segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES


ORAÇÃO DA MIGALHA
Cap. XIII – Item 5 

Senhor! 
Quando alguém estiver em oração, referindo-se à caridade, faze que este alguém me recorde, para que eu consiga igualmente ajudar em teu nome. 
Quantas criaturas me fitam, indiferentes, e quantas me abandonam por lixo imprestável!... 
Dizem que sou moeda insignificante, sem utilidade para ninguém; contudo, desejo transformar-me na gota de remédio para a criança doente. Atiram-me a distância, quando surjo na forma do pedaço de pão que sobra à mesa; no entanto, aspiro a fazer, ainda, a alegria dos que choram de fome. Muita gente considera que sou trapo velho para o esfregão, mas anseio agasalhar os que atravessam a noite, de pele ao vento... Outros alegam que sou resto de prato para a calha do esgoto, posso converter-mena sopa generosa, para alimento e consolo dos que jazem sozinhos, no catre do infortúnio, refletindo na morte. 
Afirmam que sou apenas migalha e, por isso, me desprezam... 
Talvez não saibam que, certa vez, quando quiseste falar em amor, narraste a história de uma dracma perdida e, reportando-te ao reino de Deus, tomaste uma semente de mostarda por base de teus ensinos. 
Faze, Senhor, que os homens me aproveitem nas obras do bem eterno!... E, para que me compreendam a capacidade de trabalhar, dize-lhes que, um dia, estivemos juntos, em Jerusalém, no templo de Salomão, entre a riqueza dos poderosos e as jóias faiscantes do santuário, e conta-lhes que me viste e me abençoaste, nos dedos mirrados de pobre viúva, na feição de um vintém. 

Meimei 

domingo, 16 de dezembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES


AS ESTATUETAS
Cap. X – Item 14 

O diálogo, à noite, entre as duas senhoras, continuava na copa: 
– Você, minha filha, deve perdoar, esquecer... Lá diz o Evangelho que costumamos ver o argueiro no olho do vizinho, sem ver 
a trave dentro do nosso... 
– Mas, mamãe, foi um insulto! O moço parou à frente da janela, viu as minhas estatuetas e atirou a pedra! 
E Dona Balbina, senhora espírita de generoso coração, prosseguia falando à filha, Dona Rogéria: 
– Ele é um pobre rapaz obsediado. 
– História! É uma fera solta, isto sim! 
– Mas Dona Margarida, a mãe dele, foi sempre amiga... 
– Isso não vem ao caso... Cada qual é responsável pelos próprios atos. A senhora sabe que ele é maior. 
– Precisamos perdoar para sermos perdoados... 
– Ser bom é uma coisa, e outra coisa é ser tolo! Darei queixa à polícia... Somente não queria fazê-lo sem ouvi-la; contudo, Fábio e eu estamos decididos. Meu Fábio já anda cansado do volante... 
Pobre marido!... Dinheiro cavado emcaminhão é duro de ganhar... 
– Meu conselho, filha, é desculpar e desculpar... 
– Mas o prejuízo é de dois mil cruzeiros, além da injúria! 
– Mesmo assim, o perdãoé o melhor remédio. 
– Ah! Que será do mundo, assim, sem corrigenda, sem justiça? 
Nesse instante, alguém bate à porta. 
Ambas atendem. 
O portador comunica: 
– Um desastre! O senhor Fábio trombou uma casa e a parede caiu! 
Mãe e filha correm para o local,que se encontra entulhado de multidão, e vêem a casa acidentada. É justamente a moradia de Dona Margarida, a mãe do rapaz que atirara a pedra. 
O caminhão, num lance estouvado, derribara uma parede lateral e penetrara, fundo, inutilizando todo o mobiliário da sala de refeições. 
Apagara-se a luz no quarteirão e as duas, sem que ninguém as reconhecesse, podiam escutar Dona Margarida, que sustentava uma vela acesa, diante do guarda de trânsito: 
– Peço-lhe – dizia ao fiscal – não abrir processo algum. Não quero reclamações. 
– Mas, Dona Margarida – insistia o funcionário –, a senhora vai ter aqui um prejuízo para mais de quarenta contos! 
– Não importa. Deus dará jeito. “Seu” Fábio e Dona Rogéria são meus amigos de muito tempo. 
As duas senhoras, porém, não puderam continuar ouvindo, pois a voz irritada de Fábio elevou-se da multidão e era necessário socorrê-lo, porque o infeliz estava ébrio. 

