverando-nos que o
abnegado Gúbio se encarregaria de guardar, por algum tempo, aquele
que ela considerava o seu divino tesouro.
Após abraçar-nos, generosa, desmaterializou-se ao nosso coro de hosanas, a fim de seguir, de mais longe, a preparação do
futuro glorioso.
Refez-se o nosso orientador, reintegrando-se em nosso grupo de serviço.
Edificado, feliz, Gúbio sustentou Gregório, inerte, nos
braços à maneira do cristão fiel que se orgulha de suportar o
companheiro menos feliz. Orou, cercado de claridade santificante,
arrancando-nos lágrimas irreprimíveis de alegria e reconhecimento e, depois, ante a paz que se estabelecera, triunfante e ditosa,
deu por finda a nossa tarefa, dispondo-se a guiar a heterogênea, mas
expressiva coletividade de novos estudantes do bem, recolhidos nos trabalhos de salvação de Margarida, até a importante e
abençoada
colônia de trabalho regenerador.
Surgira, para mim, a despedida.
Tinha meus olhos úmidos de pranto.
O instrutor abraçou-me e, retendo-me junto do coração,
falou, bondoso:
– Jesus te recompense, filho meu, pelo papel que
desempenhaste nesta jornada de libertação. Nunca te esqueças de que o amor vence todo ódio e de que o bem aniquila todo mal.
Quis responder, esclarecendo que somente a mim, discípulo inábil, cabia o dever de gratidão; todavia, incoercível
emotividade prendeu-me a voz.
O orientador, no entanto, leu-me no olhar os sentimentos mais profundos e sorriu, em retirada.
Elói, também, rumou para longe, em busca de outros setores.
E voltando, sozinho, ao meu domicílio espiritual, roguei,
chorando:
– Mestre de Bondade infinita, não me abandones! Ampara-me a insuficiência de servo imperfeito e infiel!
Em torno, reinava insondável e sublime silêncio. Mas,
enquanto o horizonte se tingia de rubro preludiando a festa da aurora, a
estrela matutina brilhava, tremeluzindo aos meus olhos, qual celeste resposta de luz.
--- Fim ---
domingo, 1 de julho de 2012
ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA SANCHES
OS OUTROS
Cap. XIII – Item 13
Dizes trazer o deserto no coração; entretanto, pensa nos outros.
Muitos pisam teus rastros, procurando-te as mãos no grande vazio...
Pára um pouco e perceberá a presença nas sombras da retaguarda.
Enquanto gritas a própria solidão, compreenderás que a voz
deles está morrendo na garganta, através de longos gemidos.
Volta-te e vê.
Compara os teus braços robustos com osossos descarnados
que ainda lhe servem de suporte às mãos tristes em que os dedos mirrados são espinhos de dor. Enxuga o teu pranto e observa os olhos fatigados que te contemplam... Falam-te a história de esperanças e sonhos que o tempo soterrou na areia da frustração.
Referem-se ao frio cortante do lar perdido e à agonia da ramagem nas trevas...
Pára e compadece-te.
Deixa que respirem, ainda mesmo por um momento só, no calor de teu hálito.
Quem poderá medir a extensão da grandeza de uma simples semente, caída na terra que o arado martirizou?
A beleza de um minuto nos ensina, muita vez, a povoar de alegria e de luz a existência inteira.
Diz antiga lenda que uma gota de chuva caiu sobre o oceano que a tormenta encapelarae, aflita, perguntou:
– ”Deus de Bondade, que farei, sozinha, neste abismo estarrecedor?”
O Pai não lhe respondeu, mas, tempos depois, a gota singela era retirada do mar, convertida numa pérola para adornar a coroa de um rei.
Dá também algo de ti aos que bracejam no torvelinho do sofrimento, e, mesmo quepossas ofertar apenas um pingo de amor aos que padecem, tua dádiva será filtrada pelas correntes da angústia humana e subirá, cristalina e luminescente, na direção dos céus, para enfeitar a glória de Deus.
Meimei
Cap. XIII – Item 13
Dizes trazer o deserto no coração; entretanto, pensa nos outros.
Muitos pisam teus rastros, procurando-te as mãos no grande vazio...
Pára um pouco e perceberá a presença nas sombras da retaguarda.
Enquanto gritas a própria solidão, compreenderás que a voz
deles está morrendo na garganta, através de longos gemidos.
Volta-te e vê.
Compara os teus braços robustos com osossos descarnados
que ainda lhe servem de suporte às mãos tristes em que os dedos mirrados são espinhos de dor. Enxuga o teu pranto e observa os olhos fatigados que te contemplam... Falam-te a história de esperanças e sonhos que o tempo soterrou na areia da frustração.
Referem-se ao frio cortante do lar perdido e à agonia da ramagem nas trevas...
Pára e compadece-te.
Deixa que respirem, ainda mesmo por um momento só, no calor de teu hálito.
Quem poderá medir a extensão da grandeza de uma simples semente, caída na terra que o arado martirizou?
A beleza de um minuto nos ensina, muita vez, a povoar de alegria e de luz a existência inteira.
Diz antiga lenda que uma gota de chuva caiu sobre o oceano que a tormenta encapelarae, aflita, perguntou:
– ”Deus de Bondade, que farei, sozinha, neste abismo estarrecedor?”
O Pai não lhe respondeu, mas, tempos depois, a gota singela era retirada do mar, convertida numa pérola para adornar a coroa de um rei.
Dá também algo de ti aos que bracejam no torvelinho do sofrimento, e, mesmo quepossas ofertar apenas um pingo de amor aos que padecem, tua dádiva será filtrada pelas correntes da angústia humana e subirá, cristalina e luminescente, na direção dos céus, para enfeitar a glória de Deus.
Meimei
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