Hilário Silva

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE


SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

CAPÍTULO 2

Nogueira, reinstalado no aposento, ensimesmou-se, refletindo, refletindo...
Lá fora, a noite de chumbo e, com ele, o silêncio, apenas entremeado pela respiração sibilante da filha...
Se fosse unicamente Salomão o interventor inesperado! — pensava, cismarento —, e talvez não se permitiria maior detenção no assunto. Aquele vendedor de remédios que lhe confidenciara os sucessos da noite, inspirando-lhe, aliás, gratidão e simpatia, parecera-lhe excelente pessoa; entretanto, na simplicidade bonachona com que se apresentava, poderia não passar do crente de boa-fé, lamentavelmente emblocado na superstição... Agostinho, no entanto, agitava-lhe o espírito.
Comerciante abastado e instruído, não se deixaria enrolar em tapeações.
Conhecia-lhe a agudeza de raciocínio, a honestidade. Além disso, possuiria ocupações mais vantajosas em que aplicar atenção e tempo.
Que doutrina aquela, capaz de induzir um cavalheiro dinheiroso, a entrar em prece, num quarto de hospital, chorando de compaixão por arrasada menina, à beira da sepultura? Que princípios impeliam, assim, um homem educado e rico a esque-cer-se, no socorro aos infelizes, a ponto de tocar-lhes as matérias fecais, imbuído daquele amor, que somente os pais conhecem nas entranhas do coração?
Fitou Marita que dormia, calma, e recordou os dois homens abnegados que lhe haviam trazido alívio, sem nada perguntar... Ele que jamais se aproximara de ensinamentos religiosos, habitualmente tratados por ele com manifesta desconsideração, acolhia-se agora a vasta série de porquês.
Abafado, agoniava-se com a sede de algo... Sem o apoio  fluídico de Moreira, que dedicava todas as energias à moça em decúbito, lembrou o cigarro, mas dizia de si para consigo que não era mais o cigarro o objeto que desejava.
Aspirava a sair, correr ao encontro de Agostinho e Salomão, a fim de perguntar-lhes pela fé em Deus. Anelava inteirar-se de como conseguiam entesourar tanta crença. Ambos haviam suavizado a opressão que lhe supliciava a  filha... Naquele instante, indagava a si mesmo se não era igualmente digno de piedade. Marita repousava no sono das vítimas, que a justiça resguarda na paz inviolável da consciência, enquanto que ele se atormentava na vigília dos réus!... Reconhecia-se enfermo da alma, náufrago que afundava no redemoinho do desespero... Queria agarrar-se a alguém, a alguma coisa. Singela raiz de confiança mantê-lo-ia à margem da queda total!... A solidão asfixiava-o. Tinha fome de companhia.
Sugeri-lhe a leitura. Que ele abrisse o volume com que  fora brindado. O livro conversaria em silêncio, ser-lhe-ia companheiro. Não se comprometesse a digerir-lhe, de vez, todas as instruções.
Consultasse trechos, aqui e ali. Respigasse ideias, selecionasse conceitos.
Assimilou-me a indução e tomou a brochura, compulsando-a.Ainda assim, tentou reagir.
Acusava-se incapaz, inquieto. Não retinha a menor parcela  de serenidade para ler com aplicação ao assunto.
Insisti, porém.
Os dedos nervosos tatearam o índice. Relanceou o olhar, através das legendas.
No capítulo 11º, esbarrou com um item sob o título: «Caridade para com os criminosos». Aquelas sílabas invadiram-lhe o cérebro atribulado quais gazuas de fogo. Sentia-se descoberto por tribunal invisível. Sim! —  monologou, desconsolado — é imprescindível examinar-se. Na própria conceituação, qualificava-se por malfeitor, foragido da grade. Durante o dia inteiro fora visto e acatado, ali, sob aquele teto, como sendo pai carinhoso, mas sabia-se estuprador, filicida...
Carregava a dor irremediável de haver impelido a filha querida à loucura e à morte!... Que condenações enfileiraria aquele volume contra ele? Merecia escutar a própria sentença, junto daquela que lhe caíra sob o golpe aniquilador...
Procurou a folha indicada e oh! surpresa!... O livro nãolhe amaldiçoava a presença. Leu e releu, chorando, aquelas frases que ressumavam brandura e entendimento. Identificou-se à frente de um apelo à fraternidade e à compaixão, que não pintava os delinquentes por seres infernais, ausentes da órbita do Amor Divino.
A pequena mensagem concitava à tolerância e terminava rogando preces, a benefício dos que sucumbem na voragem do mal.
As lágrimas borbotaram-lhe mais profusamente dos olhos!... Aquelas palavras chamavam-no a razão. Percebia que o mundo e a vida devia mestrar banhados de profunda misericórdia.
Classificava-se por matador e achava-se ali, reconsiderando o próprio caminho, com suficiente lucidez para analisar-se e pensar... Aquele  primeiro contacto com as verdades do espírito fendia-lhe, de alto a baixo, a cidadela do ateísmo. Com a sofreguidão do sedento que atravessa longo deserto, mortificado de sede, atirou-se aos textos, de cujos caracteres ideias esclarecedoras e balsâmicas vertiam, sublimes, lembrando torrentes de água pura. Esquadrinhou vários temas...
Adquiriu conhecimentos rápidos acerca da reencarnação e da  pluralidade dos mundos, meditou nas maravilhas da caridade e nos prodígios da fé, através das chamas imortais do Cristianismo que ali renasciam para ele, reaquecendo-lhe o coração!...
Quando olhou o relógio, os ponteiros marcavam duas da madrugada.
Varara quatro horas, mergulhado no livro, sem perceber.Sentia-se outro, O cérebro clareara-se, crivado de pensamentos renovadores que  lhe suscitavam ardentes inquirições. Aquela era uma doutrina que lhe  permitia sentir e indagar livremente, qual filho no regaço de mãe... Em verdade,conjeturava, se Deus não existisse, se não houvesse uma vida, além da Terra, por que se entregava, daquele modo, a tão funda compunção? Se tudo na existência acabaria em animalidade e lodo, que razões lhe ditariam o suplício moral, diante  da filha, que lhe inspirava contraditórios sentimentos?
Amava tanto aquela menina desventurada!... Por que não lograra sustentar-se, na posição de pai, infenção aos impulsos do sexo? que forças o haviam arrastado até à condição do verdugo em que se aviltara? A ideia dar encarnação relampejou-lhe na cabeça. Ele e ela remanesciam de experiências anteriores...
Indubitavelmente, algemada a dominadoras alucinações afetivas, teriam vivido no passado, padecido e chorado juntos!... Aquela devoção por  Marita era para ele comparável ao iceberg que mostra reduzido fragmento, ocultando o peso enorme na vastidão das águas... Naquele momento, algo lhe dizia, na acústica do espírito, que ele, Cláudio, a trouxera, de novo, para o mundo, através da paternidade, a fim de orientá-la com limpeza e abnegação!... A sabedoria da vida restituíra-lhe o carinho, no sorriso filial, por algum tempo, para que retificasseos erros do tirano amoroso que deveria ter sido em épocas passadas e as paixões cujos rescaldos lhe calcinavam agora o coração... As realidades do destino se lhe alteavam do pensamento, belas e difusas, como o brilho dos raios de luz ao fundirem a névoa...
Ainda assim, não se desculpava. Reconhecia ter agravado os próprios débitos.
Entrevendo as realidades da vida Além-Túmulo, apelava para os amigos que vira partir!... Que se apiedassem dele e de Marita! que suplicassem a Deus para trocar-lhe a existência pela dela...
Ele que se classificava pai criminoso expiaria, no mundo espiritual, as próprias faltas, para, em seguida, renascer na Terra, mutilado,  ressarcindo os débitos contraídos. Que ele se afligisse, expungindo as nódoas da  alma; entretanto, que a filha vivesse e fosse feliz!... E, se lhe cabia continuar, ainda, no mundo, transportando no peito a angústia daquela hora, que a deixassem mesmo assim, abatida e muda, em seus braços! Teria forças para carregá-la’ Ser-lhe-ia apoio, refúgio!... Que ela ficasse! que se lhe desse oportunidade de transfigurar, junto dela, todos os caprichos de homem rude em manifestações de amor puro... Aconchegá-la-ia, de algum modo, ao coração. Obteria uma cadeira  de rodas, conduzi-la-ia a qualquer parte. Acolheria sem reclamar quaisquer obstáculos; entretanto, implorava à Providência Divina poupasse Marita ao gládio da morte  para que não faltasse a ele o ensejo de reajuste e reparação!...
Abracei-o, sugerindo-lhe esperança. Que não esmorecesse. Confiasse. Quem estaria na Terra, sem problemas? Quantos, naquela mesma  hora, em outros lugares, se achariam em lutas semelhantes? Aquele volume,  que lhe sacudia o pensamento, se mantinha, ali, qual sinal de trânsito, na estrada do destino. Valia interpretar o remorso por marca vermelha, suscitando parada.
Conviria frear o carro dos próprios desejos e pensar, pensar!... Todos atingimos um dia de reconciliação com a própria consciência; que não  desertasse da luz que lhe acendiam na marcha.
Compreendesse que a lei de Deus não se afirma em condenação, mas sim em justiça e que a justiça de Deus nunca se expressa sem piedade. Que ele meditasse,
concluindo que se nós outros, os homens imperfeitos, já conseguíamos adicionar compaixão à justiça, por que motivo Deus, que é o Amor Infinito, haveria de exercê-la, implacável? Ali, transpúnhamos a escuridão da noite... a alvorada não tardaria e, com ela, o sol diurno que chegava sempre novo!... Que levantássemos todos os sentimentos para a renovação que começava!...
Moreira, que me avistava enlaçado a ele, endereçou-me ansioso olhar, como a inquirir pelas idéias que eu lhe insuflava. Antes, porém, que me viesse substituir, cioso do lugar de conselheiro que me permitia ocupar, apelei para Cláudio, inclinando-o a iniciar, ali mesmo, a obra reparadora.
O bancário não vacilou.
Fundamente enternecido, levantou-se, caminhou na direção da cama e ajoelhou-se à cabeceira.
Confessava a si próprio que, pela primeira vez, depois de muito tempo, fitava o semblante da filha, sem que a mais leve tisna de fascinação sexual lhe alterasse os sentimentos.
Tremeu-lhe o coração, atormentado.
Acariciou-a com uma espécie de ternura que jamais experimentara, deixou que as próprias lágrimas lhe orvalhassem o rosto e suplicou, em surdina:
— Perdão, minha filha!... Perdão para seu pai!...
A rogativa desfaleceu na garganta que os soluços embargavam...
Marita evidentemente não respondeu; no entanto, o afago paternal instilou-lhe energia diferente e tanto Moreira quanto eu próprio registramos, espantados, o gemido que ela desferiu, denotando sinais de retorno asi mesma.
Cláudio, esperançado, desligou-se. O carinho impregnara-se nele de súbito respeito.
Intimamente comparou aquele afeto imaculado que lhe nascia ao lírio alvo que desponta num charco.
Outros gemidos repetiram-se imprecisos, dolorosos...
O genitor escutava-os, ralado de angústia. Daria o que tivesse para traduzir
aqueles vagidos de criança inconsciente... Conjeturou, porém, que eles exprimiam
padecimentos físicos inenarráveis e agoniou-se em choro convulsivo. O ex-vampirizador, transfigurado em servo diligente, ergueu-se, presto, e veio abraçá-lo, no intuito de propiciar-lhe reconforto, mas notei que  os dois amigos jaziam, agora, perto e longe um do outro. Juntos por fora e distantes por dentro. Ombros unidos e pensamentos opostos. Moreira fora atingido pelos acontecimentos, mas não tanto.
Patenteava enorme afeição por Marita, lutava por ela, mas, no fundo, não escondia o propósito de seguir controlando Cláudio, no resguardo de seu próprio interesse.
Identificando o parceiro tocado no coração pelos sentimentos edificantes que a leitura lhe sugerira, revelava o desapontamento semelhante ao de um pianista que surpreendesse o instrumento favorito com as teclas mudas.
Alarmado, desfechou-me perguntas. Sosseguei-o, afirmando que o cérebro de Nogueira se anulava, naquele instante, por arrasadoras comoções; entanto, no íntimo, certificara-me de que ele havia dado um passo adiante e de que o com-panheiro menos feliz deveria elevar-se no mesmo diapasão para desfrutar-lhe a convivência, se não quisesse perder-lhe a companhia.
A mente do bancário emergia daquelas horas reduzidas de  estudo compulsório, sob a tormenta moral, ao jeito de paisagem, quando varrida de terremoto. Nenhuma analogia com o que era antes.
Em razão disso, enfadava-se o outro, melindrado, triste.
Mesmo assim, Moreira retomou o trabalho de manutenção da jovem prostrada.
Nisso, porém, chegaram dois auxiliares, Arnulfo e Telmo,que vinham, da parte do irmão Félix, colaborar no auxílio à menina.
Ambos simpáticos, espontâneos.
Apresentei-os ao mantenedor magnético, surpreso, cuja posição espiritual reconheceram, de pronto; contudo, na gentileza característica dos corações generosos, envidaram todos os esforços para não constrangê-lo com qualquer linha divisória de tratamento. Rodearam-no de otimismo e bondade, qualificando-o na categoria de colega estimável.
Na antevéspera, aquele irmão, que se avalentoava no Flamengo, não aceitaria tal camaradagem; todavia, Marita ali respirava, entre dois mundos... Fatigada, dispneica...
Por Marita, suportava as alterações, sofreava os impulsos.
A madrugada abeirava-se do dia.
Acercamo-nos de Cláudio.
Indispensável fazê-lo descansar, dormir.
Moreira, com iniludível desgosto a se lhe estampar na fisionomia, observou-nos o cuidado, na administração dos passes balsâmicos, aos quais o  paciente aquiesceu sem qualquer contradita.
Aliás é de mencionar-se a sensação de alívio com que Cláudio nos respondeu ao toque sugestivo. Acabava de viver minutos de martírio inominável. Aspirava ao repouso, mendigava esmola de paz.
Todavia, enquanto se lhe relaxavam os nervos tensos à pressão do sono que lhe impúnhamos, brandamente, Moreira a tudo assistia, no crescente desagrado da pessoa que contempla a agitação e a mudança de sua casa, conturbada em serviços de reforma que não pediu. Lançava ondas de azedia  e amargura no sorriso amarelo. Tudo para ele surgia deslocado, revirado... Entre o amigo que lhe fugia ao comando e a jovem, cujo corpo físico se decidia a  preservar, sentia-se atônito, desenxavido...
Compreendendo que não lhe seria lícito incompatibilizar-se conosco, simplesmente à face da assistência que o esposo de Dona Márcia recolhia de nós, aplicou-se com mais veemência às atenções para com a moça, cujos pensamentos mais profundos empenhava-se agora por auscultar.
Marita, a seu turno, porque assimilasse mais amplo montante de força, acabou reassumindo o leme dos centros cerebrais, que ainda se lhe  mantinham à disposição. Recuperou a sensibilidade olfativa, percebia, raciocinava e ouvia com relativa segurança; contudo, estava hemiplégica, nada enxergava e extinguira-se-lhe a fala, de modo irreversível. A princípio, admitiu-se acordando no sepulcro. Ouvira muitas narrações, alusivas a mortos que despertavam no túmulo, lera depoimentos relacionando sucessos dessa ordem e assistira a vários filmes de  horror. De alma opressa, supunha-se num transe desses, estendida ali no leito que tomava por ataúde, no silêncio de aflições inapeláveis... Forcejava por gritar, reclamando socorro; no entanto, veio-lhe a ideia de haver esquecido o processo dearticular as palavras.
Sabia-se pensando com a própria cabeça, mas ignorava agora os movimentos coordenadores da voz. Apesar de tudo, reconhecia-se consciente.
Sentia, memorizava. Recordou os acontecimentos que lhe haviam inspirado o propósito de morrer. Arrependia-se. Se a vida continuava, para que provocar o fim do corpo? — considerava, desditosa. Lembrou as ocorrências da Lapa, a entrevista com Gilberto pelo telefone de Dona Cora, os comprimidos de Salomão, o sono à frente do mar, o desconhecido prestes a assaltá-la, a corrida para o asfalto, a queda
sob o automóvel em movimento... Depois, aquilo ali... O corpo estatelado que lhe parecia de pedra, a consciência ativa, as percepções aguçadas e a incapacidade de expressão... Intimamente, o esforço desesperado para fazer-se notar; no entanto, sentia-se entalada por gargalheira de chumbo. Irritou-se, debalde. Fremia de impaciência, de espanto, de dor... Mágoa e revolta, petitórios e indagações
esmaeciam-se-lhe, imanifestos, no âmago do ser.
Por mais se empenhasse a chorar, desoprimindo-se, as lágrimas se lhe represavam  no peito, sem nenhum canal que lhe extravasasse as agonias.Os olhos, tanto quanto a língua, se lhe figuravam desligados do corpo...
Estaria morta — perquiria a jovem num misto de perplexidade e sofrimento —, ou quase a morrer?
Escutou os passos da enfermeira de plantão e registrou a respiração sibilante do pai, sem a possibilidade de identificar-lhes a presença e,em vão, tentou pedir explicação para o cheiro nauseante que a cercava.
Transcorridas duas horas de angústia recôndita, que Moreira assinalava com acuidade e precisão, a moça como que se aquietou, mentalmente, e perscrutando-lhe, por minha vez, o campo intimo, notei que se fixava lamentavelmente em Marina.
O companheiro desencarnado que, até então, se fazia suporte psíquico de Cláudio e que necessitava de base moral para garantir o  próprio reequilíbrio, encontrou pasto robusto a nova desorientação.
Descobri o perigo, sem poder conjurá-lo.
Percebendo-se demitido da complacência do amigo que se lhe transformara em joguete, procurava-lhe na filha motivos outros em que se  lhe facultasse permanecer atrelado à demência.
De nossa parte, não era possível pressionar a menina acidentada, no sentido de lhe sustar as lamentações. Qualquer dispêndio de energias, além das estritamente necessárias ao seu sustento, poderia precipitar-lhe a desencarnação.
Insciente das complicações que gerava com semelhante procedimento, a filha de Aracélia reconstituiu na imaginação as aperturas da existência. Acusava a irmã por todos os infortúnios. Exibia-lhe a figura na tela  da memória como sendo a inimiga imperdoável... Marina a furtar-lhe as carícias maternas, Marina a surripiar-lhe as oportunidades, Marina a roubar-lhe as afeições. Marina a subtrair-lhe o eleito dos sonhos juvenis...
Não valeram ponderações que lhe endereçávamos, inquietos.
A influência de Moreira, que lhe amimalhava as incriminações, surgia naturalmente muito mais vigorosa para ela, que diligenciava encontrar simpatia e adesão.
Aquela desventurada menina desconhecia os poderes do pensamento. Não sabia que, fora da indulgência e da brandura, invocava desagravo e, assim procedendo, não apenas enredava a família em duras provações, mas igualmente punha a perder o valioso trabalho de recuperação daquele amigo necessitado de afeição e de luz.
O ex-assessor de Cláudio, ao absorver-lhe as confidências mudas, em que relacionava os pesares mais íntimos, dos quais não tivera ele conhecimento, retomava, a pouco e pouco, a brutalidade que, anteriormente, lhe marcava a expressão.
Esvaeciam-se-lhe as melhoras de espírito.
A pretexto de auxiliar a protegida, reavivava os instintos de vingador.
O olhar que se adoçara de compaixão, readquiriu a lividez dos alienados.
Sumiram-se todos os indícios de retorno à sensatez e à humanidade que patenteava, desde o momento em que renteara com a moça abatida.
Inútil seria qualquer tentame para reconduzi-lo à serenidade. Embebendo-se nos queixumes daquela que classificava como sendo para ele a mulher querida, restaurava em si mesmo a selvageria da fera sequiosa de sangue. Respondendo-nos às petições de calma e tolerância, clamava que não, que não... Ninguém o faria renunciar à guerra pela tranqüilidade daquela que amava; alegava desconhecer, até então, o martírio que a irmã lhe aplicara durante a  vida inteira e insistiria no das-forço...
Ao vê-lo abandonar o serviço a que voluntariamente se impusera, incapaz de refletir nas conseqüências da própria deserção, compreendi  que o ex-obsessor convertido em amigo fora assaltado por crise de loucura e  inclinei-me a considerar se o irmão Félix não errara solicitando a permanência de Marita no corpo
desarticulado, tal a extensão dos males que o ex-vampirizador seria capaz de estender, a partir daquela hora; no entanto, reprimi-me... Não! eu não detinha o direito de julgar o companheiro destrambelhado que se afastava de nós, enquanto o sol da manhã se aprumava no céu. O irmão Félix sabia o que fizera e, com certeza, em outro tempo, não me desequilibrara e nem desacertara em ponto menor...
Competia-me simplesmente trabalhar, socorrer. Transferi  nossos encargos às atenções de Arnulfo e Telmo e demandei a residência dos Torres, o único lugar para onde Moreira, a nosso ver, decerto rumaria.
Entrei...
Na casa silente, cochichava-se a medo. Lágrimas no semblante  dos servidores humildes.
Dona Beatriz, em coma, esperava a morte. 
Neves e outros afeiçoados do mundo espiritual rodeavam o leito. Dedicada enfermeira observava a senhora prestes a mergulhar no grande repouso, diante de Nemésio, Gilberto e Marina, que se acomodavam a pequena distância.
Aturdido, porém, verifiquei que Moreira não se achava ainda aí. A surpresa, entretanto, se desfez para logo, de vez que, transcorridos  alguns momentos, o ex-acompanhante de Cláudio, seguido por quatro camaradas truculentos e carrancudos, penetrou, desrespeitosamente, o recinto... E,sem a menor comiseração pela agonizante, acercou-se da filha de Dona Márcia e gritou, encolerizado:
— Assassina!... Assassina!.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


MODIFICAÇÃO

O desvanecimento da força física determinava fenômeno singular em minha alma.
Surpreendia-me enternecido e sentimentalista. Acostumara-me a tratar com o  mundo, dentro do maior senso prático. Estimava a pregação da caridade, convicto, porém, de que a energia seca era indispensável nas relações humanas.
Muita vez, na intimidade de companheiros encarnados e entidades desencarnadas, sentira-me ríspido, contundente.  Fazia  frequentemente  o possível 
por não desmerecer a confiança dos que me  estimavam, entretanto, nem sempre 
sabia ser doce na extensão da personalidade.
Semelhante traço individual, que as lutas ásperas, da experiência humana me  impuseram, representava motivo de não poucos dissabores para mim, porque, no íntimo, aspirava a servir à fraternidade legítima, em nome do Cordeiro de Deus.
“OBREIROS DA VIDA ETERNA” – Nota do autor espiritual. 
Prostrado agora; inesperada sensibilidade passou a dirigir-me.  A renovação de caminhos obrigava-me a esquecer negócios e interesses terrenos.
Não me  era mais possível governar o leme do barco material e esse impositivo, ao que me pareceu, proporcionava-me acesso a mim mesmo.
Afetava-me a necessidade de ternura e compreensão, como se naquelas horas estivessem ingressando na idade juvenil.
O homem da ativa humana, obrigado a defender-se e a preservar o bem dos que lhe eram caros, através de mil modos diferentes, estava passando...
Quanto a isto, a morte gradual era uma realidade.
Redescobria-me, afinal.  Não era eu mais que um homem comum, reclamando socorro e carinho. Trazia  o coração opresso por aflições indizíveis. Se a dispneia  me roubava a  tranquilidade, os  temores povoavam-me o espírito de tristezas  e sombras. Jamais experimentara, antes,  tamanha sensação de exílio e deslocamento.
Na terra, estava cercado de benditas dedicações, por parte das filhas queridas e dos amigos abnegados e, a rigor, não me seduzia o regresso à juventude do corpo.
Seriam saudades do Além o fator determinante da inquietude que me martirizava?
Também não. Reconhecia os meus títulos de homem imperfeito que, de modo algum,  deveria sonhar como paraíso. Esperava-me, naturalmente, laborioso futuro em  qualquer parte.  No entanto, ansiedades dolorosas pesavam-me na alma abatida. Eu, que fazia  guerra às lágrimas, reconhecia-lhes, agora, o sumo poder; represavam-se-me nos  olhos, com frequência, quando, a sós, me entregava às longas meditações. Orava,   fervoroso, mas, ao correr da prece solitária, sentimentalizava-me qual criança. Entrara nas vésperas da total exoneração quanto aos deveres terrestres. Via-me  prestes a deixar o ninho planetário que me abrigara 
por dilatados anos...
A que porto demandaria?!...

domingo, 9 de dezembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES


SE TENS FÉ
Cap. XXVII – Item 11 

Em Doutrina Espírita, fé representa dever de raciocinar com responsabilidade de viver. 
Desse modo, não te restrinjas à confiança inerte, porque a existência em toda parte nos honra, a cada um, com a obrigação de servir. 
Se tens fé, não permitirás que os eventos humanos te desmantelem a fortaleza do coração. 
Transitarás no mundo sabendo que o Divino Equilíbrio permanece vigilante e, mesmo que os homens transformem o lar terrestre em campo de lodo e sangue, não ignoras que a Infinita Bondade converterá um e outro em solo adubado para que a vida refloresça e prossiga em triunfo. 
Se tens fé não registrarás os golpes da incompreensão alheia, porquanto identificarás a ignorância por miséria extrema do espírito, e educarás generosamente a boca que injuria e a mão que apedreja. 
Ainda que os mais amados te releguem à solidão, avançarás para frente, entendendo e ajudando, na certeza de que o trabalho te envolverá o sentimento em nova luz de esperança e consolação. 
Se tens fé, não te limitarás a dizê-la simplesmente, qual se a oração sem as boa obras te outorgasse direitos e privilégios inadmissíveis na Justiça de Deus, mas, sim, caminharás realizando a vontade do Criador, que é sempre o bem para todas as criaturas. 
Se tens fé, sustentarás, sobretudo, o esforço diário do próprio burilamento, através das pequeninas e difíceis vitórias sobre a natureza inferior, como sendo o mais alto serviço que podes prestar aos outros, de vez que, aperfeiçoando a nós mesmos, estaremos habilitando a consciência para refletir, com segurança, o amor e a 
sabedoria da Lei. 

Emmanuel

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


À FRENTE DA MORTE

Todos nós, que estudamos o Espiritismo, consagrando-lhe as forças do coração, somos comumente assediados pela ideia da morte.
Como se opera a desencarnação? Que forças atuam no grande momento? 
De vez que quando, abordamos a experiência de pessoas respeitáveis e concluímos pela expectativa indagadora.
Por minha vez, lera descrições e teses preciosas, relativamente ao assunto, inclusive Bozzano e André Luiz. Desse último, recolhera informações que me sensibilizaram profundamente. Pouco antes de abrigar-me no leito da morte, meditara-lhe  as narrativas acerca da desencarnação de alguns companheiros e,  perante os  sintomas que me assaltavam, não tive qualquer dúvida. Aproximava -se o fim do corpo.

PREPARATIVOS

Não obstante o valor com que passei a encarar a situação e apesar do velho  hábito de convidar os amigos para o meu enterramento, em observações xistosas dos  dias de bom humor, descansei o organismo extenuado, na posição horizontal, mesmo porque me era totalmente impossível agir de outro modo.
O Irmão Andrade, Espírito benemérito dedicado à Medicina, com quem tive a  alegria de colaborar alguns anos, recomendara absoluto repouso e tão insistente se  fizera o conselho que fui obrigado a abandonar as últimas atividades doutrinárias.
O repouso físico, porém, agravava-me a preocupação mental. O impedimento  das mãos impunha-me verdadeira revolução íntima. No silêncio do quarto, os pensamentos como que se me evadiam do cérebro, postando-se ao meu lado a  argumentarem comigo. Alguns em posição simpática, outros em atitude adversa: “Velho Jacob –  proclamavam no fundo  –, você agora deixará as ilusões da carne. Viajará de regresso à realidade. Prepare-se. Que possui na bagagem? Não se esqueça de que a justiça tudo vê, tudo ouve, tudo sabe”.
Por vezes, interpunha recursos. A consciência compelia-me a retroceder aos  problemas nos quais funcionara com desacerto. Todavia, buscava atenuantes às próprias faltas. Alegava incertezas e imperativos da vida.
Confesso, no entanto, que as incursões, dentro de mim mesmo, angustiavam-me o ser. Se a vigília se tornara menos agradável, o sono fizera-se-me doloroso. Não  chegava a penetrar a região dos sonhos. Dispondo-me a dormir, supunha ingressar num modo inabitual de ser, em que a verdade se me patenteava com mais clareza.
Via-me noutra paisagem, noutro clima, ante, conhecido e desconhecido, qual se  estivera perante enorme multidão de pessoas desejosas de se fazerem compreendidas por mim.
De outras ocasiões, minha memória, recusava no tempo. Revia situações alegres e tristes, confortadoras e embaraçosas, de há muito extintas. Novamente no  corpo exausto, sentia extremas dificuldades  para reter as imagens e descrevê-las. O  cérebro acusava vida intensa, mas, no serviço de comunicação com o exterior, sentia-me  esgotado, tal qual um limão espremido.  A fé preparava-me o espírito, ante a grande transição; todavia, os receios  avultavam, as preocupações cresciam sempre.

domingo, 2 de dezembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES


LIÇÕES DO MOMENTO 
Cap. V – Item 4 

Deus é amor invariável e o amor desafivela os grilhões do espírito. 
Se há repouso na consciência, a evolução da alma ergue-se, desenvolta, dos alicerces insubstituíveis do sacrifício. 
Quem não se bate pelo bem, desce imperceptivelmente para as fileiras do mal. 
Junto à correção sempre existe o desacerto, exaltando o mérito do dever na conduta digna. 
Identifique, na dificuldade, o favor da Providência Divina para dilatar-lhe a paz,sentindo, no imprevisto da experiência mais grave, o fulcro de incitamento à perseverança na boa intenção e vendo, na tibiez de quantos imergiram na invigilância, o exemplo indelével daquilo que não deve ser feito. 
Quanto maior a sombra em torno,mais valiosa a fonte de luz. 
Desse modo, a alegria pura viceja entre a dor e o obstáculo; a resignação santificante nasce em meio às provas difíceis; a renúncia intrépida irrompe no seio da injustiça das emulações acirradas, 
e a pureza construtiva surge, não raro, em ambiente de viciação mais ampla. 
Eis por que, em seu círculo pessoal, se entrecruzam mensagens importantes e diversas a lhe doarem o estímulo e a consolação, o entendimento e a claridade de que você carece para ajustar-se espiritualmente, através das lides variadas de cada instante. 
O chefe irritadiço é instrumento providencial da corrigenda. 
O companheiro problemático deixa-nos livre caminho à sementeira da fraternidade sem mescla. 
O engano é precioso contraste a ressaltar as linhas configurativas da atitude melhor. 
A tortuosidade do caminho demonstra a excelência da estrada reta. 
Faça, pois, do momento que transcorre, a lição recolhida para o momento a transcorrer, verificando quantas vezes, em vinte e quatro horas, você é requisitado a auxiliar os semelhantes, e não regateie cooperação. 
Na oficina de trabalho, buscam-lhe a gentileza no amparo de muitos corações que se sentem ao desabrigo. 
Na via pública, esbarram-lhe o passo companheiros que vão e vêm buscando encontrar o sorriso que você pode ofertar-lhes como incentivo à esperança. 
No recesso do lar, o alvorecer encontra-lhe a presença, em novas possibilidades de exaltar a confiança nos Desígnios da Altura. 
Na conversação comum, requisições ostensivas auscultam-lhe a disposição de estender conhecimento e virtude, na enfermagem das chagas morais, entrevistas na modulação das vozes e nos traços dos semblantes, afora variegados ensejos de assistir o próximo, a lhe desafiarem a eficiência e a vigilância, tais como a necessidade interior estampada no silêncio do visitante, o azedume do colega menos feliz, o doente a buscar-lhe os préstimos, o sofredor a rogar-lhe compreensão, a abordagem da criancinha desvalida, a surpresa menos agradável, a correspondência a exigir-lhe a atenção ou o noticiário intranquilo que a imprensa propala. 
Pureza inoperante é utopia igual a qualquer outra e, em razão disso, ignorar a poça infecta é manter-lhe a inconveniência. 
Não menospreze, assim, a lição do momento, na certeza de que renovamos idéias, experiências e destinos, cada dia, segundo as particularidades das manifestações de nosso livre-arbítrio. 

André Luiz 

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE


SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

CAPÍTULO 2

Confrangido, mas sereno, Félix acercou-se de Nogueira, administrou-lhe energias de refazimento e, após levantá-lo, despediu-se, asseverando que voltaria.
Que não me inquietasse, falou, bondoso. Estaríamos juntos, enviaria cooperadores, tomaria providências.
Respondi, sossegando-o. Afeiçoara-me àquela menina que,  afinal, era nossa filha em espírito.
Não, não a deixaria na dura fase da desencarnação.
Entrementes, Cláudio afastou-se, buscando o especialista.
Moreira, que me observava desde a chegada, fitava-me agora com simpatia, que me empenhava em conservar.
Em dado momento, interpelou-me. Amaciou o tom de voz e disse reconhecer-me. Queixou-se.
Vira diversos irmãos desencarnados, avizinhando-se da porta e acenando com asco.
Apontavam Marita com desprezo, referiam-se a figurações despudoradas, traçavam gestos no ar, sugerindo quadros obscenos, e um deles chegara ao desplante de abordá-lo, indagando quem era aquela mulher que transpirava carniça.
Tratei de consolá-lo. Aquilo passaria. Esperávamos companheiros, abastecidos com os recursos necessários, a fim de que isolássemos o recinto.
Satisfazendo-lhe as perguntas, esclareci que, sem querer, assistira ao desastre e condoera-me daquela moça sozinha, jogada no asfalto.
Quis saber minudências; contudo, temendo embaraços, prometi-lhe que, logo aparecesse oportunidade, colheria informes seguros para nós ambos.
Tentando harmonizá-lo com as exigências do serviço que nos defrontava, roguei-lhe permissão para cooperar. Ficaria contente se ele me aceitasse o concurso, ali, ao pé daquela jovem que a provação humilhava. Colhera alguma experiência em hospitais e poderia ser útil.
Moreira comoveu-se e aprovou a ideia. Sim, aclarou, devotava-se a ela, com ardente afeição, e me reconhecia o desinteresse em servi-la. Contaria comigo, reportou-se a compensações.
Conhecia meios de auxiliar-me, defender-me-ia, ser-me-ia companheiro fiel.
Em seguida, examinou curiosamente o processo pelo qual a  respiração de Marita era auxiliada e pediu-me instruções. Queria substituir-me. E com tanta diligência e humildade se colocou no meu posto que, em minutos breves, atendia à manutenção da jovem, com segurança superior àquela que me esforçava em cultivar.
Procurei adestrá-lo. Obedeceu docilmente e guardou nos braços aquele corpo amarrotado, que se transfigurara num fardo de dor, salpicado de fezes. O perseguidor da véspera, tocado no âmago, enlaçou-a com a  dignidade de um homem piedoso que socorre uma irmã, empregando-se no trabalho de instilar-lhe energias e reaquecer-lhe os pulmões com o próprio hálito.
Sensibilizado, ao identificar-lhe a transformação, concluí que nem sempre é o salva-vidas, tecnicamente construído, a peça que assegura a sobrevivência do náufrago, e sim o lenho agressivo que teimamos em desdenhar.
Retirei-me, por instantes, à busca de Cláudio e encontrei-o em compartimento próximo. Valia-se do intervalo, em que era constrangido a esperar pelo médico, para telefonar.
A voz inconfundível de Dona Márcia vinha do outro lado. O esposo falava, sob traumatismo evidente; ela, no entanto, não respondia fora da destreza mental que lhe conhecíamos. Folgava em saber que a filha estava ainda viva. Melhor encerrassem o assunto. Se a Medicina já estava em cena, desistia de aumentar as aflições que lhe inçavam a casa.
Nogueira passou do noticiário às súplicas. Seria conveniente que ela viesse amenizar a situação.
A senhora, porém, mencionou compromissos inadiáveis. Estava de saída para a aquisição de linhas, destinadas à confecção de vários enfeites encomendados por Marina. Compreendia que a moça talvez não se recuperasse; entretanto, inclinava-se a crer que tudo não passava de episódio sem importância. Marita sempre fora exagerada em questões de sensibilidade, gostava da ostentação de ridículo. Além disso, se estivesse tão mal quanto o marido supunha, ele, na condição de pai, se achava lealmente junto da filha, eximindo a ela, Dona Márcia, de sacrifícios maiores do que aqueles que já lhe sobrecarregavam os ombros. Fez chiste, mascarando de sarcasmo o desapontamento com que recolhia a informação de que a filha adotiva não estava morta, impelindo todos os constrangimentos da família à estaca zero.
Recordou ao esposo que o Rio não era interior e que doente algum se podia dar ao luxo de contar com mais de uma pessoa, acalentando o leito, numa capital que excedia o tamanho de Babilônia. Declarou-se cansada de bobagens e arrufos entre jovens namorados e afirmou preferir tricotar a fazer adulação para uma filha que não era dela e que sempre timbrara em loucura e faniquito. Rematava, aconselhando para que não se complicassem com despesas. Que ele ouvisse os médicos e removesse a menina, quanto antes, para casa.
Nogueira, desolado, insistiu, pintando o quadro em que se contristava; entretanto, a senhora encerrou a conversação, atirando-lhe uma frase que lhe despedaçou as últimas esperanças:
— Bem, Cláudio, tudo isso é problema seu.
Nogueira discou para a residência dos Torres.
Marina ainda não voltara.
Desacoroçoado, chamou para a casa do chefe. Atendido, prestou sucinto relatório da apertura, indagando sobre a concessão de férias no banco. O diretor sossegou-o. Compreendia a emergência, também era pai. Não apenas despacharia favoravelmente a petição, mas se colocava igualmente ao dispor dele para qualquer eventualidade.
Tornando ao aposento onde Moreira velava, entrou em conversação com a facultativo de serviço.
O médico registrou-lhe a inquietude e compadeceu-se. Asseverou que era cedo para um pronunciamento mais claro. Empreenderia exames, prescrevera transfusões de sangue e antibióticos, estudaria as reações. Mesmo assim, não dispensaria a consideração de um neurologista, na hipótese de surgirem complicações, em vista da pancada forte, havida no crânio.
Nogueira concordou e, humilde, solicitou permissão para instalar-se junto da filha. Não se queixaria de preços, advogava para ela o melhor tratamento.
O clínico prometeu cooperar, favorecer. 
Daí a instantes, Marita foi novamente transferida de quarto, onde Cláudio, Moreira e eu passamos a intimidade mais ampla. Aqueles dois Espíritos, que se avalentoavam por bagatela, manifestavam -se agora diferentes, submissos.
O esposo de Dona Márcia trazia os olhos marejados de pranto. Partira-se-lhe a alma. A convicção de que a filha tentara o suicídio, por culpa dele, requeimava-lhe o coração, qual lâmina esfogueada que se lhe enterrasse no peito. De tantos escândalos escapara, de tantas proezas se ocultara, impassível; entretanto, aquele corpo abatido que a morte espreitava parecia encerrar-lhe o destino. Sentia-se arrasado, a ponto de não lhe importar nem mesmo a confissão de todos os delitos da existência, em praça pública... Delitos que supunha para sempre esquecidos, nos escaninhos do tempo, assomavam-lhe agora à lembrança exigindo reparação...
Sobretudo, Aracélia!... A genitora de Marita que ele próprio aniquilara, a peso de sarcasmo e ingratidão, parecia alcançá-lo pelo túnel da consciência... A imagem daquela moça inexperiente da roça crescia-lhe por dentro. Lastimava-se, acusava, perguntava pela filha, pedindo-lhe contas!...
Conjeturava-se Nogueira às portas da loucura. Não fosse a  resolução de recuperar a filha prostrada, usaria o revólver contra si mesmo. Afigurava-se-lhe o suicídio como sendo a válvula de livramento. Adotá-lo-ia, raciocinava, taciturno. Se Marita morresse, não desejava sobreviver.
Cerrar-lhe-ia os olhos e destruir-se-ia sem compaixão. Ao passo que as reflexões amargas lhe obscureciam a mente, colava-se Moreira aos pulmões da triste menina, num espetáculo comovedor de paciência e dedicação. De minha parte, assinalava-lhe o devotamento sincero, os propósitos puros. O corpo injuriado
não lhe inspirava repugnância. Enlaçava Marita com a veneração de quem se consagra a uma filha padecente para quem todos os cuidados e todos os carinhos são sempre escassos... De quando em quando, passava uma das mãos no rosto para enxugar as lágrimas...
Aquele Espírito que eu conhecera áspero e agreste amava profundamente, porque é preciso amar a alguém, com extremada ternura,para sorver-lhe com alegria o hálito fétido e acariciar-lhe a pele manchada de excrementos, com o enlevo de quem preserva um tesouro imensamente querido ao coração...
O silêncio era apenas cortado, de vez em vez, pelos movimentos da enfermeira que vinha fiscalizar o soro a descer no braço, gota a gota,ou aplicar injeções, segundo os avisos médicos.
O dia avançava. Três da tarde. Calor. Para Cláudio, as horas assemelhavam-se a correntes que arrastava no cárcere do remorso. A noção de isolamento agigantou-se-lhe no espírito. Voltou ao telefone e procurou por Marina.
A filha atendeu. Palestraram.
Cientificara-se do acidente por Dona Márcia; no entanto, esperava que a ocorrência desagradável não passasse de susto. Não, não lhe era possível comparecer no hospital. Dona Beatriz, que passara a considerar igualmente por mãe, piorara muitíssimo. Aguardava-se-lhe o fim, a qualquer hora. Que o pai a desculpasse; entretanto, admitia que a irmã devia estar satisfeita ao saber-se assistida por ele. Impossível pedir mais.
Nogueira regressou ao quarto, esmagado pelo desânimo.
Ninguém para migalha de apoio, ninguém a entender-lhe o suplício moral.
Às cinco, no entanto, alguém apareceu, um velho que solicitara a recomendação de clínico prestimoso.
A sós com Nogueira, apresentou-se.
Era Salomão, o farmacêutico.
Declarou-se amigo da moça acidentada. Estimava-lhe a lhaneza de trato, apreciava-lhe as gentilezas. Vizinho da loja, partilhava com ela o café, quando obrigado ao lanche fora de casa.
Surpreendera-se com a notícia do atropelamento e deliberara visitá-la, mesmo porque acreditava tivesse sido um dos últimos amigos que Marita ouvira na véspera.
E, diante da curiosidade e do reconhecimento do interlocutor, narrou quanto sabia, pormenor a pormenor.
Evidente, concluiu, que alguma desilusão recôndita lhe ditara o gesto desesperado. Recordava-se, perfeitamente, de lhe haver notado o pranto que ela, em vão, buscava disfarçar. Teria ingerido os soporíficos que  lhe dera, e, identificando-lhes o caráter inofensivo, certamente que se projetara sob um automóvel em disparada...
Cláudio ouviu, chorando... Intimamente, aceitou a hipótese. Sem dúvida, a filha não pudera sobreviver ao insulto de que ele próprio se acusava. Aquele desconhecido confirmava-lhe as impressões. Refletiu no suplício moral da jovem humilhada, antes de se lançar ao gesto infeliz, sentiu-se o mais abjeto dos homens,
no arrependimento que lhe azorragava todas as fibras da  consciência, e agradeceu ao interlocutor, sofreando os soluços. Abraçou Salomão, num impulso de louvável sinceridade, e salientou que ele, o visitante gentil, era o verdadeiro e talvez o único amigo daquela criança que procurara a morte e que tudo fariam para reaver.
O farmacêutico apiedado arriscou um alvitre. Confessou-se espírita e assinalou que os passes, sob a cobertura da oração, beneficiariam a menina prostrada.
Ignorava quais os princípios religiosos de sua família; entretanto, possuía um amigo, o senhor Agostinho, a quem poderiam recorrer. Confiava  na prece, no amparo espiritual. Se Cláudio permitisse, buscá-lo-ia. Nogueira aceitou com humildade.
Afirmou-se sozinho. Não lhe seria lícito recusar um auxílio que lhe era oferecido com tanta espontaneidade. Apenas admitiu que se via na obrigação de rogar o consentimento das autoridades.
O facultativo, que lhes atendeu ao chamado, ouviu a petição. Homem experimentado em angústias humanas, fitou Marita, não  só com a inteligência do técnico que observa um aparelho, a caminho do desmonte para verificações finais, mas também com o sentimento de um pai afetuoso, e asseverou que Cláudio dispunha do direito de prestar à filha a assistência religiosa que desejasse, e que, em se abstendo de ferir o regulamento da instituição, fora do quarto, ali estava como em sua própria casa.
Compadecido, ele mesmo favoreceria a vinda de Salomão como espírita que indicasse. E, às oito da noite, o boticário de Copacabana entrou com o amigo que carregava pequeno pacote, em que se encontrava um livro.
Nogueira espantou-se. Aquele homem, que o saudava fraternalmente, e que lhe era apresentado por senhor Agostinho, frequentava o banco, onde se alinhava entre os clientes mais respeitados. Conhecia-lhe a posição de comerciante distinto, conquanto não lhe desfrutasse a intimidade. Entretanto, se o recém-chegado o reconhecia, não dava qualquer mostra. 
Interessou-se delicadamente pela moça e inteirou-se de todas as minudências do desastre, com as atenções de quem escuta a própria família. 
Logo após, entre Cláudio e Salomão, orou, emocionado. Suplicou a bênção do Cristo para a menina atropelada, qual se expusesse, diante de Jesus invisível, uma filha profundamente cara, e, em seguida, ministrou-lhe passes de longo curso com o devotamento de quem lhe transferia as próprias forças.
Cooperamos com ele, sob o olhar penetrante de Moreira,que tudo anotava como que sequioso de aprender.
A operação, saturada de agentes reconstituintes do plano  físico, infundiu grande bem à moça, melhorando-lhe a condição geral. Relaxou-se-lhe mais intensamente o esfíncter da micção, a respiração desoprimiu-se e conseguiu entrar em sono calmo.
Cláudio solicitou a presença da enfermeira e, enquanto  a serviçal modificava a rouparia, os três conversaram em saleta próxima. Informado, então, de que Nogueira jamais tivera contacto com princípios religiosos, Agostinho ofereceu-lhe o livro que trazia, um exemplar de «O Evangelho segundo o Espiritismo», e prometeu voltar na manhã seguinte.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


TENTATIVA E APRENDIZADO

Depois de variadas experiências, vim a Pedro Leopoldo pela primeira vez, após a libertação.
Como se me afigurou diferente o grupo que eu visitara, em agosto de 
1937, em companhia do meu prezado Watson!
A casa humilde estava repleta de gente desencarnada.  Os companheiros, ao redor da mesa, eram poucos. Não excedia de vinte o  número de pessoas no recinto. As paredes como que se desmaterializavam, dando  lugar a vasto ajuntamento de almas necessitadas, que o orientador da casa, com a  colaboração de muitos trabalhadores, procurava socorrer coma palavra evangélica.
Entrei, ladeando três irmãos, recebendo abraços acolhedores.
Notando os cuidados do dirigente, prevendo as particularidades da reunião,  recordei os Espíritos controladores a que se referem comumente nossos companheiros da Inglaterra.
Estávamos perante equilibrado diretor espiritual.  Todas as experiências e 
realizações da noite permaneciam programadas.  Incontáveis fios de substância escura partiam, como riscos móveis, das  entidades perturbadas e sofredoras, tentando atingir os componentes da pequena  assembleia  de encarnados, mas, sob a supervisão do mentor do grupo, fez-se belo traço de luz, em torno do quadrado a que vocês se acolhiam, traço esse que atraía as  emanações de plúmbea cor, extinguindo-as.
Explicou-me um amigo que as pessoas angustiadas, sem o corpo físico. Em agosto de 1937, o Autor esteve pessoalmente em Pedro Leopoldo, acompanhado de um amigo. 
projetam escuros apelos, filhos da tristeza e da revolta, nas casas de fraternidade cristã em que se improvisam tarefas de auxílio.
Enquanto vocês oravam e atendiam a solicitações entre os dois mundos, observei que trabalhadores espirituais extraíam de alguns elementos da reunião; grande cópia de energias fluídicas, aproveitando-as na materialização de benefícios para os desencarnados em condições dolorosas. Não pude analisar toda a extensão do serviço que aí se processava, mas esclareceu-me dedicado companheiro que em todas  as sessões de fé religiosa, consagradas ao bem do próximo,  os cooperadores dispostos  a auxiliar com alegria são aproveitados pelos mensageiros dos planos superiores, que  retiram deles os recursos magnéticos que Reichenbach batizou por “forças ódicas”,  convertendo-os em utilidades preciosas para as entidades 
dementes e suplicantes.
Minha mente, contudo, interessava-se na aproximação com o médium, fixa na ideia de valer-se dele para contato menos ligeiro com o mundo que eu havia deixado.
Rompi as conveniências e pedi a colaboração do supervisor da casa, embora o  respeito que a presença dele me inspirava. Não me recebeu o pedido com desagrado. Tocou-me os ombros, paternalmente, e acentuou, esquivando-se:
—  Meu bom amigo, é justo esperar um pouco mais. Não temos aqui um serviço  de mero registro. Convém ambientar a organização mediúnica. A sintonia espiritual exige trato mais demorado.
Lembrei-me, então, imperfeito e egoísta que ainda sou, de André  Luiz. Ele não  fora espiritista; no entanto, começara, de pronto, o noticiário do “outro mundo”. O  diretor, liberal e compreensivo, mergulhou em mim os olhos penetrantes, como se  estivesse a ler as páginas mais íntimas de meu coração e, sem que eu enunciasse o que pensava, acrescentou, humilde:
—  Não julgue que André Luiz haja alcançado a iniciação, de improviso. 
Sofreu  muito nas  esferas purificadoras e frequentou-nos a tarefa durante setecentos dias  consecutivos, afinando-se com a instrumentalidade. Além disto, o esforço dele é  impessoal e reflete a cooperação indireta de muitos benfeitores nossos que respiram em esferas mais elevadas.
E passou a explicar-me as dificuldades, indicando os óbices que se antepunham  à ligação e relacionando esclarecimento científicos que não pude guardar de memória.
Em seguida, prometeu que me auxiliaria no instante oportuno.
Realmente, estava desapontado, mas satisfeito.
Avizinhara-me dos amigos, incapaz de fazer-me percebido; entretanto, começava a entender, não somente os empecilhos naturais no intercâmbio do desprendimento e da renúncia, na obra cristã que o Espiritismo, com Jesus está realizando em favor do mundo.

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


PRIMEIRAS VISITAS

As primeiras visitas que efetuei, junto aos núcleos doutrinários, 
verificaram-se  justamente no Rio. Minha atual situação, contudo, era muitíssimo reduzida. Quando no  corpo, identificava somente reduzida região de trabalho. 
Acompanhado de amigos que  me conduziam solícitos, reparava agora um mundo 
novo, de aspecto intraduzível.
As casas espiritistas, em função de estudo e socorro, eram verdadeiras 
colmeias  de entidades desencarnadas. Algumas, em serviço de benemerência 
evangélica;  outras, e em número imenso, vinham à cata de alívio e esclarecimento, 
a lembrar-nos multidões de acidentados às portas dos hospitais de emergência.
O volume das obrigações agigantou-se aos meus olhos.  Compreendi, então, de quanta abnegação temos necessidade, a fim de  perseverarmos no bem, 
até ao fim da luta, segundo os ensinamentos de Jesus.
Minha primeira impressão foi negativa. No fundo, cheguei a admitir, por alguns  instantes, a incapacidade da colaboração humana, ante a imensidão do serviço;  todavia, a palavra de companheiros experientes reergueu -me o bom ânimo.  Sementes minúsculas produzem toneladas de grãos que abastecem o mundo;  assim também, os germes da boa-vontade improvisam atividades  heroicas a edificação humana.
Essa conclusão tranquilizou-me e tive a alegria de fazer-me notado em ários  centros da doutrina, valendo-me da cooperação de alguns médiuns que me interpretaram a personalidade. As oportunidades, porém, não me ofereciam recursos ao noticiário mais completo.
Comecei a guerrear meu individualismo gritante e,  examinando a respeitabilidade dos interesses alheios, não me senti suficientemente  encorajado a interferências que redundassem ao prejuízo do bem geral.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES


CARTA A MEU FILHO
Cap. XIV – Item 9 

Meu filho, dito esta carta para que você saiba que estou vivo. 
Quando você me estendeu a taça envenenada que me liquidou a existência, não pensávamos nisso. 
Nem você, nem eu. 
A idéia da morte vagueava longe de mim, porque esperava de suas mãos apenas o remédio anestesiante para a minha enxaqueca. 
Entendi tudo, porém, quando você, transtornado, cerrou subitamente a porta e exclamou com frieza: 
– Morre, velho! 
As convulsões que me tomavam de improviso, traumatizavam-me a cabeça... 
Era como se afiada navalha me cortasse as vísceras num braseiro de dor. 
Pude ainda, no entanto, reunir minhas forças em suprema ansiedade e contemplar você, diante de meus olhos. 
Suas palavras ressoavam-me aos ouvidos: – “morre, velho!” 
Era tudo o que você, alterado e irreconhecível, tinha agora a dizer. 
Entretanto, o amor em minh’alma era o mesmo. 
Tornei à noite recuada quando o afaguei pela primeira vez. 
Sua mãezinha dormia, extenuada... 
Pequenino e tenro de encontro ao meu peito, senti em você meu próprio coração a vagir nos braços... 
E as recordações desfilaram, sucessivas. 
Você, qual passarinho contente a abrigar-se em meu colo, o álbum de fotografias em que sua imagem apresentava desenvolvimento gradativo em todas as posições, as festas de aniversário e os bolos coloridos enfeitados de velas que seus lábios miúdos apagavam sempre numa explosão de alegria... Rememorei nossa velha casa, a princípio humilde e pobre,que o meu suor convertera em larga habitação, rica e farta... Agoniado, recordei incidentes, desde muito esquecidos, nos quais me observava expulsando crianças ternas e maltrapilhas do grande jardim de inverno para que nosso lar fosse apenas seu... Reencontrei-me, trabalhando, qual suarento animal, para que as facilidades do mundo nos atendessem as ilusões e os caprichos... 
Em todos os quadros a se me reavivarem na lembrança, era você o grande soberano de nosso pequeno mundo... 
O passado continuou a desdobrar-se dentro de mim. Revisei nossa luta para que os livros lhe modificassem a mente, o baldado esforço para que a mocidade se lhe erigisse em alicerce nobre ao futuro... De volta às antigas preocupações que me assaltavam, anotei-lhe, de novo, as extravagâncias contínuas, os aperitivos, os bailes, os prazeres, as companhias desaconselháveis, a rebeldia constante e o carro de luxo com que o presenteei num momento infeliz... 
Filho do meu coração,tudo isso revi... 
Dera-lhe todo o dinheiro que conseguira ajuntar, mas você desejava o resto. 
Nas vascas da morte, vi-o, ainda, mãos ansiosas, arrebatando-me o chaveiro para surripiar as últimas jóias de sua mãe...Vi perfeitamente quando você empalmou o dinheiro, que se mantinha fora de nossa conta bancária, e, porque não podia odiá-lo, orei – talvez com fervor e sinceridade pela primeira vez – rogando a Deus nos abençoasse e compreendendo, tardiamente, que a verdadeira felicidade de nossos filhos reside, antes de tudo, no trabalho e na educação com que lhes venhamos a honrar a vida. 
Não dito esta carta para acusá-lo. 
Nem de leve me passou pelo pensamento o propósito de anunciar-lhe o nome. 
Você continua sangue de meu sangue, coração de meu coração. 
Muitas vezes, ouvi dizer que há filhos criminosos, mas entendo hoje que, na maioria das circunstâncias, há, junto deles, pais delinquentes por acreditarem muito mais na força do cofre que na riqueza do espírito, afogando-os, desde cedo, na sombra da preguiça e no vício da ingratidão. 
Não venho falar, assim, unicamente a você, porque seu erro é o meu erro igualmente. Falo também a outros pais, companheiros meus de esperança, para que se precatem contra o demônio do ouro desnecessário, porque todo ouro desnecessário, quando não busca o conselho da caridade, é tentação à loucura. 
Há quem diga que somente as mães sabem amar e, realmente, o regaço materno é uma bênção do paraíso. Entretanto, meu filho, os pais também amam e, por amar imensamente a você, dirijo-lhe a presente mensagem, afirmando-lhe estar em prece para que a nossa falta encontre socorro e tolerância nos tribunais da Divina Justiça, aos quais rogo me concedam, algum dia, a felicidade de tê-lo novamente ao meu lado, por retrato vivo de meu carinho... Então nós dois juntos, de passo acertado no trabalho e no bem, aprenderemos, enfim, como servir ao mundo, servindo a Deus. 

J. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


PONDERAÇÕES NECESSÁRIAS

Retomando a mim mesmo, após desvencilhar-me do corpo grosseiro, a preocupação de voltar ao reino dos amigos era o meu anseio de cada minuto.
Habituara-me, na existência última, fértil de trabalho intensamente vivido, a concretizar os menores desejos, em nos referindo à luta exterior.  O homem prático que se mantém no corpo terrestre, por mais de cinquenta  anos, acostuma-se a ser invariavelmente obedecido.  Isso cria enormes prejuízos para ele, por enclausurar-se instintivamente  em  roda viciosa de preconceitos nocivos que se lhe cristalizam, vagarosamente, na  organização mental. Os melindres passam a torturá-lo. A conveniência é interpretada por desrespeito, a prudência por ingratidão.
Quase me considerei ofendido, quando os benfeitores espirituais me cortaram a  probabilidade do retorno apressado.  Afinal, pensava de mim para comigo, o que pretendia não era, de maneira  nenhuma, a admiração alheia, nem tencionava aproveitar o ensejo para a propaganda  de meu nome. Interessava-me, sim,  a prova da sobrevivência. Para tanto, se me fosse  possível, tocaria um clarim mais alto que uma sirene festiva.
Amigos delicados, porém, fizeram-me saber que o ruído, no âmbito da espiritualidade, é tão prejudicial quanto o barulho intempestivo na via pública e, depois  de ouvir longa série de ponderações, a me rearticularem os propósitos desordenados;  entendi, graças a Deus, que minhas investidas se filiava a pura ingenuidade.

domingo, 18 de novembro de 2012

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


DIFICULDADE NO INTERCÂMBIO

Mas, o serviço não é tão fácil quanto parece à primeira vista. Podemos certamente visitar amigos e influenciá-los; todavia, para isso, copiamos o esforço dos profissionais da telepatia. Emitimos o pensamento, gastando a potência mental em  dose alta e, se a pessoa visada se mostra sensível, então é possível transmitir -lhe  ideias; com relativa facilidade. Por vezes, a deficiência do receptor, aliada às múltiplas  ondas que o cercam, impede a consumação de nossos propósitos. Se o instrumento de  intercâmbio permanece absorto nas preocupações da luta comum, é difícil estabelecer a preponderância de nossos desejos.
A mente humana; atraí ondas de força, que variam de acordo com as emissões  que lhe caracterizam as atividades. No aparelho mediúnico, esse fenômeno é mais  vivo. Pela sensibilidade que lhe marca as faculdades registradoras, o médium projeta  energias em busca do nosso campo de ação e recebe-as de nossa esfera com intensidade indescritível.
Calculam, pois, os obstáculos naturais que nos cerceiam as intenções. Se não  há combinação fluídico-magnética entre o Espírito comunicante e o recipiente humano, realizar-se-á nosso intento apenas em sentido parcial. 
É quase impossível impormos nossa individualidade completa.  Ainda mesmo em se tratando da materialização, o visitante do “outro mundo”  depende das organizações que o acolhem.
Se o médium relaxa a obrigação de manter o equilíbrio fisiopsíquico e se os  companheiros que lhe integram o grupo de trabalho vivem estonteados, sem o entendimento preciso dos deveres que lhes competem, torna-se impraticável o aproveitamento dos recursos que se nos oferecem para o bem.
Venho recebendo agora preciosas lições, quanto a isto, porque cheguei à leviandade de prometer a mim mesmo que prosseguiria, depois do sepulcro, a corresponder-me regularmente com os leitores de minhas páginas doutrinárias.
Considerava a escrita e a incorporação mediúnicas ocorrências triviais do nosso  aprendizado; no entanto, vim de reconhecer, neste plano em que hoje me encontro, a  desatenção com que assinalamos semelhantes dádivas. Esses fatos amplamente  multiplicados,  em nossos agrupamentos, traduzem imenso trabalho dos Espíritos  protetores, com reduzida compreensão por parte dos que a eles assistem.
Passei a observar o porquê de muitas promessas de amigos, que se não realizaram.  Companheiros diversos haviam partido, antes de mim; convencidos de que  poderiam voltar, quando quisessem, trazendo informações da nova esfera e, embora  lhes aguardassem a palavra esclarecedora, através de reuniões respeitáveis, a solução parecia adiada, indefinidamente.
O homem encarnado é tido  em nossos círculos por arrendatário das possibilidades terrestres e, de modo algum, podemos absorve-lhe a autoridade e a direção da experiência física, tanto quanto não lhe será possível determinar na zona de trabalho que nos é própria. Em vista disso, por mais que desejemos, somos obrigados a depender de vocês em nossas comunicações e interferências.
Os amigos da vida superior necessitam da cooperação elevada, para se manifestarem nas obras de amor e fé, na mesma proporção em que as entidades votadas ao mal reclamam concurso de baixa espécie das criaturas perversas ou ignorantes, no cenário carnal. Verifica-se a mesma disposição em nossa zona de serviço. Vocês conseguirão isto ou aquilo, em nosso ambiente, dependendo, porém, das entidades que puderem mobilizar.

LIVRO: VOLTEI DE CHICO XAVIER PELO ESPÍRITO DE FREDERICO FIGNER


DE VOLTA

Há muitas semanas guardo a permissão de escrever-lhes, relacionando o noticiário do velho companheiro, já no “outro mundo”.  Aliás, isto não é novidade  para vocês, nem para mim.  Quando se me esvaía a resistência orgânica, formei o projeto de endereçar-lhes um correio de amigo, logo que a morte me arrebatasse.
O Espiritismo fora para mim não só simples crença religiosa. Tornara-se o clima  constante em que minha alma respirava, constituía elemento integrante de meu próprio ser. Daí o entusiasmo aos serviços da doutrinação e a certeza com que esperava o contentamento de fazer-me sentir aos irmãos de ideal, após a desencarnação.

ESTUDO DO LIVRO " O ESPÍRITO DA VERDADE " - MARIA J. SANCHES


NO RETOQUE DA PALAVRA
Cap. XI – Item 7 

Seja onde for, não afirme: – “Detesto esse lugar!” 
Cada criatura vive na terra dos seus credores. 
Ouvindo a frase infeliz, não grite: – “É um desaforo!” 
Invigilância alheia pede a nossa vigilância maior. 
Atravessando a madureza, não selamente: – “Já estou cansa-do”. 
Sintoma de exaustão, vontade enferma. 
Sentindo a mocidade, não assevere: – ”Preciso gozar a vida!” 
Romagem terrestre não é excursão turística. 
À frente do amigo endividado, não ameace: – “Hoje ou nunca!” 
Agora alguém se compromete, amanhã seremos nós. 
Ao companheiro menos categorizado, não ordene: – ”Faça isso!” 
Indelicadeza no trabalho, ditadura ridícula. 
Perante o doente, não exclame: – ”Pobre coitado!” 
Compaixão desatenta, crueldade indireta. 
Ao vizinho faltoso, nunca diga: “Dispenso-lhe a amizade.” 
Todos somos interdependentes. 
Sob o clima da provação, não se queixe: – ”Não suporto mais!” 
O fardo do espírito gravita na órbita das suas forças. 
No cumprimento do dever, não clame: – ”Estou sozinho.” 
Ninguém vive desamparado. 
Colhido pelo desapontamento, não reclame: – ”Que azar!” 
A Lei Divina não chancela imprevistos. 
À face do ideal, não se lastime: – “Ninguém me ajuda.” 
No Espiritismo temos responsabilidade pessoal com o Cristo.

André Luiz

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

ESTUDO DO LIVRO " SEXO E DESTINO " - MARIA J. SANCHES E JULIANA SOLARE


SEGUNDA PARTE
Médium: FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

Capítulo 1

Quase cinco da manhã, quando nos vimos na intimidade dos Nogueiras.
A casa jazia quieta. Peças mudas, silêncio.
Agitava-se, porém, Dona Márcia, sob a colcha leve, cansada de vigília. Varara a noite em aflição. Na penumbra do quarto, apoiava o cotovelo no travesseiro e a cabeça na mão, de pensamento longe. Tinha os olhos empapuçados de chorar. A filha adotiva não voltara. Ansiosa, esperava que o dia se levantasse... Telefonaria para a residência dos Torres, para saber do regresso de Marina. Se preciso, chamaria Teresópolis. Queria comunicar-se com alguém, desentranhar-se. Sentia medo, o coração palpitava catástrofe.
Consultei-a mentalmente, procurando noticias de Cláudio.
Alcancei-lhe a resposta inarticulada. Supondo reconsiderar os sucessos da noite, passou a lembrar-lhe o retorno, horas antes, totalmente embriagado. Chegara tateando paredes, esbarrando com os móveis. Inferira que  ele tentara afogar o remorso em copázios de uísque. Ouvira-lhe os vômitos, escutara-lhe as descomposturas à porta, mas trancara-se, precavida. Carraspana e ressaca rematando a criminosa aventura... Não desejava cenas.
Súbito, quebrou a linha de reflexões em que penetrara. Repeliu-me a influência, convicta de estar reafirmando para si mesma que atingira o ponto final da tolerância... Nada mais com Cláudio.
Convertera a mágoa em nojo. Aspirava a nova atitude, suspirava por desquitar-se, fugir...
Deixamo-la engolfada nas alegações negativas, buscando o aposento dos fundos. Nogueira aí se despejara em cama de solteiro, completamente equipado, sem alijar nem mesmo o paletó.
Estirava-se de lado, a expelir saliva grossa pelo canto da boca, ressonando, tranqüilo, e, com ele, o vampirizador, relaxado sob os efeitos do álcool. Ambos largados, embrutecidos.
Demorava-me na inspeção, quando a campainha do telefone retiniu.
Com certeza, irmão Félix obtivera meios de abrir-me alguma porta, a fim de que me fosse possível atuar, favoravelmente. Imprescindível atacar o problema, advogar a proteção de que fora incumbido.
Tornei à sala.
Dona Márcia, em baby-doll, punha o fone ao ouvido, carregada de escuros pressentimentos.
A voz de um homem simples repontou no auscultador:
— Estou falando com o “seu” Cláudio Nogueira?
— Na casa dele.
— Ele está?
Dona Márcia reconhecia de todo impraticável o ensaio de qualquer conversação com o esposo, escornado àquela hora, e respondeu, positiva:
— Não, não está.
— Quero falar com ele ou com a madama.
A interlocutora, experiente demais em trotes e adestrada no jogo das conveniências sociais, pressupôs estar em contacto com algum novo despropósito do marido, e indagou, prudente:
— Com quem estou falando?
— Com Zeca, lixeiro. Estou em Copacabana, preciso dar notícia de um desastre.
— Que desastre?
— A senhora é a dona da casa?
— Não sou, mas trabalho aqui. Sou empregada...
Dona Márcia receava cair em complicações, na hipótese de transpor as raias do anonimato, e, a vista disso, antes que o desconhecido revidasse, acrescentou:
— Os patrões estão ausentes, mas posso dar o recado.
— Olhe — gaguejou o informante —, o caso é com Dona Marita, a moça da loja.
- Que há? diga, por favor, que há?
A senhora Nogueira sentiu-se traspassada de angústia, enquanto, de minha parte, concluía que Félix angariara o concurso de um lixeiro prestimoso para transmitir a notícia, preparando o terreno que me cabia encaminhar ao plantio da compaixão.
— Diga aos patrões que ela foi atropelada...
— Onde? como? quando?
— Bem, eu não sei como foi, mas vi que era ela...
— Agora?
— Há uma boa meia hora, aqui perto, na Avenida Atlântica...
— Está aí?
— Não está, a ambulância já levou.
— Mas o senhor tem certeza?
— Tenho toda a certeza... Ela estava sem bolsa, ninguém a reconheceu... Mas eu conheço Dona Marita, foi sempre amiga de minha mulher desde que veio para cá. Minha mulher é empregada no edifício da loja... Coitada de Dona Marita, moça tão boa! Ela é que conseguiu lugar para minhas duas filhas na escola!...
— Mas, escute — Dona Márcia cortou as referências, terrivelmente chocada —, como está ela?
— Dizem que morreu...
Embora calejada contra as emoções, a esposa de Cláudio abandonou o fone e afastou-se, pálida.
Arremessou-se à cama e agarrou a própria cabeça, entre as  mãos, julgando enlouquecer...
— Morta! Marita morta! — refletiu, atribulada.
Recordou o ultraje que a pobre menina experimentara  naquela noite que o dia nascente esfumara, qual se expulsasse um pesadelo, e a mente divagou... Aracélia, a servidora e amiga...
Vinte anos antes. O suicídio!... E agora a filha, na mesma tragédia, com o mesmo homem...
Decerto, Marita, envergonhada, procurara a morte. Inexperiente, sucumbira.
Ajustava argumentos por dedução. Crescina falara-lhe de encontro com Gilberto, no entanto, apanhara Cláudio em desconcerto flagrante. Tudo indicava a intromissão dele em algum arranjo dos jovens, para infligir à filha o imperdoável insulto...
Indubitavelmente, a desventurada menina preferira morrer...
Nesse entretempo, intervim. Assimilei-lhe os pensamentos de simpatia e fi-la meditar nas tribulações de Marita, dentro da noite, esforçando-me por incliná-la à compaixão... Largasse o marasmo, sacudisse Cláudio, chamasse,  implorasse... Se o marido não estivesse em condições de compreendê-la, que ela própria saísse à rua... Procurasse a moça... Telefonasse à Polícia, refletisse nela, como sendo sua própria filha... Corresse ao Pronto Socorro da Zona Sul, inquirisse funcionários, ouvisse médicos, visitasse a morgue... Alguém auxiliaria, encontraria a criatura que a Providência Divina lhe pusera nas mãos... Quem saberia? Talvez que ela ainda estivesse nas raias do fim a esperar-lhe as mãos piedosas, como quem
aguarda uma bênção!...
Dona Márcia ouviu mentalmente. Ao recolher-me as sugestões, imaginou a filha estendida no necrotério, comoveu-se e chorou...
Entretanto, a senhora Nogueira não era pessoa que renunciasse a peso e medida, em matéria de questões sociais e domésticas. Reagiu para logo, crendo-se piegas. Não queria afundar-se em sentimentalismo, confessou, na suposição de que falava consigo mesma. Era necessário sopesar prós e contras.
Do pesar ao cálculo, mediaram apenas alguns instantes.
Efetivamente, lastimava Marita e enojava-se de Cláudio,  monologou, todavia, era mãe. Nada de alhear-se ao destino da filha. Marina aprumava-se. Os Torres eram ricos, talvez riquíssimos.
Ambas as moças disputavam Gilberto. Afinal, a morte de Marita surgia por solução. Assim que pudesse chamar o esposo a brios, combinariam plano certo. Levantariam a hipótese de acidente, inventariam versão plausível. Ela própria afirmaria que concedera à jovem permissão para pernoitarem casa de parente enfermo, recomendando-lhe o regresso tão cedo quanto fosse possível para a obtenção de notícia urgente.
Indispensável maquinar situações, engenhar detalhes. Os chefes da loja, amigos de Marita, se interessariam pelos fatos. A imprensa tomaria atenção. Cabia-lhe preparar-se a fim de facear repórteres e fotógrafos. Pensou no modelo azul com que se apurava na representação a funerais e vasculhou a memória para saber
onde colocara, distraída, os óculos escuros.
Quando a manhã se adiantasse, despertaria o esposo, com vista ao ajuste.
Conversariam seriamente. Até lá, fantasiaria a história convinhável ao público, em função da felicidade e do futuro de Marina. Se a outra estava morta, para que preocupar-se? Importava-lhe agora a filha, somente a filha... E, depois que a filha se casasse.. nada de Cláudio. Não se sentia inútil, mas andava cansada de dar no batente, suportando inibições e contrariedades pôr um esposo que, desde muito, se lhe fizera detestável. Não se escravizaria. Recebera um convite de Selma, companheira de infância, para negócio que considerava lucrativo, na Lapa. Na frente um café, acompanhado de aperitivos e guloseimas e, nos fundos, quartos de aluguel...
Reconhecendo que Dona Márcia se imobilizava, mentalmente, em digressões esconsas, tornamos à presença de Félix para a obtenção de roteiros precisos.
Acomodada num leito de emergência, Marita figurava-se em coma.
Félix, assistido agora por dois médicos desencarnados, em serviço na grande instituição socorrista, se mantinha sereno, apesar da tristeza que lhe velava o semblante.
Acolheu-me, paciente. Ouviu-me.
De posse das informações de que me fizera mensageiro, recomendou-me esperá-lo alguns minutos. Sairíamos, à cata de reforço.
Enquanto isso, auscultei a jovem acidentada, que jazia inconsciente, em terrível depressão.
Escassas reações dos centros nervosos, anoxemia, sensíveis alterações  dos capilares, lesões no peritônio. Os esfincteres descontrolados davam passagem a líquidos e excrementos que empastavam a veste.
Félix mobilizou as providências cabíveis e rogou aos colegas desencarnados nos substituíssem por instantes.
Demandamos a residência de Cláudio.
A caminho, notei que o benfeitor, em silêncio, adensava a própria forma, transfigurando-se na apresentação. A ocorrência, que eu conseguia apenas depois de paciente elaboração mental, obtinha-a Félix com esforço ligeiro. Rápidos momentos e imprimiu ao corpo espiritual novo ritmo vibratório.
O instrutor assumira as características de um homem vulgar.
Por que a transformação?
— André — respondeu, assimilando-me os pensamentos —, ninguém pode fazer tudo senão Deus. Você é também médico e não ignora que, em certas ocasiões, é imperioso pedir remédio ao pilriteiro. Na Terra, às vezes, para socorrer um santo é necessário dosar um veneno. Marita, em súbita decadência física, precisa agora dos préstimos de alguém que a ame infinitamente. Chegou a hora de esmolar para ela o socorro dos que a feriram amando...
A voz do amigo carregava-se de pesar; contudo, não nos era possível comentar a filosofia que enunciava, de vez que atingíramos o prédio em que se dependurava o ninho dos Nogueiras, banhado pelo sol recém-vindo.
Subimos.
Qual aconteceu comigo na véspera, o instrutor bateu à porta semicerrada.
Após reiterados chamamentos, Moreira veio atender, como qualquer ser humano estremunhado.
Não me via, porquanto de tempo não dispusera eu para a metamorfose necessária, mas, renteando com Félix, desenrolou comprida fieira de insultos, que o benfeitor recebeu com humildade.
Quando terminou, algo desenxabido pela ausência de qualquer resposta que lhe alimentasse a ira gratuita, Félix comunicou-lhe o acidente. Sabia-o interessado na proteção da moça, rogava-lhe amparo. Diante da incredulidade com que era acolhido, solicitou-lhe fizesse a gentileza de verificar se amenina amanhecera no lar.
Moreira correu ao interior e voltou, coçando a cabeça. Sim, atenderia ao apelo, mas não despertaria o dono da casa enquanto não averiguasse a realidade.
Carrancudo, ladeou o instrutor, sem dizer palavra, do Flamengo ao estabelecimento de socorro público, mas, topando a moça, entregue à miserabilidade orgânica, o peito se lhe explodiu numa torrente de lágrimas, semelhante a rocha que se partisse de repente para revelar uma fonte. 
Rodou sobre os calcanhares e arrancou-se qual flecha.
Félix, confortado, explicou que, pelo visto, Cláudio não tardaria, informando-me de que, segundo lhe era lícito ajuizar, Marita conseguira pequena moratória. Mais alguns dias no corpo amarfanhado, quinze a vinte no máximo... Tempo de meditação, preparo valioso ante a vida espiritual... O cérebro seria protegido, mas não recuperado. Desorganizara-se. Dentro de algumas horas, a moça poderia pensar e ouvir com regularidade, reaver alguns recursos da sensibilidade e enxergar imprecisamente; entretanto, não mais contaria com o centro  da fala. Naquele estado, aditou ele, permaneceria facilmente, na esfera física, por muito tempo ainda, mas o peritônio sofrera contusões de efeitos irreversíveis. Não valeriam antibióticos, por maior fosse a carga. Ainda assim, sentia-se reconhecido aos supervisores espirituais, que haviam advogado a pequena dilação. As horas finais ser-lhe-iam preciosas. Desfrutaria o ensejo de aprontar-se para a renovação, enquanto que Cláudio, Márcia e Marina talvez reconsiderassem caminhos.
Arrecadava-lhe o otimismo, comovidamente. Transcorridos pouco mais de cinquenta minutos, Cláudio, seguido por médico que se lhe afeiçoara à família e que conhecia Marita, desde muito, deu entrada no posto de assistência. Márcia, sob a pressão de Moreira e interrogada pelo marido, liberara as informações de que
dispunha.
O facultativo recém-chegado deixou o bancário no vestíbulo para efetuar a inspeção, identificando a menina sem maiores dificuldades. Feito isso, tomou providências, junto aos colegas, para que a Jovem fosse imediatamente transferida para o Hospital Central dos Acidentados, com vistas ao tratamento urgente e minucioso. E depois de ligações telefônicas, no preparo da instalação necessária, determinou as medidas inadiáveis. Que limpassem Marita, que se lhe purificasse o ambiente, que mesmo acreditada em coma fosse tratada com o máximo apreço.
Seja dito, no entanto, que não se registrara, ali, qualquer desleixo. As condições precárias da moça exigiam repouso, quietação. Justo observá-la, antes de qualquer alteração suscetível de agravar-lhe os constrangimentos.
Com efeito, iniciada a laboriosa remoção que Cláudio e Moreira seguiram, de longe, a cabeça, pendida para trás, impeliu o sangue a  movimento retrógrado e surgiu a possibilidade de asfixia.
Félix controlou, quanto pôde, as mãos dos condutores, e, tão logo a vimos ajustada em novo leito, vali-me do socorro magnético de profundidade que as circunstâncias exigiam. Sentei-me, de maneira a guardar  aquele corpo abatido em meus braços, envolvendo-o no meu próprio hálito, numa operação que nos permitiremos nomear aqui por adição de força, cujos resultados se destacam surpreendentes, quando a criatura retida no envoltório  físico se mostra nos últimos lances da resistência.
Nesse ínterim, Félix aconselhou que eu me adensasse na apresentação, a fim de que Moreira me enxergasse os exercícios. Conservava a esperança de vê-lo oferecer-se para manter a respiração da moça em boa ordem.
Orei, empenhando-me na consecução do objetivo, e quando. Nogueira e o acompanhante vararam a porta do quarto em que a administração nos localizara, o vampirizador deitou-me olhar espantadiço.
Cambalearam sensibilizados, aflitos...
Incoercível emoção me tomou a alma.
Cláudio abeirou-se, trêmulo, da filha e rompeu em soluços.
Tanto quanto me era dado perceber, aquela hora significava para ele doloroso balanço de consciência.
Instintivamente, tornou à infância e à mocidade... Lembrou as leviandades primeiras.
Irreflexões do passado corporificaram-se-lhe na memória. Enfileirou na imaginação os desvarios sexuais das trilhas percorridas. Cada  jovem que iludira, cada mulher de cujas fraquezas abusara repontavam-lhe na tela mental, como que a lhe perguntarem pela filha que a vida lhe trouxera...
Aquele homem que me inspirava sentimentos contraditórios  e de quem teria desejado distanciar-me, tocado de aversão, me insuflava agora um enternecimento que somente as lágrimas exprimiam!...
Perante a enfermeira impressionada, Cláudio ajoelhou-se e, com ele, pôs-se Moreira genuflexo... Em choro convulso, o pai alisou aqueles cabelos despenteados, contemplou a fisionomia de cera que a morte parecia estar modelando, mirou a face e os lábios intumescidos por equimoses, aspirou o ar deteriorado que se lhe
exalava dos pulmões e, mergulhando a cabeça nos lençóis, gritou, vencido:
— Ah! minha filha!... minha filha!...
Quase no mesmo instante, a fronte de Moreira vergou, como se esmagada de sofrimento...
Ambos jaziam, ali, debruçados, rente aos meus joelhos, com a mesma rendição dentro da qual Marita se me conchegava ao regaço.
Reconheci que a Providência Divina, em seus desígnios, não me aproximava unicamente da vitima. Os verdugos também pediam amor. Segurando a moça inerme, à altura do peito, afaguei-os com a destra, sustentando-me em prece... E a prece clareava-me o pensamento, corrigindo-me a visão!...  Sim, tentando consolar aqueles dois homens que o remorso dobrava em tormento indizível, refleti nos meus próprios erros e compreendi os propósitos da vida!... Não!... Eles não eram os estupradores, os obsessores, os inimigos, os carrascos que eu detestara na véspera!... Eles eram meus amigos, meus irmãos!...